Sobre mim ...

A minha foto
Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Como um girassol


“O meu olhar é nítido como um girassol./Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,/ E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto…”
(1)



O jardineiro pegou na saca branca cheia de nada e dirigiu-se ao vento. Abriu as mãos. Introduzindo-as profundamente sacou um punhado de sementes. Lançou-as suaves sobre a terra seca, um composto de solo comum, terra vegetal e areia, tudo bem incorporado.
Cobriu-as então um sopro forte dos ventos de fim de tarde.... As  chuvas chegariam, estava certo disso - as andorinhas já tinham partido. Estava só, num excessivo campo vazio. Era um tempo árido e infrutífero, pensava, tantas e tantas vezes, eremítico.  Ele apenas e a sua cognição. E a natureza das coisas, que aprofundava.
Enquanto as chuvas não caiam, e,  como recomendado, decidiu regar a esforço de braços e de baldes, sempre que o solo se apresentasse seco.
Cada dia mais curtos, os dias, diziam-lhe ao ouvido que os frios se abeiravam. Com eles, as geadas. O campo, antes serpenteado a verde e a vermelho, quedava-se  alvo, enregelado. Por esses dias, o jardineiro, ocupou-se de outras plantas sob o abrigo da pequena casa onde vivia. Mas o relógio teimava em mostrar-lhe a mansidão dos ponteiros intolerantes e desassertivos  com a avidez dos seus sentidos.  Haveria que reocupar-se de outras formas, pois então. Assim  pensou, melhor o fez. Com os restos, com os trapos das roupas debotadas das longas caminhadas, com a palha seca dos trigais, habilitou-se a construir espantalhos “ …dizem que as searas precisam de protecção; para isso servem os espantalhos...”.  Tarde após tarde, noite após noite, fez um, e depois outro, e mais outro, e outro mais. Todos diferentes, como diferentes os dez dedos de suas mãos, ocupadas na construção. Os espantalhos eram tantos, que, a casa minúscula onde vivia, parecia  agora habitada.

Semeara girassol. Ouvira dizer que essa planta trazia a bênção em qualquer jardim ou campo onde brotasse. O seu elemento, o Fogo. O fogo que queimara a sua alma, durante tantos anos.

Enquanto esperava pela chegada das suas amigas andorinhas e pela Primavera, estudava. Aprofundava conhecimentos sobre o mundo das plantas e dos animais, e, aos poucos, percebia que tudo era energia, tudo era matéria. Todos um só. Sobre o girassol descobriu as origens: - introduzido na Europa durante o século XVI, "domesticado". Proveniente da região temperada norte americana, onde os indígenas convertiam as sementes em farinha alimentícia.

Pensou então porque escolhera plantar girassol. Nada acontecia por acaso, como tantas vezes havia referido o mestre.O girassol reunia em si mesmo as características que mais admirava nos seres humanos:  alta resistência e adaptabilidade. Duas características fundamentais, de que tanto haviam falado, quando,  por alturas do fim do dia, migrava ao alto da montanha para lhe falar:

“Jovem jardineiro, semeia girassol. Para além de alegrarem o teu terreiro, são plantas com as quais podes aprender lições constantes, das quais, quicá a mais pertinente, seja o facto de girar para o lado que se move o Sol. A penumbra torna os seres vivos mortiços e tristes. O Sol devolve-lhes a energia. Sol e a água abundante, nunca esqueças. Se não tratares do teu jardim, em breve ele definhará e morrerá. Na água, encontras o princípio de todas as coisas. O girassol têm ainda  uma característica que deves sempre recordar: armazenar. Esta planta sabe fazê-lo como nenhuma outra, e fá-lo em quantidades excedentes. Os humanos esquecem as regras básicas da mãe natureza: armazenar – armazenar sempre, para épocas de necessidades. E, podes crer, que um dia virão. Sob as mais variadíssimas formas...
Quando olhas alguém, lá no fundo dos seu olhos, e vês amor, pensa: “pode não durar para sempre…". Então, fecha os teus, e retêm essa dádiva. Se um dia te faltar, viverás da recordação, até que, um novo olhar,  te faça sorrir de novo... seja o sol da tua vida. Quanto à água, deixa que tombe dos teus olhos nas ausências.- a água procura sempre o seu curso. Nada adiante retê-la. Estagnada mata a vida que contém em si. Ajudar-te-à, por certo, a sarar feridas, lavando-as, em primeira instância,  em ti mesmo.
Aprende ainda: esta planta, um dia maturada (formado o total de folhas que deverá de ter), dependerá uma vez mais, do Sol, dado que, o ritmo de aparecimento das mesmas, será governado pela temperatura. Logo, quanto maior for, quanto mais alta conseguir chegar, menor será o tempo necessário para a floração -  ou seja, para mostrar o pleno da sua beleza. Uma curiosidade, meu jovem: as folhas são alternadas, em forma de coração, belíssimas.  Todavia…  ásperas  - o amor,  manifesta-se, na prática, também de muitas formas e feitios - , disse, em tom quase inaudível, prosseguido:
...de certa forma por isso,   muitos não reparam sequer nelas, ou, reparando, hesitam em tocar-lhe, com receios infundados…
 Outra ainda:  para que possa crescer em segurança, têm que desenvolver uma raiz profunda, perpendicularmente ao solo, quase tão funda quanto a altura que pretende atingir. Como poderia ser de outra forma? Sem raízes que a suportassem, tombaria a qualquer abanão de vento... "

Assim falando, o mestre, suavemente evaporava-se tal como tinha aparecido… Reaparecia dias depois continuando no exacto ponto onde tinha parado:

"Sob batuta da mãe natureza ocorre a polinização. Numa cadeia de solidariedade, surgem insectos polarizadores - abelhas, por exemplo, como as de que te falei, quando me sondaste sobre a punção do amor..."
O jovem escutava, perplexo. O mestre continuava:
“...do Girassol, nada, mas mesmo nada se desperdiça. Tudo é utilizável (re-utilizável).”

