Sobre mim ...

A minha foto
Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Evoco-te


Evoco-te hoje,
em visita de galerias onde os retratos de família estão já amarelecidos e os álbuns de botânica têm linhas tensas a fisgar as folhas quebradiças. e as nervuras profundas são pasto onde o orvalho matinal da beira-rio debota uma a uma todas as letras. visito-te para que de ti, definitivamente não me esqueça. quero que sirvas a minha memória. que a alimentes.
talvez seja essa a minha cruel sageza, a minha glória: glorificar quem me estigmatiza. quem me atormenta.

evoco-te. no vagar de um tempo que ainda me concedo quando a des_tempo visto o manto transparente de fada com que cubro a nudez do corpo (e a da alma) e parto, romeira, peregrina (e desta forma estranha evito-me da derrocada).

rumo a ti. ao epicentro de um fulgor inopinado com que me trincas, colar de pérolas entre a cadeias de serras, diamantino. não me lembro sequer que nome tens. ou tinhas - és superprodução de ti mesmo (tempos houve em que te acreditei super-nova. mas os astros arrefecem. arrefeceste!). visito-te e sinto a sair do quadro em que te pintei, um hálito cetónico. a piorreia fez-te soltar, um a um, quase todos os dentes; o teu sorriso de vaga-lume oculta quanto estás doente. hipertenso, dia_bético… quem sabe? e, na voragem de um tempo que passa, desdobras-te em sombra e cotovelos de horas cálidas. inventas duelos e espadas (e campos de batalhas) qual D.Quichote e Sancho Pança. não, não sou, nem nunca fui ,de ti, Dulcineia (talvez som de Sol ou maresia solta que, genésica,  te abraça… ainda).

evoco-te hoje e nem sequer me lembro que nome tens.
Diamantino fica-te bem.
serás Diamantino então, em óbvia evocação do brilho com que te via e do gelo que és no íntimo de uma emoção...

Imagem da net

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Inultilmente a manhã na fronte

Inutilmente a manhã na fronte.
Inultilmente, a manhã repousada nos gentis gomos, nos cílios fluviais de trilhos brandos
se, na Lezíria ao largo, ardem queimadas Outonais,
se a terra ressequida aguarda a cama láctea das cinzas,
das colheitas póstumas, residuais.

É fim de tarde, o nevoeiro cai agora espessado. Pardacento, vagaroso, sobre a palha incendiada antes da safra.
O vento amainado como por magia, afaga desposado a terra quente na biologia comprometida dos solos rubros de porções inimagináveis.
Instáveis, a vegetação e a biodeversidade, gemem no gérmen ainda cálido p’la nostalgia.
Tomba a lágrima. Rebola no espelho das águas, galopa o vazio no dorso do dia, alazão chicoteado por sombras insondáveis.

Ao lado o rio, o rio que se azula, que se estiraça, que gesticula efémero em dádiva e busca. Rebusca a chegada dos deuses, o romper anunciado do manto glaciar.
[Seremos deuses, amado, dum tempo que tarda em se encontrar.]

Inutilmente a manhã na fronte
conquanto, na acidez do pranto, afluentes, lençóis freáticos e demais espaços compósitos, se confundem e baralham na assimetria de todos e quaisquer propósitos
de ser verdade
de ser saudade ou apenas e tão só, palidez de lua, esquálida performance de imaginária realidade.

Inutilmente
o gesto a escorrer-se deslumbramento p’las paredes das entranhas na qualidade comprometida da água na nascente da vida.

Inutilmente,
a flauta de Pã, o filamento túrgido em busca de ser manhã, se o fogo chacina todos os verdes das sebes e dos prados, e se o flato revivido desfolha o tempo manso que se ajardina numa cartografia estranha.

Na fragilidade dos agros ecossistemas poluídos pelos óxidos nítricos, os sentidos despertam feridos da dormência de um sino lento.

___
(Nov.2007)

in "Textos Esparsos" © Todos os direitos Reservados

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Estou de partida ...

No trajecto do crepe, na alacridade póstuma dos sentidos,
prossigo, ilharga quebrada, batel sem rumo, velejado ao fumo seco do teu cigarro.
Por entre o céu
Por dentro da terra
Por sobre a serra, na foz do rio, noz solta no lívido lago, pó no saibro e no barro!

