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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

café com letras

de quantas vogais se faz uma vida, um livro, uma página, um parágrafo aberto sobre a mesa? de quantas linhas (programáticas) se fazem, compactas, as tábuas das leis? as mutualidades, as assistências, as necessidades especiais? a vigilância epidemiológica, ambiental? a educação para a saúde, a atenção integral à criança, ao adolescente, ao jovem, o envelhecimento activo? uma escola, uma casa, uma campa, um berço?
onde, quando, e em que  lugar de ontem, deixámos inacabado o resumo rústico e genuíno do que somos desde o colo de nossas mães, ou, para que conste, no ventre, no útero e mais além?  (deixei de acreditar na lonjura dos teus olhos, sabes? e isso dói. e isso inquieta. e pesa e macula como grude nas asas. por vezes, 'inda. o acervo da memória é-me inútil...).
sem vislumbre de futuro, rejeito a matriz SWOT, e, cabotina, por certo, assumo o erro da crença e do princípio - falhei!
entre um gole e outro, em jeito de pausa, vasculho-me por dentro, interrogo-me amiúde, e, sem respostas, remeto-me ao meu mundo pequeno, umbilical e supremo, em que o pouco é tanto e, tanto sendo, me basta ... 
 café com letras!


sábado, 12 de outubro de 2013

na face dos dias: Dulce

(Originalmente publicado em 27/07/2013)

