Sobre mim ...

A minha foto
Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

domingo, 27 de julho de 2008

... quem era Samuel?

Era uma tarefa árdua, daquelas que não desejamos nunca ter de fazer.
A casa estava fechada havia muito, muito tempo. As heras haviam trepado por sobre os muros, as lagartixas haviam encontrado espaço para viver nos silvados que recobriam todo o quintal.
Uma camada de pó branco e espesso anestesiava-se por sobre todos os objectos. Por sobre os vasos de flores ressequidas e mortas. Por sobre os tecidos dos cortinados, por sobre as camas, enfim…
Chovia lá fora copiosamente. Pedira à Margarida, a melhor amiga de minha mãe que me viesse ajudar. Era urgente fazer o espólio, mexer e remexer naquele mundo fechado depois da sua morte. Jorge, meu irmão estava no estrangeiro. Partira logo após as cerimónias fúnebres. Apenas lhe importava, aliás como sempre fizera questão de dizer, o resultado da venda “daquelas tralhas”. A mãe guardava no coração e não queria objectos que a fizessem recordar. Era um nómada e assim queria continuar a ser. E depois, que poderia haver de importante senão papelada, contas e mais contas, rendas e bordados? Aquele mundo mescla de nossa mãe sempre o confundira. Ora a via a bordar, crivos e afins, ora a via perdida com um olhar dobrado à realidade das coisas no escritório, horas e horas seguidas. Era como se a nossa mãe tivesse várias faces, todas desconhecidas de todos.. e, no entanto, sempre silenciosas. Ternas, meigas… Assim a queria guardar, dizia.
Margarida tardava em chegar. Telefonei-lhe:
“Está muito atrasada, Margarida? Confesso-me incapaz de tocar nos pertences íntimos de minha mãe …”
“Não, minha querida, estou perto, dê-me cerca de quarenta minutos e estarei consigo… sabe que temo a estrada quando chove …”
“Sim, claro … é que está tudo num estado que a Margarida nem vai reconhecer a casa…”
“Luzia, minha filha, a sua mãe nos últimos tempos desligou-se do mundo…”
“não, não é isso, Margarida, é o bolor, a humidade, o pó …”
“ … sim, sim… falaremos mais tarde … Vou desligar, estou a passar por uma zona de muito pouca rede… Beijos, minha querida, até já…”
Avancei. Teria de reunir coragem. Dirigi-me à cozinha, abri a torneira. Uma água castanha saiu dos canos, como se a terra inteira jorra-se pela nossa cozinha … Uma lágrima sulcou-me a face. “… mãe… mãe”
Procurei os chás, tisanas antigas… Hermeticamente fechadas, lá estavam, no louceiro de pinho, orlado de pontilhas de renda. O ópio de nossa mãe: rendas e rendas… bicos e contra-bicos em panos e toalhas, a ornamentar as prateleiras… Um mundo de mil contrastes, aquele.
A água corria agora já clara. Lavei a chaleira, acendi o fogão, dirigi-me ao escritório, o mundo confidencial de minha mãe.
Parei na entrada, como sempre fazia quando ela ali estava, embrenhada no seu mundo, na sua escrita, na fantasia. Parei em respeito, em deferimento, em homenagem a este mundo secreto que agora invadia ... Uma lágrima se soltava lenta e outra e outra ... Mordi a boca, bebi o sal que me invadia a alma. Sorri. Via os seus olhos enormes a convidarem-me a entrar... ouvia-lhe a voz:
"podes entrar, Luzia, entra minha filha ... não estava a escrever nada de importante... entra, vem cá".
Entrava. Ocupava a poltrona de couro à sua frente, ficava horas a tagarelar com ela, da faculdade, dos meus amigos, dos meus projectos. Raramente a mãe falava de si, da sua vida, dos seus sonhos... Do seu passado, da sua infância. Essa, em particular, era tabu. Não gostava sequer que a instigássemos a que falasse:
"não há nada a contar, tempos outros..."
Uma montanha de papel aguardava o lixo, coberta com uma espessa camada de pó, aliás como toda a casa… A secretária mal se via, submersa. Nas estantes, pilhas e pilhas de livros e fotos. Nossas, em especial, minhas e de meu irmão. Canetas e lápis, dossiers e cadernos de argolas…
O computador fechado, igualmente coberto pelo pó dos tempos … não deveria trabalhar sequer. Liguei-o. Todo o sistema era pesado, obsoleto, levou uma eternidade a abrir, mas funcionava para meu espanto.
Quando finalmente o ecrã se iluminou, na lateral esquerda uma mensagem “o Word recuperou o documento 1, deseja guardá-lo?”
Não sabia que fazer… aquele “documento 1” tinha, nada mais, nada menos, que dez anos … dez anos. Tantos quantos aqueles que levara a reunir coragem para voltar aquela casa depois do acidente de minha mãe. Um turbilhão de imagens me avassalou o espírito. O dia de sua morte trágica, em particular. Os amigos, a solidão do após…
Decidi aceitar. O que o Word me revelou foi um texto, uma carta ou simplesmente um conto, de tantos que minha mãe escrevia. Não sei, nunca saberei. Todavia, por detrás daquelas linhas, havia algo de muito enigmático e especialmente belo … Li, transportada para um mundo paralelo, o mundo dos afectos e desafectos, um mundo do imaginário feminino ...
Apressei-me a copiar para uma folha (a impressora não funcionava, nem sequer a drive de disquetes …).
**
Estava agora sentada num banco, lia o que acabara de copiar. Lia e relia. Margarida chegou. Ocultei apressada a folha … uma tarefa ciclópica nos aguardava. Dei comigo a pensar que o amor é sempre um presente, uma dádiva, ainda que os entes envolvidos se neguem a vivê-lo na plenitude …
**
Alcácer do Sal, 2007