… Sobra-nos a peleja. A lide desavinda, adormecida na ausência da palavra, alastrada na ferrugem do tempo, manifesta em salinas ensaibradas, nas carpas douradas a rebrilhar no tanque e nos baixios dos arrozais.

Coisas banais…

O Inverno adensa-se em endemismos tediosos. Em pluviosidades adivinhadas e, a noite, a noite azuleja-se e rendilha-se nos bilros da memória. Gélida, mergulha-se agora em archotes brandos.

Nos campos as cores do fogo contrastam com o tempo frio. O corpo desnudo das árvores é esqueleto erecto de troncos e de ramos. Vareja-se nas tranças soltas do vento e lá, lá amado, te asseguro, existe ainda uma cândida flor, uma flor subliminar, uma pétala goiva ainda por decantar.

Um néctar,
e uma mariposa-cigana errante.
E uma brisa marinha dum mar, dum mar rosa de espuma, dum mar gentio que se agiganta íntegro e absoluto na busca constante do teu vulto.

Ao ritmo dum gesto resoluto, desdigo o verbo, contradigo a dança que te ofereço, a valsa primeira d’ infanta, de mulher-criança, assassino a crença em matizes d’amarelos menores, afogo o beijo no gelo fontanário da pedra, fustigo-me em mimetismos opulentos de gestos coevos, cada vez mais espaçados, cada vez mais lentos.
Caminho escadarias imaculadas de brancas, regresso ao banco dos caminhos, aos portões negros dos castelos seculares, inerte ao apelo da alma, à liderança de ti sobre todos os meus espaços. Sobre todos os meus passos.

Num compasso alado, da serra a ventania traz-me agora a folhagem amarelada, em bandos de estrelas cansadas.
Nos jardins de mim, moram magnólias desnudas em formas decúbitas d’aguarelas. Guardiãs de um tempo lato, os Aceres do Oriente, acolhem sobre os seus ramos perenes os genes da nossa história.
Cerro os dentes nas sílabas emudecidas e nas palavras enverdecidas. Atravesso o véu denso do vento. Estou de partida.
(Nov. 2007)

in "Textos Esparsos" © Todos os direitos Reservados

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

... anfíbia à solta

Os olhos nítidos das cigarras
observam
os membros minguados das gruas e dos guindastes
que já não transportam a areia desfalecida da manhã do rio.

Revejo um a um todos os choupos bafientos e nus. Norteio-me p’los salgueiros debruçados p’lo tórax no espelho opaco das águas. Pelas pedras roladas de mil jornadas.
Viajo fragatas jazidas em busca de moliceiros, rumo ao norte, lá mais acima, a um espaço pantanoso, poluído e igualmente já sem vida.
Desprendo-me da pele, da veste rouca, baloiço-me em ondas vagas, sou cobra, anfíbia à solta, envolta nos sargaços estrelados com que moldaste a frio os teus e os meus passos, na beira-mar do enredo duma vida.

Cedidos dos corpos, os gestos profanam-se maçudos e indigestos, em ausências de tabernas, ao vício pasmaceado do beber de pé, de goela aberta, do primeiro até ao último trago.
Na deriva, fulgentes, os olhos das cigarras retalham o verde das azeitonas outonais, mascam fomes de papoilas rubras em bocas ainda mergulhadas nos sabores melífluos das últimas uvas. Videiras despidas, retortas, escorrem na terra a seiva retida.

O lugarejo da beira Tejo vareja-se e alvora na apanha residual dos últimos bagos.
Somam-se nos carreiros histórias antigas, intrigas torneadas à bancada das horas, estancadas por garrotes e torniquetes, vontades esfomeadas de descer ao rio, de descer subindo o rio, em polainas de pernas altas, maquiavélicas e plásticas, dúcteis e sombrias, no esguio do ensejo de tomar o boi de frente, na plasticidade indecente de afagar arpoando a própria mente em dessalga e desalinho. De ser cálice sendo, ao mesmo tempo, o próprio vinho. No contraditório …

A lua engorda o horizonte. O Ribatejo afoga-se nos odores de casulos marsupiais, nas chinelas clandestinas dos avieiros e nos trocadilhos juncosos das varinas. Ou no seu oposto …
No infinito horizonte passarinhos de seda presa não são mais que ventrículos em busca de acamamento. De acasalamento urgente na fímbria parcelar de ser verdade.

