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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

domingo, 27 de abril de 2008

Não sei se te quero dentro de mim.

Não sei se te quero dentro de mim.

Gostava de poder obstruir a alma como uma mulher fecha as pernas instintiva quando o ginecologista lhe invade o corpo, lhe remexe as entranhas em luvas de plástico.
Gostava de fechar a alma tal como a ditadura encerrou sem nexo a voz dos companheiros. Tiranizados.
Como agora se estrangulam as súplicas dos tibetanos em luto. E se esmagam as vontades noutros palcos. Interditos. Invisíveis. Doridos. Destes e daqueles que por omissão, por desrespeito, por incúria manifesta, não se fala. Não se declara a voz do escriba, como eu, e do poeta.

Gostava (ou talvez não) …

Mas não posso.
A cada manhã que nasce tu nasces dentro de mim. Nasces num parto sempre doloroso que me devassa a carne, da pele ao osso. Me tiraniza. Me escraviza.
Nasces no grito do verbo que não contenho. Na metáfora, no pleonasmo...
Numa verborreia de palavras matizes de ternura e de desamor. Nasces como se fosses borboleta em festa por sobre campos de trigo, por sobre ninhos de cuco. Relógios de pêndulo.
Mariposa condenada a viver um dia apenas. Efémera. Um dia seja, então!
Um dia de cada vez.
Um dia de vez em quando.
Um quando que se esfumasse no bolor constante duma vidraça.
Aquela
de que não se limpe a tua imagem.
Hoje como ontem e amanhã talvez, debulhas-me desfolhada em pó de giz sobre um tapete negro
que descalça piso. De estrelas de vidro. E que insana, avoenga de loucura, confesso. Perfilho.

Talvez tu sejas a peça e eu o palco… ou o seu inverso.
Um palco, uma sinestesia de gestos
E estrelas
E aguarelas aguadas de paletas de poetas e poemas de pintores.
Troco os membros, inverto a lógica ao movimento dos astros, ando de gatas, faço cambalhotas e julgo ser trapezista e acrobata. E mais não sou, e mais não quero, do que me libertar do grito deste silêncio que me amordaça a alma, que me guilhotina à vida, a cadafalços, a purgatórios a que eu mesma me condeno.

Não sei se te quero dentro de mim, poema!
***
in "textos esparsos" Todos os Direitos Reservados

quinta-feira, 24 de abril de 2008

"coisa delambida"


Nunca a olharam com bons olhos. Nunca nutriram por ela sentimentos outros que não o de tolerância. Resignação. Aceitação. Chegara à família não por ter conquistado um lugar no coração de algum dos seus membros mas porque, e tão só, engravidara de um deles.

Corria o ano de sessenta quando o casamento se consumou. Habitou paredes-meias a casa de família (a dos sogros) onde, para além do marido, estava por casar até então, um outro filho quase da idade do que agora arrebatara à condição de solteiro.

Nem alta nem baixa, nem muito bonita nem muito feia, era daquelas pessoas a quem a vida negara desde a nascença, e à partida, cinco minutos de sucesso, de brilho ou glamour. Amorfa.
Não se lhe conheciam defeitos. Mas também não se lhe reconheciam simpatias, nem boas palavras. Antevia-se-lhe um futuro sombrio, um escoar por entre os ralos da vida como chuva branda. Silenciosa.

O primogénito nasceu. Rapaz franzino, macilento. A família acorreu em massa, como de costume a visitar a parturiente. Não por ela – que, como já fora dito, não era vista como membro activo do burgo-, mas pelo catraio (curiosidade mórbida de ver o que aquela “coisa deslavada pariu” …) . Pelo catraio e pelos avós, está bem de ver. Família e vizinhança rendiam-se em visitas aos pés da cama. Aos pés, porque a “coisa delambida” não consentia beijos na criança, nem grandes atracagens. Distâncias impostas, lá iam entrando e saindo, lamentando entre dentes a escolha forçada daquela personagem para dentro da família. Logo o Juvenal, um rapaz tão bem apessoado, por quem meia serra suspirava, com aquele ar fidalgo, enxertado em boa estirpe, de boas famílias e boas posses, fora-se meter com uma “criada de fora”, sem que onde cair morta e, pior, com a mania que era dona do mundo, sempre de nariz empinado, direita que nem um carapau seco. Logo o Juvenal, com aquele sorriso de dentes alvos pintados nas maças da pele…

