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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

domingo, 13 de maio de 2012

Balbucio

(Republicação)

Pese embora a forma como chegara ao bairro, corriam os fins dos anos sessenta, o senhor Aquilino era estimado e considerado por todos. A fazer jus ao nome, já entrado na casa dos setenta, mantinha o porte e a verbosidade de sempre. Sem ocupação outra que não de vigiar a miudagem e arbitrar contendas entre vizinhos, gastava o dia para cá e para lá ao longo da linha branca orlada a amarelo ocre:  o “seu” bairro. Em passinhos mansos, como quem “não quer a coisa”, o Senhor Aquilino, às páginas tantas, tinha ganho, à boca pequena, o epitáfio de “o pisa-flores”. O “pisa-flores” para cá, o “pisa-flores” para lá…
Com o decorrer dos dias, dos meses e dos anos, quase todos se tinham esquecido do seu verdadeiro nome, ou melhor dizendo, daquele com que se tinha apresentado aos restantes moradores, quando, numa tarde alcantilada nas memórias de todos, a Vivi, Virgolina de seu nome, por ele se fez acompanhar de braço dado…
Teuda e manteuda, abrenuncio Santo Padre…, bem se via pelo andar da carruagem que este era o destino dela. Nunca teve dez alqueires de siso. O povo diz com razão: "muito riso, pouco siso". Por conta, é o que é. Uma afronta para o bairro. Somos gente pobre, mas digna. Aqui nunca se viu coisa igual…”
Vira. Mas a memória colectiva era curta. E apontar o dedo dava jeito. Enquanto se apontava o próximo não se falava das misérias próprias. Mas isso era “outros quinhentos mil-réis” e, do que vos falo hoje é mesmo do “pisa-flores”. Ora não nos desviemos então…
À porta do número 31, lá estava o Ford preto, chovesse ou ventasse, estacionado e empoeirado pela falta de uso. Só uma ou outra viagem à cidade se impunha e, nesses dias, nos que antecediam ao grande acontecimento que era o de ver o Ford de marcha à ré a levantar poeira por todos os cantos, Vivi e as manas, desdobravam-se em idas à fonte, lavando primorosamente o distintivo da sua “qualidade de vida”… zelando escrupulosamente para que, nem um só risco ofuscasse o fulgor do dito, quando descesse até à, Nacional 10. E, claro, nos lavadores e nas lojas, por onde passavam ou mandavam se não iam, sempre iam anunciado a necessidade imperativa do “Senhor Advogado Aquilino”, ir à cidade receber as rendas e vigiar o bom andamento dos seus negócios…
Por aqueles tempos não se sabia ao certo que negócio tinha o “Senhor Advogado”, nem que rendas lhe eram devidas. Fossem quais fossem, o certo era que, sempre que voltava, a Vivi ostentava o sucesso das itinerâncias e os dias da ausência eram sempre de grandes labutas. A casa arejada, encerada e limpa ao pormenor. As jarras enchiam-se de flores e Vivi dormia e andava de rolos na cabeça vários dias antes. No dia da chegada, defumavam-se as divisões com folhas de laranjeira e rosmaninho e mais umas quantas plantas secretas, por via dos maus-olhados. Vivi vestia um dos seus melhores vestidos, as manas gastavam meio dia a ripar-lhe os cabelos até ai enrolados em rolos, como já se referiu, e cuidavam para que tudo fosse a contento do “Senhor Advogado”. Os acepipes, o prato principal… O vinho...
E, ei-lo que chegava…
Nos dias seguintes ao regresso, quando os homens voltavam das fábricas e dos campos, lá estava ele, encostado à figueira centenária, com o cachimbo da “paz” na queixada adunca… Esperava-os para lhes falar da cidade grande e, como não quer a coisa, ir ouvindo aqui e ali o que lhe interessava ouvir: dos bulícios, dos desconfortos, dos anseios e movimentos dos trabalhadores: - “Confidente, meus senhores… estejam comigo à vontade, mas olhem o balbucio… falem baixo, nada de confusões, perguntem, perguntem que, no que puder vos hei-de ajudar… mas cuidado com o balbucio, homens, cuidado…É que há a lei e o espírito da lei, como sabem…”. Enfatizava o “balbucio”, vezes sem conta...O eco propagava-se em mim, desmesuradamente: “Balbucioooooooooo”…
Menina que era à altura, agarrava-me ao macaco que meu pai vestia, tremendo que nem varas verdes… Balbucio? Quem seria? Se havia uma Balbina, uma Ti-Balbina, podia ser um Ti-Balbucio… mas não me fazia sentido… Os “Ti” da serra eram todos pachorrentos e boas pessoas e aquele “Balbucio” a fazer fé no tom com que era prenunciado, pela certa era ou bicho ou coisa ruim… Temia, pois. E, porque me haviam ensinado a não me meter nas conversas dos adultos, não perguntava nada mas quando a noite tombava e as estrelas se escondiam no galinheiros das minhas “pitas”, escondia-me por sob todos os cobertores e rezava ao menino Jesus para que me livrasse do “Balbucio”… E ao pai, à mãe, aos primos, e aos vizinhos… E à minha cadela Traquina, e ao meu gato Jeremias… A todos. Todos…
Correram os tempos. As viagens continuaram. As do Ford, as do Senhor “pisa-flores”… E, curiosidade das curiosidades,  a aldeia deixou de ser tão tranquila…
A cada “itinerância” do Senhor Advogado, correspondia uma agitação sem comparação no antes… Homens estranhos começaram a visitar a aldeia amiúde. A visitar as casas de cada um. A vasculhar as casas de cada um, detalhadamente. As vidas de cada um…O banzé, o “balbucio” tinha por fim chegado sem aviso… Mais baixo que se pronunciava o cognome de “pisa-flores”, passou a correr outro cognome como senha … “o Pide…” Mas não a tempo de uns quantos, aqueles que haviam solto a língua naquelas conversas inocentes de fins de tarde sobre as figueiras dos figos de capa-rota, não terem “rebentado a boca”. Uns presos, outros admoestados e devolvidos provisoriamente à liberdade…
Agora já ninguém confiava a disputa das contentas ao Senhor Advogado, nem sequer paravam por perto dele. Agora era o tempo de cerrar fileiras a estranhos ao bairro. E cerrar a boca e abrir os olhos e os ouvidos. E medir o rigor de cada palavra. “da lei e do espírito da lei”, dos rumores e dos balbucios, do “diz que disse”.
Não disse! Não ouviu! Não viu! Nem sabe quem viu, ouviu ou disse…
Estancar a verborreia num garrote apertado… Apressar o passo!
Afinal, foram dele sempre as palavras “olhem o balbucio, meus senhores, olhem o balbucio…”.
                            E minha a intuição de que “balbucio” só podia ser coisa ruim…