Esgueiro-me à colina do vento e nada vejo que não seja, pasto adentro, o meu cavalo alazão. Alisa o chão seco do terrado na espoliação do retorno a casa, onde o moço de estrebaria o aguarda sempre paciente e, sem que deseje ou queira, o liberta, no brunir do pelo, dos carrapatos e dos percevejos.
Bucólica a noite abre a boca ao bocejo lento, em devir. Ilumina as campinas nas lamparinas de azeite d’outrora conquanto as ninfas do Tejo se despem desposadas ao som de um realejo antigo.

Recolho as teclas, jejuo a fome dos alfabetos. Os olhos nítidos das cigarras recolhem-se igualmente em redes, nos umbrais entreabertos das teias dos insectos e, dos montes, descem agora para o meu colo pássaros incertos.

(Vala do Carregado, Nov. 2007)
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in "Textos Esparsos" © Todos os direitos Reservados

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Meridiano de Greenwich ...

Apenas as mãos
permaneciam geladas.

Na fechadura do portão a chave rodou à meia esquadria, no jeito conhecido. De três folhas, sem os modernismos de agora, em folha de zinco, já a vira muitos dias chegar e partir, partir e chegar.
Naquele dia, o verde da folha – o verde dos campos de arroz -, reflectiu um olhar distante, desapegado das coisas, dos tempos, dos momentos. Um olhar longínquo, inexpressivo.

Esticou-se para além de si.
Languidamente, puxou e correu os trincos. Abertas as portas, pegou o portátil da calçada, a mala. Tirou o casaco, lançou tudo para o banco traseiro do carro.
Em gestos sempre mecânicos, enroscou-se no acento. Ligou a ignição, o auto rádio começou a tocar, avançou, parou dois metros à frente, voltou à garagem. Repetiu um a um os gestos, inversos. Na mente não lhe escorriam versos, nem poemas, nem rimas, nem coisa nenhuma. Dormente!

Apenas as mãos,
sobre o volante, permaneciam geladas. Mortas, inanimadas, ao redondo do momento. Ao despojamento de gestos e de vontades. Longínquas, percorriam o globo de fins de tarde.

Meridiano de Greenwich…

O alcatrão devorava o carro, cuspia-lhe a lama das últimas horas. Filas de luzes esmaecidas perfuravam p’lo umbigo o nevoeiro matinal. À esquerda o Monte Gordo esventrava cúmulos de nimbo, adivinhando-os nuvens rosas sem pudor.
Em estertor de si, o lábio inferior sangrava aos dentes, às palavras deglutidas a céu aberto. Em estilhaços de bombas detonadas no céu-da-boca.

Viajava,
viajava excessiva, nos fusos confusos de um tempo. Nos fusos de uma vida, num tempo em que ainda não conhecia a palidez do verbo. Um tempo abrigo, de lar antigo. Conhecido, apenas o verde sereno dos campos de trigo, o vermelho d’amoras silvestres, os cheiros intensos dos poejos, das segurelhas, das hortelãs, os bagos trincos das romãs e o sabor inigualável dos queijos acabados de fazer servidos no café da manhã.

E o pão escuro, e a oração …
E o cheiro do esterco acumulado no tojo do curral, o fermentar do vinho no lagar, as lajes escorregadias d’acesso ao casal. O loureiro, de folhas perenes, enorme, imenso, e as coroas com que endeusara musas de vento!

Na memória das coisas, as suas mãos pequenas de menina enterradas na massa alva, coalhada a cardos.
A voz da avó (juraria que a ouvia ali, naquele instante…). As rugas afectivas sob o lenço de três bicos. O nariz adunco, o rosto seco e o viço imprevisto na palavra:
- Enche os “xixos” menina que as tuas mãos são boas, não cozem a massa. Tão sempre geladas… Sempre geladas, rapariga, não tens sangue nas veias. Ou será sangue de barata??.. Enche, vá lá!