Os anos foram passando sem grandes atropelos. O catraio já corria lépido pela casa grande, arrancava gomos novos das faveiras e das ervilheiras com as fisgas dos pardais, escarranchava-se nas figueiras aos ninhos e gozava que nem um perdido quando as ouvia, como quem lacrimeja a rachar por debaixo dos fundilhos dos calções… As roseiras viam com regularidade o ímpeto destruidor dos seus dedos pelo simples prazer de as ver mudar de cor, maceradas (às pétalas) …

De quando em vez tinha que dar uma valente corrida à frente de sua avó que, rendida contudo ao seu sorriso, fotocópia do de seu pai, não mais lhe ocorria fazer do que lhe que dar dois gritos “à seu malandro, Ricardito, seu malandro … se te apanho verás como elas te mordem. Ora vá lá ver, as minhas rosas-chá… e as príncipe… ai valha-me Deus, és um meliante… logo conto tudo a teu pai…. ”.

Não contava. Aquele neto era a luz de seu olhos. E por ele ia aceitando a presença da nora naquela casa.

A casa agradecia a presença da “coisa delambida”. Ordeira como poucas, adestrada aos trabalhos de criada de fora, não se desmazelava contudo dos deveres e dos alinhavos internos de uma casa. Da roupa aos tachos, aos alumínios antigos a reluzir na grade de madeira, passando pelas áreas de passadiços, tudo refulgia à sua mão. Se na cara os sorrisos não brilhavam, por onde ela passasse dir-se-ia que passara um tornado branco. Tudo, mas tudo, fulgia em cor. Paradoxalmente!

Das poucas palavras que se lhe ouviam resultavam em geral sentenças sábias. Com nexo! O que em muito contribuía para que a apelidassem de sentenciosa. “ora vá-se lá ver, sem eira nem beira a botar sentenças”. Com senso! Coisa que faltava muitas vezes aos restantes membros da família, em especial ao filho serôdio do seus sogros e seu cunhado.

Tardava em casar. Namoradeiro, alvoraçado, desmiolado, estroina, vivia, prestes a fazer trinta anos, em casa dos pais. Trabalhava numa das muitas fábricas da beira-rio. Era um artista, sim! Tinha tanto de habilidoso como de lunático. De arvorado. De tresloucado! Não nutria, como todos os outros, grande (ou nenhuma) amizade pela cunhada. Nem a via, a bem dizer. Era como se fosse transparente.

Florival (assim se chamava, ou lhe chamavam os outros, porque, tal como dizia, ele “não se chamava”) vítima da pressão dos pais e da sociedade, acabou por aceitar chegada a hora de noivar. Fê-lo não com uma das muitas raparigas com que havia namoriscado (todas umas atrevidas…) mas com uma “recatada e santa moçoila” perdida nos confins de Abrantes, numa terriola onde “o diabo tinha perdido, ele próprio, as botas”.

Conhecera-a numa das visitas à casa dos avós paternos, quando decidira ir tentar a sorte na quermesse da aldeia ao lado, em festa de S. Bartolomeu.
Doroteia era alta e esguia, com um valente carrapito a coroar-lhe a cabeça (um palmo mais alta que ele, é certo, mas que importava isso???) Um sorriso casto, modos delicados, educada em casa de lavradores, seu padrinhos, de quem o seu (o dela, claro) falecido pai fora feitor.

À luz dos pitromaches que alumiavam o átrio da Igreja, Florival achou-se enamorado. Ela já estava passada das carochas, à quase condição a tia, isso sim, com quase trinta anos, tal como ele e, um príncipe encantado caído no açafate das suas rifas não era coisa que acontecesse todos os dias. Muito menos que se rejeitasse!!! Largou a cesta e bailou com ele a noite inteira. E naquele dia, perante o Santo padroeiro, juraram alianças, breve.