Amei-te
Amei-te no estado puro da utopia, nos mistérios das rotas da seda, das caravanas que partiam sem destino em busca de um novo dia.
Amei-te, na genuinidade de ser virgem ainda, numa virgindade de afectos e de gestos. Amei-te, em cada palavra que escrevia, em cada sorriso que te adivinhava quando o meu rosto se entristecia em melancolias de luar. No afago que sentia …
Amei-te ainda, num bem-querer para além do tempo, para além de ti ou de mim. Sem reservas, sem protecção, sem véus outros que não o de me metamorfosear gueixa, odalisca, moura ou mulher. E, neste jeito ternurento, me bolinar por dentro e melhor me entregar… ao amor.
Sabes, pouco me importa se ainda me chamas de insensata ou de louca, de alienada ou perdida. Pouco me importa se me esqueceste ou se me guardas na rota genésica da tua vida. No epicentro de ti. Donde partem a desmando todas as tempestades, todas as mais insanas vaidades, leviandades, todas as asperezas no despropósito de te saberes perdido. Perdido de mim…
O que me importa é se sentes o meu beijo distante a esculpir-se na saliva da tua boca, na pureza ruborescida do milagre da vida. O que me importa é se quando o teu telefone toca, quando a desacerto toca, me imaginas do outro lado da linha … e, por mais que não queiras, ou até te doa, te alvoraças à toa… Não, não sou eu. Não te direi que nunca desejei ou me não apeteceu. Que a que se proíbe do toque, é a outra e não eu. Sim, não sou eu. Não sou eu que me amarro e sufoco. Sou eu apenas a que se amputa de ti se amputada um dia, ficando viva morri. E neste jogo de ser, não sendo, não sei quem é a que escreve hora aqui...
Amei-te. No estado mais virginal, num desassossego de pranto. Guardo no meu regaço, no meu colo, no meu corpo, as palavras que disseste, as que no silêncio mataste – as tuas, as minhas -, e ainda as que por dizer, arrestaste no convés de um navio. Recordo o dia em que te disse: “o nosso caso, Samuel, ainda nem sequer começou …”.
… não começ …”
O texto acabava aqui. Quem era Samuel????
***
“Luzia, por onde quer que comecemos? Pelo quarto de sua mãe? Pelo escritório?”
Sorri a Margarida. Abraçadas subimos ao 1º andar, ao quarto de minha mãe. Não a ouvia sequer…
Quem era Samuel?

sábado, 19 de julho de 2008

Gabriela, escutas-me?