Não sabia. Obedecia. Enchia.
Escorriam-se os soros pelos dedos, apertados, moldados em concha. Em concha… e o mar ao longe, tão longe. E as redes, e os afectos.
Um a um, sobre a rede, repousavam “xixos”, ordenados, aprumados. E aquele “monte gordo” e encimá-los…
- Bem cheios, ouviste? As freguesas não os compram senão transbordam.
Transbordavam… tudo transbordara no vazio do tempo. No barrento do tempo, no soro pelágico do rio. Do rio e do riso descontrolado.

Ontem como hoje, na tonsura das ovelhas, na recolha do leite, nos gestos repisados, em veredas transversais. No pasto, no balir dos animais, das ovelhas sem lã… era então Primavera. Depois, o Verão, o Outono dos frutos secos, das palavras escassas,
… e dos figos,
e das passas,
e de todos os passos cruzados em meridianos errados.

Estava fria aquela manhã.
Não, não sentia o corpo, não se sentia na alma.

Cerrou o colo trapezoidal, reprojectou-se para a frente, equilibrista, acrobata, nos graus da longitude de si, nos degraus angulados do passado de geografias imaginárias. Cartografou o espaço, desenhou abcissas (des)coordenadas, arrevesada. No ubíquo de uma cartografia de linhas irreverentes.

Álamos percorridos, da beira de todas as estradas e, obstinadas,
apenas as mãos permaneciam geladas…
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segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Álamos percorridos

Álamos percorridos,
da beira de todas as estradas e, obstinadas,
apenas as mãos permaneciam geladas…

Abriu portadas, fechou janelas. A luz resvalava em ângulo agudo, por dentro do seu mundo mudo. Quebrantava-se em rendas saturadas, declinava-se moribunda na tijoleira encerada.
Agachada, afagava lentamente o corpo da arca. De madeira, era agora a vida inteira.

O cheiro exótico do mogno, o desenho epigrafado, o lustro luzidio do óleo de cedro.
O quarto antigo, o alvo da cal …. e a linhaça, as papas de linhaça. Quentes! Estavam quentes as suas mãos, fervente a cabeça emoldurada em caracóis.
- Tens febre, menina, eu bem sabia …
E os untos das galinhas sobre o papel pardo, a recobro de um pedaço de lã:
- Estarás fina, amanhã. Com esta mezinha tudo passa. Pelo Santíssimo, pela Santa Graça …
Passava. A tosse, a farfalheira, o espirro fundo, o pingo desabrido e até a dor que lhe toldava o ouvido.
Retinha-se agora, num estado combalido. Sem sentido…
- Estarás fina, amanhã.
Da rua a luz bruxuleante, o eco do seu gemido, os latidos dos cães e o cheiro nauseabundo do unto da galinha.- E comerás a canja … ficas sabendo já!!!!
Comeria. Que remédio, haveria de não comer? Galinha era dia de festa … com massinha, seria a sua brincadeira.

Sobre a arca jazia a samarra já sarnenta. E mais ao fundo, o tríptico – o Senhor, a Virgem Santa, no colo o Menino ao lado o Santo jumento … e ainda o terço espargido p’la água benta.
Tudo em constante movimento. Num recalcular, num reticular alongado e sempre lento.
Cândida a lupa com que visionava aquele tempo. Passado.
A febre, o fogo estalado no peito. O logro, o desencanto. O tríptico, a Virgem Santíssima, ao colo o Menino. Azul… azul era o seu manto. O tudo, o tanto … o tanto faz.

Abriu portadas, fechou janelas.
Era a tarde de todas as tardes. Não, também nem sentia saudades…
Tomou a chave do cadeado, tomou-se de supetão. Resvalou por dentro do verbo encadeado d’elos fracturados em frinchas de ver verdade.
Varreu-se ulcerada em bafo verborreico, ao ângulo incerto, epitáfio da ventania. Percorreu o caminho de si, por dentro de si. Sem se ouvir viajara desatenta a vida inteira. O tempo todo. Na soma algébrica de todos os tempos. De todos os engodos. Transmutara-se e fora, o fuso e a fiandeira. O linho alvo e o tinto do burel, a espiga primordial e logo, o desabrigo e o pó do trigo, na agremia da encosta, eucalipto erecto e a planura justaposta de folha de papel.
O borrão escorria-lhe a face funda.
O rímel desabara à foz do rio, da íris verde, na sede que, quimérica, que lhe alagara o peito.
O peito, o que lhe ofereça, num sublime aconchego, num suspiro indómito e derradeiro, provindo lá de dentro, do recôndito do seu mais uterino mundo, caldeirão fervente duma emoção primeira.