Deu-se conta, de que, para além de bela, aquela planta ser-lhe-ia utilíssima:  aproveitaria sementes, flores e os ramos. Voraz em saberes, inquiriu o mestre:
“E essa planta magnífica de que me falas, têm outro nome?”.
“Sim, o seu nome científico é Helianthus Annus, "flor do Sol". Semeia no teu jardim e espera! Aguarda com serenidade o dia da sua total maturação. Nesse dia experimenta sentar-te à sua sombra e goza o chapéu que te disponibiliza. E agradece…"

Embrenhado em reflexões sobre estas lições de vida o Inverno foi passando. A construção dos espantalhos contribuíra decisivamente para lhe ocupar as mãos e o pensamento. Por vezes, detinha-se langorosamente  a perscrutar o campo, que, timidamente germinava, a identificar o lugar mais vantajoso para os colocar- não, não os deixaria ao acaso, apesar de, como a todo o criador,  só o facto de antever a possibilidade de  os deixar a sós no meio das colheitas, lhe confrangir a alma. Teria de ser, contudo. Teriam de seguir o seu destino de espantalhos. Todavia, decidira que, de todos, havia um de que nunca se ira separar. Vestira-lhe uma capulana, de cores garridas, vermelhas, verdes, amarelas, encontrada bem lá no fundo do baú do passado. Fizera-lhe o cabelo longo, quase branco, a palha de milho. As feições, desenhara-as de memória. Os olhos, dois corais da praia. E as mãos, ai as mãos … essas deixara-as soltas, livres. Para o abraço...

Num dia de maior tristeza, durante uma forte trovoada,  parecera-lhe que o espantalho vestido de capulana, falara. O barulho ensurdecedor dos trovões e o brilho dos relâmpagos sobre o milheiral, impediram-no de,  no imediato,  lhe prestar atenção. Finalmente, quando tudo serenou, ouviu com mais atenção e percebeu que o espantalho-capulana trauteava baixinho canções da Mãe África...

Como um menino perdido, libertou as lágrimas contidas durante anos, limpou a cara ao pano da capulana, abraçou a capulana, num abraço biogenésico de tão profundo…Rapidamente se esqueceu do mundo. Deixou-se embalar ao som dos sons da sua terra, das canções que conhecia.  

“Dorme, dorme meu menino / Foi-se o Sol, nasceu a Lua / Qual será o teu destino, que sorte será a tua?... Dorme, dorme meu menino.”. (2)

Adormeceu e dormiu como só dormem as crianças: entre os dois renascera a esperança.
     A capulana falava-lhe de África, o jovem de milheirais.
    A capulana contava contos nas línguas ocidentais - aprendera-as falando, com os restantes trapos, no fundo do secular baú…

Naquela noite o jardineiro sonhou: - a capulana envolta em si, nas costas de uma africana. Sentiu e não renegou o cheiro de sua mãe, sentiu e aprofundou, cada compasso das batidas do coração; sentiu o cheiro do milho, esmagado sob o pilão; sentiu os pés doridos de tanto pisar o chão; provou e até gostou, Ebó,  comida/ safra -  farinha-milho, esmagada sob o pilão resgatada do milheiral; a  farinha que temperou com lágrimas grossas, sabor do sal, mais azeite ocidental...
                             
                          ...à falta de dendê, que não o produzia no seu quintal.

Como um girassol…
“… Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar…”
(3)


Citações, 1 e 3 : Alberto Caeiro, em "O Guardador de Rebanhos", 1914
Citação 2: Canção popular de embalar. 
Pintura de João Fróis

domingo, 17 de janeiro de 2010

O relojoeiro sem tempo



Eram dele todos os relógios. Não as horas, dizia amiúde  para quem o quisesse ouvir.
Dizia-o por debaixo do monóculo com que afinava a luz do dia nas pinças pudicas com que lhes tocava os órgãos expostos, desventrados, oxidados pela corrosão salobra em proximidade à borda-d’água. Milhentos relógios que guardava em precisão cirúrgica e que cuidava em  hiantes  de abismos matinais.
Ria-se deles, algo trocista. Sem ele, seriam... nada. Caixas disfuncionais de ressonância vazia.

Perdera há muito o rasto do dia em que, cada um, chegara à sua vida. Alguns (muitos) tinha quase a certeza de que os herdara num qualquer tácito testamento - de pai para filho, de espaço em espaço, de loja em loja,  onde a família assentara arreais, da Rua da Alegria à Belavista, onde agora,  para seu desconcerto, os sons do rock suplantavam a aficion dos demais passante, que ainda há tão pouco tempo, se rendiam  à sua arte.
Da costureira de bairro, à varina, passando pela menina de análises laboratoriais, que trabalhava, dissera-lhe um dia, no Parque das Nações...

Outros (dos seus relógios) juraria que os havia comprado em leilão, em hasta pública. Tudo podia acontecer, não é verdade?  E acontecia, não raras vezes, o que, em rigor da história e para o caso, não mudada uma virgula.

Eram dele todos os relógios, portanto,  e, para que constasse,  dele a vontade de a todos manter vivos - dava-lhes corda, a espaços, paulatinamente, um a um, sem desconcentro. Centrava-se na presunção de que, dessa maneira, cada graveto de metal de que cada qual era composto, cada átomo de poeira que tentasse encravar a engrenagem, cada rolamento minúsculo, cada filamento de cobre, todos, mas todos, fosse qual fosse a função ou o seu oposto (virtude disfuncional), sem qualquer dúvida,  saberiam onde e quando, estava a pinça do comando, alinhados em carreira, antes que manifestassem a seus olhos inequívocos sinais de estrabismo e cegueira. De agonia pulsante. De desvio. De  disrupção. Eram relógios certeiros, de ritmos obedecidos. Nutridos e animados pelo desvelo de seus cuidados…Afirmava!