Gabriela,

Abre a varanda ao luar, Gabriela, está lua cheia lá fora como tu tanto gostas: bojuda, avermelhada, alaranjada, tal e qual tantas e tantas vezes, a cantaste… como dizias que a vias, que a sentias, enorme, a sobressaltar-se em ti…

Vem dai, meu amor, que a noite não espera por quem não ousa avançar…

Ouves-me minha querida? Escutas-me? Gabriela, hoje - não ontem, nem amanhã -, hoje, estou aqui e tenho para te oferecer a noite inteira e uma flor que ainda está por nascer. Vem dai Gabriela, anda entrançar os dedos nos meus, ouvir o ruído dos nossos passos colados na beira-rio, o coachar das rãs nos caniços, o marulhar das ondas no Bugio … fundir a seiva das nossas bocas uma última vez… uma última vez… Uma primeira vez de um tempo novo, sei lá… Mas vem, Gabriela, por favor, não me deixes nesta ausência.
…. Gabriela… Gabriela…

***

Passaram já tantos meses, tantos e tão intermináveis dias, que, em certos instantes, me parece que já não recordo da forma exacta do teu corpo, do teu cheiro – cheiravas a amêndoas doces e a tangerinas, do que me lembro … -, a textura dulcíssima da pele da tua boca. E o teu olhar, Gabriela? Era duma ternura sem fim…

Existem momentos em que nem consigo asseverar se alguma vez te tive, se exististe em minha vida ou se a vida existiu em ti, em mim…

As paredes descem agora sobre as minhas pernas, meu amor, esmagam-mas, amputam-mas. Trucidam-me as vontades secretas de dar um passo que seja… Como um íman, as paredes são o que me resta agora … As paredes, Gabriela, são uma espécie de sentinelas do que fomos, do que me recordo de termos sido, antes. Amantes… aqui!

Amei-te tanto, minha querida. Acho que nunca fui capaz de to dizer. Era como se a minha boca nunca encontrasse o jeito certo de pronunciar a palavra certa. Como se, autómato me tivesse bloqueado a determinadas palavras… Como se, por as verbalizar, as desvirtuasse, as banalizasse … Que estranha é a mente humana, Gabriela. Como nos retemos em ninharias e não somos capazes de ser quem somos. Na simplicidade de dizer “amor”, que seja. De pronunciar sem medo a força dum sentimento…
E, como agora gostaria de tas ter dito, minha querida. De, dizendo, ter visto o brilho de teu olhar…

Antes…

Depois vieram os teus desmaios, as tuas permanentes tonturas, os enjoos. Depois os médicos, os intermináveis, infindáveis exames médicos, depois o veredicto final. Como uma bomba em nossas vidas. Tudo o que parecia forte e robusto se desmoronou. Pedra sob pedra. Como um castelo de cartas içado aos contrafortes do vento… e, o pior, Gabriela, o pior (se existe porventura pior coisa que não te poder neste instante segredar ao ouvido, “amo-te” …) foi o facto de, quando partiste, não ter podido lá estar sequer. Não estava a teu lado... Não te pude abraçar, afagar os cabelos em meu colo, como tanto gostavas nas nossas manhãs secretas… Mimar-te … “Mimo-te, Gabriela"…
Não havia espaço para mim… nunca existi em tua vida, meu amor, em boa verdade. Como tu, teoricamente, não exististe na minha. Teoricamente …

Não mais era que nº vagamente incógnito que surgia no visor do teu telemóvel, quando o não “abafavas” como te recomendava a brincar: - Gabriela, abafa o telemóvel … para que te possa contactar…

Não mais era que uma mensagem constante no teu Outlook e, acredito, um sentimento profundo a latejar-te permanentemente nas têmporas e, quem sabe, a mitigar-te as forças. Ou o que delas te restava …

Um sentimento que ocultaste de todos, o tempo todo. Será pecado amar, Gabriela? Não procurámos, não premeditámos … e, em rigor, não evitámos. E tudo faria de novo, Gabriela se me fosse dada a ventura de o poder fazer. Com a única diferença de que jamais deixaria de te dizer milhões de vezes o que me fazias ser. O ser especial em que me tornava quando te sentia a pulsar enroscada no meu corpo… ou, simplesmente, quando o teu nº vagamente incógnito surgia no visor do meu telemóvel … E me fazia sentir adolescente, louco e desabrido, nos meus mais de sessenta anos … Adolescente! Hoje sinto que sou um velho de cem anos ... mil anos, que importa?