Trabalho fotográfico: desconheço o autor

terça-feira, 1 de maio de 2012

Na falha do gesto, "L'Ecole des femmes"

"o que une pintor e pintura é o gesto" - Maria Teresa Cruz

Chovia picaretas em brasa, os eucaliptos atingiam o uivo dos cães em chicotadas de tinta. Na planície sob o pleno das garças e o rosa dos flamingos, o comboio de mercadorias, descarrilado, avançava campos de trigo. Papoilas decepadas, formigas de asa, bichos de contas - ábacos de não fazer contas de tempo antigo. Dava-se. Aqui e além, em nidificação, um tentilhão, uma cotovia. Uma ave-do-paraíso, um mamífero vertebrado. Ninharias sem importância, diria mais tarde. Mais além, uma casa modesta, abrigo de dias de ventania. Uma acácia, um narciso, e as folhas, aí as folhas, soltas de uma irracionalidade consentida. Sem deduzir oposição à face da lei. Sem lei possível, 
o que une pintor e pintura é o gesto,
dóis-me, gritava-lhe, de uma caixa cheia de gritos. Doía-lhe a voz,
pousou o telemóvel contra a cómoda escura. Reluzia ao cheiro da cera. Em bifurcação de imagens viu-se circunspecta no espelho que a encimava e dupla ali. Volátil, etérea. Dirigiu-se ao banheiro, abriu a torneira. A água parada nos canos tingia ferrugem no alvo do esmalte. 
Há muito que os gestos lhe tolhiam os dedos e as vontades, mantos transparentes onde, congruente na sua própria inefabilidade, se debilitavam. A debilitavam. Enquanto fechava o telemóvel Celeste não pode deixar de sorrir. Um esgar sereno, sempre enigmático, nepote de uma caixa de Pandora que adolescia em contra-mão sazonado do seu ainda mais enigmático rosto de criança, intemporal performance de uma arte apreendida no palco da vida - talvez sim, talvez não -, o que une pintor e pintura é o gesto, repetia-se,
e, logo, acrescentando, do outro lado a onda herteziana,  provinda de outras galáxias,  a sua voz a redizer [lhe] em convencimento irredutível, que, tal estado não poderia, não deveria,  ter duração superior a "x" anos, posto o que, por natureza óbvia das cousas, passaria
a outro patamar...à metafisica das coisas intangíveis,
             ou não.
Deixara de [se]ouvir. A alma humana, inscritível, vestia-se das circunstâncias em variáveis desconhecidas até da própria - na falha do gesto, na vagabundagem dos trilhos, no vácuo da propagação, reconvertia-se de onda sonora em luminosa e logo eléctrica, iluminando-a, aura divina de tão pagã,
a paixão alimentava-se a si mesma, dela própria, da carne, dos ossos e das entranhas, num trejeito uno de se redesenhar e colorir, voo a preto e branco das andorinhas, magma ou cinza de um vulcão que, jamais extinto, jazia naquela manhã, quase adormecido, cortando a tela em pinceladas grossas num conjunto de imagens produtíveis per si. E, noutros dias, na inconstância de placas tectónicas sob um mar-chão, aproximava, afundando várzeas em deltas de lembrança e mastros invertidos, cingindo margens, até então opostas. E jorrava, líquida, massa abrupta, adjectivada sem contenção,
naufragando ilhas.
Começou a despir-me morosa. A necessidade de  se desnudar, desconstruir, para se reconstruir de novo. Nos últimos tempos tinha reencontrado o gosto de vaguear nua pela casa. O isolamento da mesma  às restantes era-lhe garante de privacidade. Não raras vezes encontrava razões bastas às suas deambulações - a toalha  preferida esquecida no sofá, a mola do cabelo  igualmente esquecida numa bandeja no hall de entrada, o copo de água, a sede, os sais, o óleo... Num ritual  só dela, solta, a  madrugada intacta desatava-lhe os dedos e era-lhe, veste, manto.