Eram dele todos os relógios, pois, tão óbvio quanto claro, que comandava ao som crepuscular de um barítono escondido algures numa qualquer distante estação de que, ele, e apenas ele, detinha a chave mestra em mão. Não a vendia nem a trocava por qualquer outra atracção e, como já se disse, noite e dia zelava, para que, há hora exacta, no minuto certo, na casa toda, unida na vertical, por patamares, varandins, escadas - angulares, de caracol - , de alto a baixo, em cada piso, em cada sala, em cada quarto, em sintonia, ecoassem certas as badaladas, os cucos saíssem,  se cantassem as “avés-marias” nas madeiras ressequidas em sincronia ritualista, pois que - ele aprendera na Bíblia -, Deus tivera a certíssima intuição de criar o mundo ao sétimo dia...
E, se assim fora, só pudera ser porque, nalgum lugar escondera o relógio da criação - Um solista confiante que lhe havia soltado a nota certa em pavilhão d’ouvido…Ao sétimo dia, fazia todo o sentido!!!
Um alquimista, alguém que sabia de metafísica? - indagavam do demais.
Pois, a isso não tinha como responder… Desde criança, mais cedo que cedo, o que lhe fora dado aprender fora da mecânica dos relógios, da forma exageradamente contorcionista e necessária para subir e descer a todas as bancadas, a todos os escaparates, a todos os expositores, sem nenhum esquecer,  e, não menos, a importância de ter, bem exercitados,  todos os cinco sentidos. E um sexto, se é que isso poderia acontecer.
Não sendo mareante, como se disse, vivia à beira mar e sabia da importância de saber medir a distância angular dos astros : o quão distantes estão acima do horizonte… Na sexta parte do circulo, num ângulo de 60º, na perfeição do sextante, o seu sexto sentido, dera-lhe então a necessária intuição para, naquele mar de grunhidos, em prenuncio de tempestades, pôr o corpo a pensar. Todo o corpo, indo mais e mais longe, que as leis lógicas da razão. É de emoção que estamos a falar…

Tomou-se de solipsismos  - afinal não fora sempre a sua vida, a mais completa solidão? -vestiu-se a rigor. Casaco azul escuro, assertoado. Não antes de se ter lavado minuciosamente, num banho de tina, demorado. Ainda envolto numa toalha aquecida, dirigiu-se frente ao espelho. Num bafo quente, desembaciou-o. Olhou-se demorada e minuciosamente. Pegou na navalha, que afiou. Colocou-a de lado. Depois a espuma, numa emulsão meio oleosa - a pele seca a tanto obrigava. Mexeu e remexeu, até que, por fim, quando a caneca transbordou, achou o tempo certo. Esticou a pele o mais que pode, deslizou a lâmina sobre a maçã de Adão.
Não, ainda não era o momento.
Dirigiu-se ao quarto. Vestiu, uma a uma todas as peças previamente preparadas. Calçou-se "que um homem nunca pode ser apanhado descalço!!!". A custo, dobrou-se, abotoou os atilhos dos sapatos. Olhou-se de novo no espelho, agora do quarto. De alto a baixo... Aproximou-se da janela. A tarde caia nos fios de telefone. O advento da electricidade... "grande obra a do homem, sua Santidade"
Esboçou um sorriso trocista. Colocou o relógio no pulso, cofiou o bigode...

 Aos poucos, um a um, todos os relógios da casa deixaram de trabalhar. O silêncio total. Apenas os ratos, desinquietos, trepam mesas desconchavadas pelo caruncho e os pés de galo das cadeiras. O cheiro nauseabundo.
Em forma disforme, uma teia de aranha tece a rede e une, um a um, cada peça de um puzzle em  desconstruto.

Foi a enterrar ontem. Dizem, contudo,  que já tinha morrido há muito … ninguém sabe em rigor quando. Eram dele todos os relógios…
             Não as horas.
O seu nome?  Arguto.  Ludovino Arguto.  Ou Lulu, para os amigos ...