Nem um ano depois, Florival estava de casamento marcado. Doroteia viria morar na casa grande. O casamento, a boda e demais andanças seriam na aldeia onde se haviam conhecido. Os avós de Florival jubilam em apoteose. Em terras donde se haviam coado todos os filhos, um a um, um descendente que fosse vir festejar bodas na Igreja Matriz era motivo de conversa, de preparação e de festa, para a comunidade inteira, toda ela já envelhecida e carente de novação. Nem que mais não fosse por via de um casamento…

Na aldeia onde morava (a tal da beira-rio), também os preparativos se avultavam. Da escolha das fazendas para os fatos até à feitura dos bolos e arroz doces para os presentes aos vizinhos não convidados, de tudo um pouco se enchiam os tempos e as mãos e as ideias.

A modista confeccionava os vestidos das senhoras e os calções do rapazola, o alfaiate os fatos dos homens. Na hora da escolha das fazendas, cada um por si e sem dar fé das dos demais, escolheu o padrão que mais lhe agradava. Florival seleccionou um tom cinza com um filamento a negro que, segundo lhe pareceu, ia bem com o momento.

Senhoras aprumadas e carros de praça à porta, a casa apinhada de gentes - umas para embarcar depois de fazerem “o bico” com uma água-pé, vinhos doces e uns salgados, outras tão só, porque não convidados, para verem de perto o noivo de partida para o casório -, aguardava com expectativa a chegada à sala do mesmo.

Nos quartos a mãe colocara suspensas as vestimentas de cada. Fatos e camisas, botões de punho e roupas interiores. Tudo, peça a peça. A “coisa delambida” direita como sempre, deslavada como sempre, muda como sempre, atentava a cada movimento com um olhar de falcão. Colmatava as falhas de croquetes num ápice, com uma ida à cozinha, recheava a mesa de novos pratos de empadas de galinha em dois segundos.

De repente, nos fundos dos quartos, uma gritaria de bradar aos céus. Florival, como um animal enraivecido, deambulava pelos corredores, como que possuído pelas forças do mal. Elevava os braços, quase espumava da boca. Num vai e vem entre porta e espelho, espelho e porta …

Do corredor oposto, era agora a vez de Jorge Maia, seu pai. Mais contido, gritava pela mulher a bons pulmões: Clotilde, ó mulher, valha-me Deus ….

Clotilde acudia. Olhava a figura do marido e não queria acreditar. As calças não lhe chegavam aos artelhos, curtas um palmo que estavam. O casaco à meia anca, lembrava as casacas dos campinos. Para não falar das mangas que em rigor pareciam manguitos … a um palmo travesso dos pulsos.
Incrédula, não sabia que fazer….
- Mas ó homem, na prova o fato não t’assentava???”
Que sim, que estava muito bem, até por sinal … que não entendia, que nunca vira uma coisa daquelas….

Do outro corredor vinham agora os gritos tresloucados do noivo, agarrado às calças que lhe teimavam em cair aos joelhos, de largas, e com mais de um palmo a arrojar pelo chão… O casaco lembrava os dos palhaços da feira de Outubro e a cara espavorida do noivo completavam o quadro…
- Mas filho, como é que isto aconteceu??? Uma fazenda tão boa… não provaste o fato???” Emagreceste ou quê???

Florival olhava a mãe com um olhar de raiva. Raiva porque um dia nascera, raiva porque se ia casar era porque ela não o deixava de atentar: “casa filho, que eu não duro sempre …” Raiva porque sim e raiva porque não …

O burburinho estendia-se à cozinha, à sala, à rua … já todos sabiam que pai e filho estavam “enrascados”, que os fatos estavam mal feitos, que … e que mais que…

Em passos lentos, no vagar de quem tem a seu favor todo o tempo do mundo, “a coisa delambida” aproximou-se. Mediu o sogro de alto abaixo, abanou a cabeça, curvou o cotovelo do corredor e encontrou o cunhado. Mediu-o de igual, de alto a baixo. Agarrou-o por um braço, arrastou-o ao quarto do sogro e, sem mais palavras, apenas disse:
- Ora trocai os fatos, meus senhores… trocai os fatos que o padre não espera e ainda temos duas horas de caminho!
***
in Colectânea "Contos de Mulheres" © Todos os direitos Reservados

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...