Lentamente, abria agora a arca envelhecida e oferecia aos últimos raios de sol, os lençóis bordados a anil por sobre o linho.
Cerzideira, cerzia-se em agulhas sem fundo, nas linhas retorcidas d’alma aberta de uma vida.
Sorria de si, numa boca descarnada de dentes. Indiferente!
Não, não sentia frio. Olhou p'la janela o rio. Passado e presente trituravam a sua mente. Não distinguia se agora o olhar lhe chovia … ou chovia efectivamente!

in "Textos Esparsos" © Todos os direitos Reservados

domingo, 6 de janeiro de 2008

"Livre ... livre para quê?"

Livre de quê? Que importa a Zaratrusta. Mas o teu olhar deve dizer-me claramente: Livre para quê?” Friedrich Nietzsche

Enrodilhada, hermética, deserta na imensidão de ser lugar em espera, a cadeira branca olhava a rua por entre as frinchas janeladas do hangar. Baloiçava-se em forma de ventania no coito quadriculado da pedra negra. Na mica, na dolência algébrica da chuva; não mais que relaxamento do próprio vento.

O pensamento: - Escolheu ser livre. Livre na liberdade maior de amar.
Na distância, jamais ausente. Presenteou-se de amor. Deu-se em amor. Amou para além de si. Amou no infinitivo do verbo. No acervo do gesto envolto em penumbras rotas. Ocas as palavras que ainda lhe fustigavam a pele do espírito, que lhe queimavam o céu-da-boca – as palavras não ditas. E as outras…Pássaros elevados em penas agitadas, alquímicas, de negros corvos.

A cadeira.
Aguardava o terminado dos corpos, bolsos da alma, em que se sentaram esgotadas solidões de tempos. Tempos em que as pernas vaguearam íngremes a plenitude da estrada, em que as pernas quadradas se arredondaram devoradas em dentadas de cães. Nos dentes afilados das matilhas sôfregas, esfomeadas.
Os seus cães. As suas pernas…

“Livre… livre para quê?”
De que lhe servia a liberdade se, o lacado vítreo e branco não se colava à pele do corpo. Se em cada fim de tarde não se vislumbrava distendida ou enroscada num outro corpo. Se apenas vira rente o por do sol num prisma invertido e decomposto?

Debruçada sobre a cadeira, estagnada, dorme a morte.
Vazia. Na hipnopatia silenciada dos afectos. Já viveu tantas vezes e, contudo, perpetua-se temerosa, tibieza amolecida nas amarras da vida.

A noite chega, a noite é tal poema, tal morna ou fado. Fado algemado na liberdade da vida. De ser vida. (Ser)vida fria…

***
Caminho calmamente entre a sombra de mim e a sola finda dos meus sapatos. Ali mais abaixo, onde o pó dos abstractos guarda agora o esquiço do teu retrato. Longínquo. Visto-me de esquecimento e parto. Parto e pouco me importa que teu olhar não tenha mais em mim o impacto incendiário do luar em campos de cerejas. Que não me toques, que me não vejas e me não desfolhes em pétalas rubras d’astros.
Parto e sou livre. “Livre de quê?”

“Livre… livre para quê?”
***
in "Textos Esparsos" © Todos os direitos Reservados

sábado, 5 de janeiro de 2008

Escancarei o horizonte

Escancarei o horizonte,
decantei águas rasgadas de todas pontes. De todas as fontes…
Abri as pernas e pari.