Trabalho fotográfico de
José de Almeida & Maria Flores

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Balbucio's


Pese embora a forma como chegara ao bairro, corriam os fins dos anos sessenta, o senhor Aquilino era estimado e considerado por todos. A fazer jus ao nome, já entrado na casa dos setenta, mantinha o porte e a verbosidade de sempre. Sem ocupação outra que não de vigiar a miudagem e arbitrar contendas entre vizinhos, gastava o dia para cá e para lá ao longo da linha branca orlada a amarelo ocre: o “seu” bairro. Em passinhos mansos, como quem “não quer a coisa”, o Senhor Aquilino, às páginas tantas, tinha ganho, à boca pequena, o epitáfio de “o pisa-flores”. O “pisa-flores” para cá, o “pisa-flores” para lá…
Com o decorrer dos dias, dos meses e dos anos, quase todos se tinham esquecido do seu verdadeiro nome, ou melhor dizendo, daquele com que se tinha apresentado aos restantes moradores, quando, numa tarde alcantilada nas memórias de todos, a Vivi, Virgolina de seu nome, por ele se fez acompanhar de braço dado…
Teuda e manteuda, abrenuncio Santo Padre…, bem se via pelo andar da carruagem que este era o destino dela. Nunca teve dez alqueires de siso. O povo diz com razão: "muito riso, pouco siso". Por conta, é o que é. Uma afronta para o bairro. Somos gente pobre, mas digna. Aqui nunca se viu coisa igual…”
Vira. Mas a memória colectiva era curta. E apontar o dedo dava jeito. Enquanto se apontava o próximo não se falava das misérias próprias. Mas isso era “outros quinhentos mil-réis” e, do que vos falo hoje é mesmo do “pisa-flores”. Ora não nos desviemos então…
À porta do número 31, lá estava o Ford preto, chovesse ou ventasse, estacionado e empoeirado pela falta de uso. Só uma ou outra viagem à cidade se impunha e, nesses dias, nos que antecediam ao grande acontecimento que era o de ver o Ford de marcha à ré a levantar poeira por todos os cantos, Vivi e as manas, desdobravam-se em idas à fonte, lavando primorosamente o distintivo da sua “qualidade de vida”… zelando escrupulosamente para que, nem um só risco ofuscasse o fulgor do dito, quando descesse até à, Nacional 10. E, claro, nos lavadores e nas lojas, por onde passavam ou mandavam se não iam, sempre iam anunciado a necessidade imperativa do “Senhor Advogado Aquilino”, ir à cidade receber as rendas e vigiar o bom andamento dos seus negócios…
Por aqueles tempos não se sabia ao certo que negócio tinha o “Senhor Advogado”, nem que rendas lhe eram devidas. Fossem quais fossem, o certo era que, sempre que voltava, a Vivi ostentava o sucesso das itinerâncias e os dias da ausência eram sempre de grandes labutas. A casa arejada, encerada e limpa ao pormenor. As jarras enchiam-se de flores e Vivi dormia e andava de rolos na cabeça vários dias antes. No dia da chegada, defumavam-se as divisões com folhas de laranjeira e rosmaninho e mais umas quantas plantas secretas, por via dos maus-olhados. Vivi vestia um dos seus melhores vestidos, as manas gastavam meio dia a ripar-lhe os cabelos até ai enrolados em rolos, como já se referiu, e cuidavam para que tudo fosse a contento do “Senhor Advogado”. Os acepipes, o prato principal… O vinho...
E, ei-lo que chegava…
Nos dias seguintes ao regresso, quando os homens voltavam das fábricas e dos campos, lá estava ele, encostado à figueira centenária, com o cachimbo da “paz” na queixada adunca… Esperava-os para lhes falar da cidade grande e, como não quer a coisa, ir ouvindo aqui e ali o que lhe interessava ouvir: dos bulícios, dos desconfortos, dos anseios e movimentos dos trabalhadores: - “Confidente, meus senhores… estejam comigo à vontade, mas olhem o balbucio… falem baixo, nada de confusões, perguntem, perguntem que, no que puder vos hei-de ajudar… mas cuidado com o balbucio, homens, cuidado…É que há a lei e o espírito da lei, como sabem…”. Enfatizava o “balbucio”, vezes sem conta… O eco propagava-se em mim, desmesuradamente: “Balbucioooooooooo”…
Menina que era à altura, agarrava-me ao macaco que meu pai vestia, tremendo que nem varas verdes… Balbucio? Quem seria? Se havia uma Balbina, uma Ti-Balbina, podia ser um Ti-Balbucio… mas não me fazia sentido… Os “Ti” da serra eram todos pachorrentos e boas pessoas e aquele “Balbucio” a fazer fé no tom com que era prenunciado, pela certa era ou bicho ou coisa ruim… Temia, pois. E, porque me haviam ensinado a não me meter nas conversas dos adultos, não perguntava nada mas quando a noite tombava e as estrelas se escondiam no galinheiros das minhas “pitas”, escondia-me por sob todos os cobertores e rezava ao menino Jesus para que me livrasse do “Balbucio”… E ao pai, à mãe, aos primos, e aos vizinhos… E à minha cadela Traquina, e ao meu gato Jeremias… A todos. Todos…
Correram os tempos. As viagens continuaram. As do Ford, as do Senhor “pisa-flores”… E, curiosidade das curiosidades,  a aldeia deixou de ser tão tranquila…
A cada “itinerância” do Senhor Advogado, correspondia uma agitação sem comparação no antes… Homens estranhos começaram a visitar a aldeia amiúde. A visitar as casas de cada um. A vasculhar as casas de cada um, detalhadamente. As vidas de cada um…O banzé, o “balbucio” tinha por fim chegado sem aviso… Mais baixo que se pronunciava o cognome de “pisa-flores”, passou a correr outro cognome como senha … “o Pide…” Mas não a tempo de uns quantos, aqueles que haviam solto a língua naquelas conversas inocentes de fins de tarde sobre as figueiras dos figos de capa-rota, não terem “rebentado a boca”. Uns presos, outros admoestados e devolvidos provisoriamente à liberdade…
Agora já ninguém confiava a disputa das contentas ao Senhor Advogado, nem sequer paravam por perto dele. Agora era o tempo de cerrar fileiras a estranhos ao bairro. E cerrar a boca e abrir os olhos e os ouvidos. E medir o rigor de cada palavra. “da lei e do espírito da lei”, dos rumores e dos balbucios, do “diz que disse”.
Não disse! Não ouviu! Não viu! Nem sabe quem viu, ouviu ou disse…
Estancar a verborreia num garrote apertado… Apressar o passo!
Afinal, foram dele sempre as palavras “olhem o balbucio, meus senhores, olhem o balbucio…”.
                            E minha a intuição de que “balbucio” só podia ser coisa ruim…


Trabalho fotográfico: Dias dos Reis

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Caminhos de Fé...


Importava dizer como a conheceu.
Do que se recordava, fora num daqueles dias em que os parceiros de redes sociais se interligavam. Não era interna, não fazia parte dos a que chamava “os nossos”.
Viu-a chegar, num andar lento e pesado. As pernas inchadas, rubras, grossas como troncos. O corpo largo, quase quadrado. Vinha sozinha. Cumprimentou num sorriso semicerrado quem estava. Entrou a custo no autocarro que os haveria de levar, a todos, técnicos, voluntários, idosos - institucionalizados ou não -, a um dos passeios coordenados pelo poder local.