há coisas que nunca mudam. que permanecem inalteráveis ao passar das vidas, ao passar dos anos. 
que o digam estas bagas que recolho do chão, algumas secas, imprestáveis, e, outras, ainda verdes e frescas da madrugada adormecida em chão de folhas e caruma;
que o diga este cheiro, traumático e intenso,  que se asila, desde que me lembro,  nas mucosas das  minhas narinas - a minha avó usava-o para impedir as traças, afastar os insectos, para defumar as casas; fazia-o a crepitar no fogo incansável da lareira. transportava-o, depois, em brasa, ao longo de todas as divisões, a passos largos, para que dele nada se perdesse, rápida.
o perfume percorria todas as dependências, varrendo-as de baixo a cima, de cima a baixo, abrindo-nos, desbagado, os pulmões, os peitos em jeito de quilha de galinha,  ainda frouxos de amores e de vontades, de crianças. e,  dizia-me: respira, respira forte
e eu respirava, primeiro a medo, aquela alma embuçada de verde a percorrer-me  as fossas nasais, os lábios, a garganta, a descer em mim como nas paredes, para subir e logo descer de novo, igual ao rio que dali avistávamos, já desbragado por chegar à foz.  aquele rio de fumo a entrar em mim e a sair, sem licença, sem permissão, por todos os poros, a sair, já meu, tomado da minha respiração, do meu ar, do meu sangue, a sair, como entrara, pela porta da traição, e eu ali, impotente, lacrimante, sem apelo nem agravo. 
mudada por dentro, amolecida, acre e doce, fraca e forte, Dulce, dulcíssima,
respirava de olhos fechados, chorosos, sem saber se, do fumo ou da força indecorosa que advinha da mistura das bagas e da labareda. ainda assim, respirava de novo,  cada vez mais próxima, os folhos das saias a roçar o chão, a varrer os bichos rastejantes, quase a consumir-me de vontades de ser, eu mesma,  parte daquele todo. daquele fogo, animado nas bagas que eu própria lhe acrescentava. - poucas de cada vez, Dulce. poucas. estão verdes, não trazem mal ao mundo, mas, ainda assim, não se sabe. nunca se sabe.  nunca ateies um fogo que não saibas ou não possas controlar. nunca, mas nunca,  ouviste? 
e logo,
respira, verás que dormirás melhor, que não haverá tosse que te pegue, nem humidade que em ti entre.  resulta, resulta sempre, são santas as bagas do eucalipto, repetia-me a minha avó, mulher sem idade à face dos meus dias. agora vai, já chega. vai e dorme com Deus. e eu ia, perfumada pela terra, em passinhos miúdos, adormecer as noites para que não me trouxessem nem a tosse nem os invernos dos montes.
entrava de mansinho nos lençóis que puxava a mim até que me cobrissem por completo.
Dulce, dormes? dormes, Dulce? não respondia, encolhida de pernas e de braços, um novelo de nada, um meada ainda por dobar do que haveria de ser mulher, um dia. abraçava os joelhos com muita força, com toda a força do mundo, um casulo como os dos bichos da seda, contava "um, dois, três, ... trinta, trinta mil ", fazia  batota para que o sono chegasse mais depressa, e não, não vinha. custava a chegar. os passos dela, arrastados, afloravam as paredes, quase que via a caliça solta a colar-se ao negro com que se vestia, quase que a sentia dentro do meu casulo, quase,
Dulce, estica-te. pareces uma rodilha, é por isso que não dormes. não te esticas, a cama não aquece, que mania a tua. estica-te, ou será que tenho que te amarar pela cabeça e pelos pés, como faziam na Inquisição, às grades da cama? com a diferença que, à mão,  só tenho as teias de aranha do curral, mas se não te esticas verás de que sou capaz. ora não querem lá ver que tenho mesmo que te castigar...
esticava-me de mansinho, o casulo a quebrar-se, a pele a deslaçar, a meada a desenrolar-se num emaranhado de fios e vontades - tanto trabalho para nada, agora teria de contar de novo, "um, dois, três, ... trinta, trezentos,  trinta mil ", talvez o  sono chegasse. e, de novo, já longe, mas ainda ali, "Dulce, estica-te, eu estou a ver-te, respira fundo, imagina que és uma bailarina em pontas  presa por  fios de aranha. imagina, Dulce. consegues imaginar? sonha com isto e  amanhã contas-me o que sonhaste. eu já sou velha, não sonho (ou se sonho não me lembro). por isso, contas-me os teus sonhos, combinado? e, para que me motivasse, acrescentava, eu faço-te uma boneca de trapos com olhos da cor dos teus: duas ervilhas doces. duas ervilhas, Dulce ...
e eu ficava a ruminar naquilo 
    "era uma vez uma princesa que não dormia porque, sem que soubesse, tinha uma ervilha sob os lençóis, e, noite após noite, todo o corpo lhe doía. e a alma também. ou seriam duas? ..."