Rodou a conta, em prece, pincelada rude de cor, e ela,
cambraia alva,
cidade-organdi a talar-se, asas aos pés de Mercúrio, num eflúvio breve de sentires. Olhou-se, incrédula, cineasta, guionista, actriz de uma peça que nunca subira ao palco. Esvaídas em ralos de memória, as falas. Todas as falas. Gastas como as horas e tão fortes, tão vivazes,  a perdurar,  a ecoar,  em si   como as notas de um carrilhão uníssono. Não havia gozo nem drama. Como não havia toque, nem hoje, nem vislumbre de amanhã - a água  aveludava-se, ganhava-lhe o corpo. Detinha-se complacente em bica nos poros, a moldar-lhe as ancas, a cintura fina, 
(emagrecia a olhos vistos)
e as lembranças - era-lhe roca nos dedos de fiar memórias nos seios hirtos em fome de serem seara em sua boca.
Recobriu-se,
refez ao entrelaçado dos cabelos no ombro à direita (o esquerdo reservava-o sempre para o poiso de um pássaro exausto vindo do Reino da Dinamarca com quem mantinha a improbabilidade de um diálogo na linguagem das meniaves e a quem oferecera as safiras de seus olhos). 
Cega, pegou no estojo, no cavalete. Colocou a boina de pintora naif, às três-pancadas. Saiu à rua. Na metáfora do anonimato, vagamente vaga-lume, encenou-se de novo. Esbelta, metálica, platinada, reluzente,

(eu não sabia da rigidez das metáforas nem sequer do absoluto desassossego de palmilhar a vida sem beijar teus lábios)
Descomprometida com o tempo,
ali mesmo, na  5 de Outubro,  nas pedras da calçada, abriu o estojo, concluiu a obra. Assinou por baixo: Celeste
Não gostou do nome. Usou a lixívia, da mesma que lhe falara Teresa (a outra), a que usavam os revolucionários indecisos para apagarem nomes, assinaturas comprometedoras contra o regime. Nos anos sessenta... Talvez cloreto de soda, quem sabe? Esfregou com força. O papel rasgou-se. Sem sucesso, papiro igualitário,  abandonou-se sem préstimo na avenida. Ali, onde tantas vezes esperara. A igreja em frente,

(veio a Primavera mas tu não vieste. A morte é-nos agora um lugar mais perto).
Afinal "as fadas não vão à escola", disse-lhe ... mas isso era outra peça... 

De longe vinha-lhe o cheiro do rio. O apelo às profundezas onde começa a vida e sal não salga. A deslembrar-se de quem era, reuniu o que, por de mais, escasseava. Encaminhou-se, niilista, em busca de sol-poente, de um ancoradoiro, de um barco. De um barqueiro, de um porto de abrigo. De uma mão, que fosse. Veio-lhe à mente, de Molière, L'Ecole des femmes. Talvez lhe estivesse destinada a morte em cena como o mestre. Na cadência dos passos apenas ela detectava o intenso odor a decomposição, o desconforto induzido no rastejar dos pés ao peso da alma numa espera infecunda e combalida em vulnerabilidade sujeitada com a própria solidão. 
Apenas ela, e ainda assim, leal a si mesma e aos seus princípios, sentia o aroma incólume, íntimo,  doce  e salgado, de mulher sadia. E a resistência épica ao desgaste.  Celeste…
             
                no jardim em frente um pássaro,  bico-de-lacre em chamamento, acendia a noite em punhos de renda ...



Texto do "baú dos guardados", sem data...

Tela: Wojdynski

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...