Era Primavera, os dias já largos, claros. Para trás ficavam os chuvosos que os haviam retido em casa, tementes às enxurradas que, tantas e tantas vezes, não poupavam as gentes nem os bens das Lezírias. Nem os dos montes. Nem os das serranias a jusante. Na fúria das águas não se confiava, diziam todos, e certo era. Cautelas, portanto. E a bênção de Deus e rezas a Santa Bárbara. E a todos os demais santos de suas particulares devoções. Nunca seriam em demasia, face à força das águas…
E aquele tinha sido um Inverno caudaloso, sem dúvida, em que, para além das chuvas, por vezes diluvianas, o frio se fizera marmóreo, colando pestanas e vontades. Em suma, dias e dias de forçada reclusão nas entranhas da Instituição, alegrados a espaços pelas visitas - também elas escassas -, dos familiares, dos amigos…

Os dias que antecederam ao passeio foram de grande excitação - a ida a Fátima era sempre um momento especial, quer pela religiosidade intrínseca do local, quer porque, em regra, marcava o início da temporada das saídas.

Entrou a custo, muito custo, no autocarro cedido pela autarquia para efeito. Valeram-lhe as mãos, as forças, das auxiliares. E as palavras de estímulo que ouviu “...suba D. Arminda, vá lá, ponha aqui o seu pézinho, apõe-se sem medo em mim… sou pequena mas sou de ferro, a senhora sabe..."  e, lá do cimo, rés ao volante, tão redondo quanto a barriga, a voz do motorista: “ora aqui temos a D. Arminda… desde o ano passado que não a via… cada dia mais nova, é o que é… hoje o dia é de Fátima, trouxe o terço??…”

Sorriu e subiu. Subiu os três degraus que a içariam ao interior do autocarro. Olhou ao redor a medir os passos e os espaços vagos. Necessitava de quase dois… Maria fez-lhe um sinal…
- Aqui, D. Arminda (acabara de ouvir o seu nome, pela primeira vez). Aqui, se não se importar. Faz-me companhia, por favor…, disse-lhe, afável.
Olhou-a desconfiada. Donde sairá, que não a conhecia? Olhou os demais, os “institucionalizados”… e, sempre ajudada, sentou-se. Maria encolheu-se quanto pode de encontro ao vidro lateral. Desejou ter menos vinte quilos, se possível… e, intimamente,  sorriu de si mesma e dos seus pensamentos “credo, seria um pau de virar tripas…”

A viagem, por fim, começou. Tomaram a Auto-estrada do Norte, rumo a Alcanena. Ao lado direito, a vastidão das vinhas e das lezírias, afastavam-se vertiginosamente nos primeiros raios de sol da manhã. E as águas sempre adivinhadas do rio, de igual maneira. Alguns cantavam, outros, de pandeiretas em punho, tentavam acompanhamentos desafinados. D. Arminda era total silêncio. Uma lágrima deslizava-lhe as rugas pouco vincadas num rosto largo. A bandolete, em desuso, de várias décadas, sustinha-lhe os cabelos grisalhos. As mãos sobre o colo retorciam-se em ânsias. Desconforto nítido. De ambas. Maria por não saber nada sobre D. Arminda, optou por nada fazer a não ser, tornar-se "transparente", e delongar-se na paisagem.

Estavam agora em pleno Parque Natural da Serra de Aire e Candeeiros. O panorama alterava-se a cada segundo.  A rocha,  sempre presente. Os algars, os campos de lapiás, as dolinas…estranhas formas e estranha, gloriosa, a grandeza da natureza, pensava para com os seus botões.

Aqui e além, subiam aves… Aves que, nesta heterogeneidade de habitats, encontrariam, por certo ali, o melhor dos mundos …Gralhas-de-bico-vermelho, bufos-reais… e  flores - que belas as flores - os narcisos de mãos dadas com os alecrins. E, sobre estes, altivos, indómitos,  os carvalhos a par das azinheiras…

Um rumor de corpo mais inquieto trouxe-a à realidade mais próxima. D. Arminda agitava-se no acento, sobressaltada…
- Está bem, D. Arminda? Posso ajudar? Necessita de alguma coisa? Quer que diga ao sr. motorista para pararmos na próxima Estação de Serviço? - foi avançando, na presunção de que, eventualmente, necessitaria de ir ao “privado”…
- Não, não, minha senhora. Estou bem, este caminho é que me trás memórias de morte… naquele dia, quem devia ter morrido era eu, não elas… ou no outro, anos antes …
Silencio absoluto. Maria não perguntou nada. Arminda nada mais adiantou. O autocarro prosseguiu a marcha. Repentinamente...
- ... Morávamos aqui perto, numa aldeia ao rés de Fátima. Quase há cinquenta anos. Com a minha falecida mãe, que Deus a haja… e aqui começou a minha desgraça…
De novo o silêncio. E as curvas sinuosas da estrada agora municipal. E os muros a dividir espaços. De pedra. Como de pedra, de novo, o mutismo…
O autocarro parou, por fim, no parque destinado a essa  finalidade. O Santuário visível já:
- Chegámos. Como todos sabem, vamos dividirmos-nos em grupos. Visitaremos o Santuário, haverá tempo ao recolhimento, assistiremos à Santa Missa… Depois, iremos almoçar - está tudo ali, meus amigos… a sopa, o arroz de tomate, os pasteis de bacalhau, a fruta … a água, o chá, o leite … Os da “comunidade” podem e devem juntar-se a nós. Temos de sobra e, o pouco bem dividido, dá para todos,  não é verdade? … De tarde descansaremos. O regresso por volta das 16 Horas, está certo?

Distribuídos os grupos de idosos pelas auxiliares e técnicos, ajustados os planos de apoio mútuo, cada qual seguiu rumos particulares. Maria permaneceu no grupo de D. Arminda. Deu-lhe o braço e foram lentamente andando. Poucas palavras. As necessárias, contudo,  à vinculação afectiva. Missa assistida, o almoço. E, subitamente...
- Como lhe disse de manhã, menina, foi por aqui perto que começou a minha desgraça… há mais de cinquenta anos atrás… ela teria hoje perto da sua idade … mais velha, mas pouco. E seria como a menina. Os olhos eram tão azuis… às vezes verdes, não sei. Como você… Chamava-se Maria. Maria de Fátima….