nunca fazia. nem a boneca nem a bola que prometia aos meus primos. não tinha tempo. era quase velha quando tinha apenas trinta anos, e, adulta de todo, quando a conheci. e os adultos estavam sempre atarefados a encontrar desculpas para não serem felizes e para não fazerem felizes os outros;  ou isso era o que eu imaginava quando os via, cabisbaixos, enfadados, a morrer nos limites de cada fim de tarde - adormeciam fincos contra as mesas, subiam aos tombos para os quartos, ressonavam pela noite adentro a concorrer em roncos vorazes com os porcos, a desafiar os alvoroços matinais dos galos e das rãs residentes nos charcos da chácara para onde, sem que me perguntassem se queria, me "despachavam" pela rodoviária,  - Toma conta dela, senhor motorista? ela não incomoda nem vomita, e, lá na Várzea, os tios hão-de ir apanhá-la. e eu subia, os degraus maiores que as pernas, a saia de folhos a atulhar-me os joelhos e  as canelas pejadas de arranhões e nódoas negras - não tomas atento a nada, parece que és cega, pareces um Cristo em chagas -,  a mala para três dias, leve de vazia,  e cheia de inutilidades para as tias, para a avó, e depois passavam três meses, a escola começava, e ninguém me ia buscar, nem a avó "despachava a mercadoria" - ficas cá, aqui também há escola, e tu respiras melhor, não te acoitas de maleitas,  nem fazes lá falta. e já era a feira de Outubro, e os touros já andavam na rua, e os campinos já se engalanavam pelas ruas da cidade, as tronqueiras já estavam fechadas - por aqui ninguém passa, andam os bois na rua, ou querem levar umas cornadas?  e, por fim, a "mercadoria" era requisitada - a tua mãe não pode vir. está a trabalhar. vim eu, é o que importa, não é? ora Dulce, vês como te faz bem estar na chácara? (chácara porquê?, perguntei um dia:  foi um tio, que partiu  para o Brasil e por lá morreu de tifo, doenças de meninas,  ou,  já não sei, que a comprou. nas Lezírias, é uma fazenda, bem sabes, mas é a Chácara  e não se discute. nem mais, seria Chácara...), 
pareces outra, cresceste, esse vestido está curto, temos de cortar esses cabelos, parece uma juba de leoa,  a tua avó é que tem tempo para te fazer tranças, para o ano cresce de novo. não, um dia vou dá-las à Senhora de Alcamé. dá já. nãooooooooo.
agarrava-as,  minhas, louras, quase ruivas. escondia-as sob os queixos; - as tranças não, não; eu penteio-me, madrinha, por favor... se eu me pentear, a senhora não mas corta? 
sem resposta, 
apressa-te, temos de sair daqui antes que soltem os bois e encerrem as trincheiras. dá corda aos sapatos, estica-te, vá, olha em frente, deixa-te de pieguices, abre-me bem esses olhos, ou será que tens medo de incendiar o dia? ainda ficas marreca. será que te tenho de atar um fio à moleirinha contra o céu? depressa, Dulce, mais depressa.
 liam todos pela mesma cartilha, eu,  a corcunda, a marreca, com mais olhos do que cara, "cor de ervilha, enormes, num palminho de rosto",  e, talvez por isso, o medo grande de olhar em frente, de incendiar um fogo que não fosse capaz de apagar
como aquele que via na minha avó quando mo dizia. aquele fogo estranho, brilho de água e sal,  de quem tem dentro mil anos e um só destino. aquele fogo que se ocultava na espada de Lancelot, 
vá, imagina que és uma bailarina em pontas, ergue o queixo e respira. e, do chão, agora, não o cheiro do eucalipto da avó, mas a bosta dos bois, dos cavalos, a areia solta  a encher-me os olhos, o choro sem razão e sem sentido. querem lá ver esta? não queres ir para a escola? já começou a semana passada. ou queres ser, marreca, corcunda e, além do mais,  analfabeta? 
talvez,
a sabedoria pesa. é um fardo, uma canga que nos dobra. quem te andou a dizer essas coisas? os bichos, respondia-lhe. os bichos? andaste à fala com os bichos?? endoidaste, Dulce, endoidaste de vez...
aproveita e diz aos touros que se atrasem ou, tu e eu, levamos umas cornadas. 
atravessávamos, juntas, mais a mala, num ápice a praça. ao longe, e já tão próximos, os chocalhos, os cabrestos...  
...
há coisas que não mudam. 
naquela manhã Dulce levantou-se cedo, encheu o peito de ar, ergue a cabeça, o queixo a esconder a trança semi-desfeita da noite de insónia,  dirigiu-se ao duche, a banheira demasiado alta para as pernas já cansadas de derrames e  varizes,  uma, depois a outra. a água a contornar o corpo. alguma flacidez a inaugurar-se nas carnes secas - o princípio do fim. a água, livre, aberta, depois fechada. as mãos desnudas, reconhecidas dos caminhos de pureza, 
e aquele mimo a que se dava, os cheiros da infância, o Musgo Real, a Alfazema do Monte, a Lavanda, sabonetes reencontrados como que por magia - coisas que não mudam nunca, por séculos que viva fosse. essas e tantas outras. vestiu-se, prendeu os cabelos num puxado sob a rede invisível, colocou uma fita larga a encobrir-lhe as fontes, a ocultar-lhe a nuca, protegeu-se contra o sol indecoroso de uma manhã de Julho, pegou numa garrafa de água fresca, no relógio, no telemóvel, nos fones com que se haveria de alhear do mundo e bateu a porta. depois com a outra, e ainda a outra. finalmente, com a do carro. o vidro lateral direito queixou-se, estremecido ao embate. haveria de tomar mais cuidado, na próxima, ainda há dias substituíra o elevador da janela esquerda, uma nota preta, um despesa impensável para quem contava "tostões" em tempo de vacas magras;  accionou o motor, corrigiu a direcção e seguiu em frente. havia que seguir em frente, se necessário fosse, com duas palas laterais aos olhos, como as bestas no ardil da nora. havia de seguir em frente - era quase velha e tinha a idade de vento em fim de tarde. mas era manhã, e, sem que se impedisse,
estacionou rente ao rio. ergueu-se o mais que pode;  Dulce, ergue o queixo, olha o horizonte, imagina-te uma...