Eras o último amor a rasgar asas no perfil vazio do rosto da solidão. Senti os pés gelados cravados em lajeado granítico e julguei serenas raízes …
E em mim refloresceram flores, e em mim poemas ecoaram ondas rubras de sangue, suor e penas.
Escancarei astros moribundos, palmilhei despida a terra nua,
bebi lamaçal de todas as valas, de todas as valetas de todas as ruas, insuflei bálsamos de todos os atoleiros e, desmedida, abocanhei ainda estrelas na ânsia maior de ser sonho, de te dar o meu olhar de mar risonho, de te dar o meu colo aberto e, em mim e de mim, jorraram bocas franqueadas no pavor inóspito de escalpes arrancados às virgens madrugadas.
Caladas!
E os silêncios ecoaram hipnoses, e os poemas dilaceraram sílabas desvalidas de tão perdidas, entre o hipotálamo e a hipotenusa do círculo vicioso da tua vida.
Da tua vida…
Busquei o sagrado no sangue derramado em cruz, bebi do cálice da minha própria dor e fui tua.
Era nesse tempo flor.
Flor incerta de pétalas assépticas, marginadas cérceas à margem do desamor.
Coloquei um lençol de linho na minha cama de mulher, ungi o corpo no perfume esguio, no fio de uma roca por tecer e, semi-deusa, submergi e esperei que sobre mim, que sobre ti, que sobre nós, descesse o Sol das searas de trigo por colher. O azul da luz…
No leite dos cactos e das piteiras embriaguei a solidão da espera de uma vida inteira.
E os meus seios foram teus outeiros em deleite do acontecer.
A noite chegou em gritos amordaçados e os corpos não se ajustaram grudados, nem as bocas, nem os beijos, nem as águas se amancebaram nos seixos perpetuamente rolados, do rio ao mar.
… do rio ao mar!
A noite chegou sem a tarde acontecer…

Escancarei os horizontes,
as sílabas subiram, descendo os montes, em hecatombes de claridade, desaferrolhando silhuetas de pássaros por dentro de todas as chagas. Voaram-se para além de si. Perfuraram penumbra adentro… por dentro de mim, por sobre ti, quebrantados, não mais que amantes pulverizados no desenlaço de em si volver.

São agora sonhos que um dia pari e que vi morrer.
***
in "Textos Esparsos" © Todos os direitos Reservados

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Chão de maças ...

Chão de maças…
Agora nu, gretado de tão esfriado, já não retém o cheiro no vazio perpetuado e na geada das manhãs. Nas franjas das suas saias e na ponta roxa das canelas apenas a lama recorda a enxerga pálida, o leito ardente d’antigamente.
O chão lavrado, o mar arado …
Caíram as últimas folhas…
De reduzido metabolismo restam apenas as que o céu silvestre de Inverno agasalha e talha. As persistentes.
As insistentes.
Friccionava as mãos de gestos dormentes. Olhava o infinito campo e nele o tempo dos ramos elevados aos Deuses, dos ramos afilados a perfurar planos. Todos os seus planos. O verde dos frutos, os frutos e os sucos, e os fluidos astutos. Mecânica de fluidos.
Fluía fria no confuso dos pensamentos. Dos sentimentos.Olhava o campo, o descampado retalhado do momento. Escorria em orvalho e logo sangue, em labareda acesa por cada berma, por cada atalho, por cada filamento de roseira ainda não podada, por cada nogueira hoje arrepiada p’lo incessante frio.
Chão de maças …
Abrigava-se em paredes de pedra negra, no xisto da aldeia perdida na serra. Da sua serra. Ao longe o barulho das pedreiras, o sibilar das pedras na encosta dos medos. Dos seus medos, os medos de menina sozinha nos corredores da vida.
“…não me deixarás mais só?...”
“…não, Teresa, nunca mais!” Deixara! De novo e outra vez. E outra vez de novo …
De novo … na novidade conhecida de se reencontrar a sós consigo nos corredores de uma noite interminável de tão comprida. Perdida!
A noite escura, a fruta apodrecida de tão madura. Os porcos e as pias e as manjedouras vazias. As ovelhas brancas numa dança tenra, os cães ao lado. Sem guia e sem pastor, apenas os seus olhos reconduziam o gado, por entre a sequência de factos ininterruptos e sucedâneos e de jardins excêntricos.
Sem aviso, desfolhavam-se agora em rosáceas folhas quando recordava um texto de um livro antigo, num outro tempo, num outro acto. O argumento, o facto, o contra facto: “quem ama a poesia anda sempre de mãos dadas”…“ Teresa, quero-te  para sempre de mãos dadas comigo…”.
Tanto sentido. Todo o sentido. Chorava e sorria… Dera-lhe as mãos, a alma, o coração. Dava-lhe agora uma a uma, todas as lágrimas com que adubava a crisálida e a magnólia, as que, teimosamente, se transmutavam ou refloresciam sob o céu aguado …
                                   Chão de maças…

Imagem da net.

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...