Era, pois,  a hora de almoço. Comeu pouco, quase nada. Do que trouxera de seu, do que a Instituição oferecia. Findo o almoço, os grupos reabraçaram-se por interesses comuns. D. Arminda sentou-se junto ao muro que os separava do Santuário. Olhou-a enternecida. Fez menção de se sentar a seu lado. Ela percebeu ...
- Sim, sente-se aqui a meu lado. Temos tempo e tenho, quero, preciso,   lhe contar tudo…
Sentou-se. Antes procurou o saco dos bonés da Instituição. Pegou dois. Colocou um em si mesma  e depois ofereceu-lhe o segundo...
- o Sol ainda anda baixo, D. Arminda, quer usar este?
Abanou a cabeça afirmativamente. Maria colocou-lho levemente. Vazou chá em dois copos, ofereceu-lhe um. Sentaram-se ambas, sob o cheiro dos círios que queimavam próximos, ao som das vozes em conversas cruzadas e das rezas pegadas.
D. Arminda, sem levantar os olhos do copo, bebeu-o num trago e continuou…
- Chamava-se Maria de Fátima. Tinha dois anos, era uma menina delicada, de caracóis louros, com uns olhos tão lindos… naquele dia, deixei-a com a minha mãe e fui à missa. Era Domingo. Quando voltei, ouvi choros aflitos ao longe. Pressenti que alguma coisa de muito má tinha acontecido. Desatei a correr, carreiro adiante, em direcção à porta (nesse tempo tudo podia…).
Vi de imediato tias e primas … E lá dentro, menina, a minha Maria de Fátima… negra, sem vida, nos braços de minha mãe. O médico disse-nos que tinha sido uma convulsão de febre… mas ela nem doente estava…
Minha mãe chorava, inconsolada. Dizia que ela se tinha finado como um passarinho, que nem sofrera… Que Deus a tinha chamado, anjo que era …
Parava. Olhava o espaço ao redor sem lágrimas. Tomava-se de forças e continuava:
- Depois do funeral, partimos. Não havia quem nos fizesse ficar na terra que haveria de comer o nosso sonho… a nossa menina. Meu marido era pastor. Partimos sem destino. Sem bens. Parámos em Vila Franca - tínhamos ouvido falar de que haviam por ali lavradores. Pensamos que ali podíamos começar de novo. E assim foi. O meu marido a pastorear o gado e eu, de criada de fora. Deram-nos uma casinha térrea, num saguão traseiro às casas dos senhores, perto dos estábulos. Nada tínhamos de nosso. Só a mágoa e a saudade …
E de novo o Senhor nos deu a bem bem-aventurança de sermos pais. Uma casa cheia de risos… Uma e outra e outra filha. Sempre meninas, anos após ano. Cinco. Tínhamos cinco meninas naquela noite …A todas demos o nome de Maria, louvada seja a mãe de Jesus…

Os demais idosos ocupavam-se em conversas, em jogos, ou dormitavam, sentados nas cadeiras, em particular os que ocupavam as cadeiras de rodas. Os que melhor se moviam davam passeios circulares e sempre curtos - por via de não perder as horas -, voltando a cada dez ou quinze minutos ao local onde o grupo assentara arraiais. Pontualmente, um ou outro, pedia apoio para a deslocação às casas de banho, ou às lojas de lembranças. Voltavam com pequenos presentes destinados a filhos, a netos. Voltavam de rostos iluminados com as suas escolhas…

Maria ouvia em silêncio D. Arminda. Apenas os olhos de ambas se tocavam.

- Naquela noite… naquele dia, menina, fez há meses quarenta anos, naquela noite de Novembro, depois de um dia inteiro a chover, a chover sem parar, sem podermos chegar à rua, aos bens necessários, sem as meninas poderem ver aos cães e os gatos, que tanto gostavam, sempre dentro de portas, por via do temporal, tudo se alagou. O gado mugia aflito, que era um dó de alma, a adivinhar a calamidade que nos haveria de derrubar a todos. Os cães uivavam, menina, de cortar as entranhas… Rezávamos, tementes a Deus, que outra coisa não podíamos fazer. Acendemos velas e rezávamos …

A minha mais velha, a Maria das Dores, tinha então oito anos. A mais nova era de berço, ainda a amamentava. Quando as águas começaram a encher o pátio, sem escoar nas sarjetas, o meu José tentou chegar ao estábulo para soltar as ovelhas, menina, mas as águas vinham de lá de cima, uma lamaçal só, um mar de lama. Por um pouco não foi arrastado. Conseguiu entrar em casa, trancamos todas as janelas com os poucos móveis que tínhamos, cada um de nós com uma das filhas ao colo; colocamos as restantes três , julgávamos nós, a salvo, sobre a mesa da cozinha… a aflição era tanta, tanta. A água entrava por todo o lado. Tudo negro, menina, como breu. Sem luz, dentro e fora de casa, só a dos relâmpagos varavam  na força dos trovões. Nada mais havia a fazer. Abraçados rezávamos, sempre a segurar a mesa e as meninas…
A porta cedeu, tudo aconteceu em segundos. A cólera das águas era bem maior que a força do meu Zé, que tentava, dando-me a menina a mim, fechá-la. Luta desigual. Tão desigual… As minhas queridas filhas, choravam de medo e frio, todas molhadas… e, menina, num segundo, as janelas abriram-se de par em par, a água nivelada dentro e fora … a mesa virou-se… nunca mais as vimos. Não conseguimos, menina. Quando, por fim desceu, ficámos cada um de nós com uma em braços… Depois disseram que tinha sido na hora da praia-mar, em que as ribeiras e os esgotos não foram capazes de escoar as águas… E a água, na força toda, tudo levou: casas, pontes, pessoas… as nossas filhas, menina. Três das nossas cinco filhas foram-se para sempre naquela onda destruidora.
No leito da cheia, menina, dormiram eternamente… Enterramos-las todas, por Deus os corpos foram encontrados nos dias seguintes, soterrados em entulhos, nuinhas…
A nós, os pobres, parece que as tragédias chegam mais cedo… Naquela noite, menina, perdi tudo (ou quase tudo)… menos a Fé.
E olhando-a como se a visse pela primeira vez naquele momento, perguntou-lhe:
- Como se chama a menina, desculpe …
- Maria… Maria de Fátima…
- Não … não pode ser. Chama-se assim mesmo? Não pode ser … Louvado seja o Senhor...
- Sim, D. Arminda. Foi o nome que minha madrinha, em honra a este lugar de fé, Fátima, me colocou: Maria de Fátima …
Arminda agarrava-lhe as mãos. Afagava-lhe o rosto num gesto incontido. Beijando-a, enrolava os dedos nos cabelos de Maria, em viagens de memórias …"Maria de Fátima"...