sim, mãe, tia, avó, sim, imagino-me uma bailarina em pontas suspensa por um fio de coco! não, não posso. maior que o universo é-me hoje o apelo ao chão que piso, a busca da essência que atravessou a minha vida. que me atravessa, ainda,  alojada  em cada baga de eucalipto que exalo, à mercê do sol...

Dulce dobrou-se em voo rasante contra a berma da calçada do passeio ribeirinho. laterais, os pinheiros, os eucaliptos, o chão coberto de folhagem amarelada e de bagas. sacou de uma pequena bolsa do bolso das calças, e, com gestos pausados, ajoelhada já a beijar a terra, meticulosamente, recolheu, uma após outra, todas as bagas frescas que encontrou. 
antes que chegassem as primeiras chuvas, antes que fosse outono, a feira de Outubro, os bois na rua, as cancelas fechadas,  as trincheiras engalanadas, 
antes que a esquecessem de novo na Chácara, antes que,
antes, 
haveria de inalar a vida às mãos cheias. uma vez que fosse. ainda que para isso tivesse de romper as pleuras e os pulmões. ainda que...
de mãos firmes, pejadas de bagas, levou-as à face dos seus dias,  à face pálida do seu rosto. impôs-se ao sol, depois de meses a fio de recolhimento. sentiu-lhe, próximo, o fogo insaciável em libertação de aromas reminiscentes, a possui-la como antes, como sempre - há coisas que nunca mudam, Dulce, bem o sabes;  em anamnese  o que  simulava esquecido, o fogo de um Agosto a aproximar-se a quatro dias, a entrar-lhe, voraz, indecoroso, primeiro pelas fossas nasais e boca, depois a percorrer-lhe, ácido e turbulento, a faringe, a laringe, a traqueia, a descer mais fundo,  mais íntimo, a penetrar-lhe como a espada de Lancelot, os brônquios, os bronquíolos,  a encher-lhe os,  igualmente pequenos,  sacos alveolares (bolsas, como a que enchera).  aquele aperto, a pleura contraída, ou, não saberia dizer, se, o estilhaçar do diafragma,  urgente em  separar o tronco em partes desiguais, tórax e abdómen, a parte nobre e as vísceras, a impor-lhe o ritmo da respiração. a essência eucaliptíca a oxigenar-lhe o corpo em premência metabólica, a dor de burro, que tão bem conhecia, desde que,  pequena,  em corridas se deixava tomar pela quase impossibilidade de respirar de traqueia apertada por onde o ar, oposto aos anéis de cartilagem, quase impunha, fortíssimo, o fim, em paredes colapsadas...
ficou assim, por tempos incontáveis. ninguém a esperava...  
Dulce, dulcíssima...
...
o que lhe aconteceu? não sei, só a autópsia o dirá. suspeito que terá inalado, em demasia, o ópio da vida...

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...