O céu escurecia subitamente por entre as azinheiras e as oliveiras, ameaçando chuva. Rapidamente se reuniram os pertences, não fosse a meteorologia ensombrar, ensopando calamitosamente, o que tanta falta fazia… Um após outro, todos os idosos, ajudados ou não, tomaram lugar no autocarro. O lanche foi servido ali mesmo, dentro do veiculo parado. Maria, após o mesmo, retomou lugar ao lado de D. Arminda, que, depois de liberta daquelas memórias, por fim, dormitava, aparentemente serena. Todavia, Maria juraria que no canto dos seus olhos, duas lágrimas incontinentes e teimosas, brilhavam…
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Post-Scriptum: As cheias de 25 para 26 de Novembro de 1967 assolaram drasticamente a região da Grande Lisboa. O Ribatejo foi uma das zonas mais atingidas. Para além das perdas de bens, perderam-se centenas de vidas, muitas das quais, crianças, deixando enlutadas famílias em quase todas as aldeias. O balanço final das vítimas apontam para cerca de 700 mortos, mas os dados do regime foram substancialmente inferiores …
As memórias das populações fustigadas, perduram até hoje, como feridas incuráveis de gravidade social.

«nós não diríamos: foram as cheias, foi a chuva. Talvez seja mais justo afirmar: foi a miséria, miséria que a nossa sociedade não neutralizou, quem provocou a maioria das mortes. Até na morte é triste ser-se miserável. Sobretudo quando se morre por o ser». - Comércio do Funchal.
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Fotografia da época, autor desconhecido

domingo, 3 de janeiro de 2010

"Lulu das Tulipas" e outros galãs...


 [Nada como começar o ano com umas valentes risadas, não é verdade? 
Pois então, porque não?
Acontece que por estes tempos, com a casa a abarrotar pelas costuras, não tem havido espaço à escrita, estimados amigos e leitores. Então decidi republicar "Lulu das Tulipas", publicado aqui em 05/10/2008, com renovados votos de um óptimo e bem disposto 2010.]
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A noite já ia alta. Bem comidos e bem regados, reuniam-se agora no átrio principal da pequena aldeia alentejana, em cujas proximidades, as grandes caçadas sempre se realizavam. Senhores das terras e dos montes, dos casarios mais altaneiros da vila, eram eles, a espaços, sempre que o Outono se adivinhava e o Inverno se consumava no desporto fidalgo das caçadas, que, invariavelmente, refloresciam o comércio. Diurno e nocturno.

As tavernas remodeladas recentemente sabiam-lhes os gostos, os affairs, as conquistas, as manias, para além de todas as fanfarronices costumeiras de quem, não com um grãozinho na asa, mas com a asa cheia de grainhas de vinho carrascão, soltava a língua in extemis … à semelhança daquela noite.

Heitor Coutinho, um dos convivas, do grupo de mais de uma dezena, talvez à hora dos mais lúcidos, mas também dos mais irreverentes, divertia-se a dar corda aos amigos, a espicaçá-los na arte de bem caçar “espécies cinegéticas”: codornizes, faisões, lebres e coelhos, ou porque não, javalis e corças … e nessas, nas variedades de “corças rurais” e “corças citadinas” como as cognominava, era incisivo e contundente. Lançava as achas à fogueira das vaidades de cada um na esperança de que, tocados no seu machismo duvidado se revelassem em novas e sempre mais escaldantes peripécias. E, regra geral, a metodologia surtia efeito…

Ludovico d’Arriaga, menino dos seus já quarenta e muitos anos, calvo prematuramente, solteiro e bom rapaz, filho de distintas famílias Eborenses, a viver à época na quinta da família alhures nas proximidades da Ericeira, sem ocupação definida que não o plantio de tulipas, efeminado e de meneios estranhos, fora, desde sempre, na roda dos amigos, tido como pouco apto para conquistas e procuras – destas e daquelas, das lebres e das corças… das casadas e das solteiras, das viúvas e divorciadas, mas que o próprio afirmava conseguir "caçar" sem esforço… Romances, de que se gabava só mesmo no meio. Da criadagem, que, segundo o próprio, lhe servia “romãs em taças de prata” ou “dióspiros maravilhosos”…
Mas só quando de grão em asa. Nunca doutra forma. No dia-a-dia, senhor de grande mutismo sobre questões afins...

O grupo das tertúlias costumeiras, duvidando, ria perdido e, claro, concluía sempre que, por “incapaz”, o Lulu das Tulipas, delirava. E que, jamais haveria de ter sucesso nas caçadas. Fossem quais fossem as espécies em causa.

Ora naquela noite Heitor Coutinho trazia à mesa redonda uma nova versão de Lulu… e, claro, estava disposto a tirar o assunto a pratos limpos.

- Conte-nos tudo, Lulu, ora vá lá, amigo, não seja tímido. Conte-nos do que se passa lá de Lisboa à Ericeira. Ouvi dizer que o meu amigo é uma fera, que o seu sucesso entre o sexo feminino anda nos top’s bolsistas… que anda para tirar o lugar ao Zézé Camarinha… Ora vá lá, o senhor é de outro nível, meu amigo, veja lá se nos deixa mal posicionados, não se misture com a ralé …

Ria a bandeiras despregadas. Lulu ruborescia, manejava os ombros, virava a cara de lado, esfregava as mãos e logo as escondia nos bolsos da capa alentejana que, friorento não dispensava nunca, nem numa noite de calmaria como aquela na abertura da época, no Outubro dos tempos …

Osvaldo de Mello e Sousa, outro dos comparsas, insistia:

- ...ora, Lulu, diga-nos como foi que tudo aconteceu. Sei que teve um percalço um dia deste, mas também sei que o mesmo só fez subir a sua cotação na praça … que agora as damas fazem fila em espera no seu telemóvel… para aprazar encontros.

Lulu, ou melhor, Ludovico d’Arriaga, aparentado por portas travessas, que disso fazia gala, com as melhores famílias deste país, nada dizia. Mudo e quedo, guardava segredo das suas artes, que nisso, tal como na arte de cultivar túlipas das melhores castas, era rigoroso. O segredo, como sempre de alto a baixo da linhagem se dizia, era a alma e o corpo consanguíneo e a seiva pulsante do negócio.De qualquer negócio. Não falaria. Jamais. Que pensassem o que quisessem, que se digladiam-se em fúrias de saber. Era-lhe indiferente. Não tinham sido eles que lhe haviam colocado o epíteto de “efeminado”?. Pois que mantivessem a crença. Que a divulgassem entre as esposas e amigas. Por ele, havia algum tempo que tinha resolvido a questão …

- Não conta Lulu? Pois saiba que vou contar tudo e já e aqui… quem sabe não serve a lição a algum?... menos “apto” …

Heitor Coutinho sentia o “rabo-de-palha” a arder. Das suas conquistas, dos seus devaneios, se falava nos corredores do Parlamento, na Bolsa e na Câmara do Comércio. Lisboa inteira sabia do caso da “cadeira veloz” … não se podia dar ao luxo de Lulu também entrar em posse daquele trunfo. Repentinamente calou-se. Mas já era tarde demais, a partir dali, seria sempre em frente, um após outro iriam soltar a língua …

Osvaldo, bem bebido, cambaleante, começou …

- Não conta Lulu? Conto eu. Seja. Então não se dá o caso que Lulu, o nosso Lulu, tem uma capacidade infinita de satisfazer as damas? Pois é meus amigos… para além do tempo todo de que dispõe, dispõe de mecanismos de prazer eficientes, saibam os senhores… conta, Lulu??? Não? Então eu avanço. Pois saibam os senhores que, numa das visitas à Holanda para aprimorar a técnica do plantio das Tulipas, o Lulu descambou numa sex-shop … (risos) e, dizem, veio de lá na posse de todas as técnicas presente e futuristas. Ora ai está. Florescem-lhe tulipas nas pedras da calçada, é o que é… mas, como não há bela sem senão, um dia destes, uma “corça assanhada” com que se cruzou e a quem ofereceu a “túlipa rosa”, acordou em gritos até os mortos do cemitério de Sintra, saibam pois vossas excelências …

Olhava em redor a medir o efeito das suas palavras. Lulu, descoberto ali, mantinha-se petrificado e os demais, temerosos de que as suas façanhas mais escabrosas viessem ao trombone, que os seus “rabos-de-palha” cruzados se revelassem, já lamentavam os excessos vinícolas do Reguengo e o empadão de lebre da dona Epifania …(bela produção aquela, valha-nos Deus… as duas ).

Osvaldinho continuava:
- foi mesmo assim, acordaram aos mortos, que Deus os tenha nos santo descanso… Dizendo isto, fazia o sinal da cruz e beijava os dedos sobrepostos em igual sinal. Os dos jazigos e das campas rasas, todos, um a um … e, logo, herético e profano, avançava:

- a Dadinha capou-o!!! Exactamente, a Dadinha, a condessa de Travassos. Sim, essa mesma… capou-o meus senhores. O Lulu perdeu ali no acto parte do instrumento que a nossa amiga desconhecia nele. Foi Dadinha que o contou em segredo à minha esposa, são amigas como sabem. Ora escutem: Lulu, tímido como sempre, pediu a meia-luz. O som reproduzido do piano e as velas de cheiro e, claro as tulipas pelas jarras e pelo chão, eram, o cenário idílico e propício aos grandes encontros. Território neutro, como Lulu desejava. Um hotel perto de Sintra, onde poderia contar com a descrição dos funcionários, muitos deles antigos serviçais da sua casa. Aprazaram o encontro. Dadinha entrou pelos fundos. Lulu pela porta grande … bem, amigos, entre avanços e recuos, entre gemidos de cio e suspiros ansiosos pelo replay, Dadinha abençoava o momento e o “efeminado Lulu” em catarse de alma. O pior foi quando Lulu, num movimento mais brusco soltou – palavras dela -, “metade do coiso”… e, apressadamente o tentou recuperar, puxando freneticamente o preservativo retido nas suas intimidades. Não o conseguindo, aproximou-se de vela em punho, mostrando as miudezas diminutas e definhadas …
Dadinha morreu de susto meus senhores. Gritou na força de uma tempestade. Acudiram os mortos e os vivos … os criados e os demais locatários do hotel … não foi Lulu???

Lulu nada dizia. Estava branco de fantasmagórico. A risada era geral. Entre o divertido e o conivente. Entre o preocupado e o ansioso de uma nova história de caçadas a corsas citadinas… Heitor Coutinho desviava as atenções para a estratégia das portas para caçada da manhã seguinte … sem sucesso! A sua história a tal da “cadeira veloz” seria, ainda nessa mesma noite, ali colocada em pratos limpos e, quem dela não soubesse, saberia …

A noite ainda era uma criança afinal …


Fotografia: César Guizo

Parte II desta "saga"  : Leia aqui, pf.

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...