Não Gabriela, também não me despedi de ti quando a terra engoliu o que restava do teu corpo, do corpo em que tantas e tantas vezes fui mais eu, mais gente, mais humano… onde redescobri o sentido de estar vivo, me descobri ávido de pequenas coisas, como um simples afago em minhas mãos, em minha face… ternuras pueris, meu amor, que já havia esquecido, desvalorizado há tantos anos… Sabes, Gabriela, ensinaste-me que o amor não tem idade, nem estado, nem nação, nem lei outra que não seja ele mesmo. E que subsiste a todas as catástrofes até àquela que nos separou …

O que me resta de ti, minha querida, senão uma caixa cheia de mensagens, um milhão de mails que falam deste amor “invisível”? O que me resta senão este vazio a abarrotar de ti? Este sentimento de fragilidade em que me sustenho e a dimensão extraordinária da tua capacidade de luta? ... Minha querida … minha querida ...

Foram meses e meses de quimioterapia. Foram meses de combate pela sobrevivência.
Juntos no início, quando ainda acedias a este mundo virtual e, depois, quando já te era insuportável permanecer em pé, distantes: tu a lutares na cama de um hospital e eu enjaulado na condição de “virtual” sem sequer poder saber de ti…

Gabriela escutas-me? Estou aqui, meu amor … A lua está lá fora, Gabriela, vem dai …

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Elementar, da mais básica elementaridade, Vasco...

É elementar. Da mais básica elementaridade, Vasco. Até eu que sou analfabeta já sabia isto. Sabia que isto podia acontecer …

Como é que não sabias? Logo tu, um Doutor, um senhor de leis e de códigos….

Os meus códigos, Vasco, sempre foram da honra e da verdade. Do respeito e da virtude. Da entrega plena e verdadeira. Sempre, ouviste bem, sempre. Até ontem … até hoje… amanhã? Sei lá …

Desde que começámos a namorar e ainda solteiros (e depois de casados, bem se vê…), só tinham olhos para ti. Vivia em função de ti. Dos teus horários, dos teus interesses, do teu bem-estar. Do teu prazer… sim, ouviste bem: Do teu prazer. É disso que te falo nesta manhã em que te escrevo…. Tu, Vasco, eras/foste, o Sol. O rei Sol. Eu? Um quase nada, uma partícula atómica, uma poeira cósmica, que se incandescia com a tua passagem…

Estás atónito? Que te fale destas coisas? A “analfabeta” a falar de assuntos “científicos”? É, Vasco, a analfabeta, não o é completamente … mas olha, isso agora pouco importa. Não é de ciência que te quero falar. Falo-te de afectos. De prazer. De ter prazer, de dar prazer. E, ao falar-te disto, falo-te do que sempre me moveu, me fez estar contigo mais de trinta anos … Acreditar que um dia as coisas mudariam… Não mudaram, contudo, sei-o agora …

Sempre, ao longo de muitos e muitos anos, tentei que me desses valor. Valor ao que fazia, ao que dizia e, particularmente, ao que sentia.

É certo que não me batias ou maltratavas. É igualmente certo que me davas alguma liberdade. Por exemplo: não fazias questão de me acompanhar ao supermercado, à praça, à lavandaria, ao sapateiro. Mas as coisas já eram diferentes se pensasse em ir sozinha a um museu, a um cinema, ainda que de dia … Não te fazia sentido. Como não te fazia sentido prescindires dos teus hobbies para me acompanhares nos meus… Afinal, coisas tão sem interesse, não eram Vasco?

Os anos foram passando. Aos poucos, deixei sequer de sugerir ir aqui ou além. Limitava-me a trabalhar, a cuidar da casa e dos filhos e a esperar que me olhasses. Suponho que por essa altura fiquei transparente. Deixaste simplesmente de me ver. De quando em vez, usavas um outro sentido, o tacto, e tocavas-me… e, lamentavelmente dei-me conta só me tocavas já o corpo, que a alma, Vasco, essa começou a subir, a subir, encontrou uma nuvem e … suponho que hibernou desmedidamente.

Também por essa altura, Vasco, tantas e tantas vezes, desejei hibernar com a alma. Hibernar e não acordar…

Sabes, Vasco, na verdade não me maltratavas… destratavas-me!
Já sei, vais argumentar que são palavras sinónimas… Lamento, Vasco, como sabes sou analfabeta, o Doutor aqui és tu. De palavras redondas saberás pela certa. Mas eu sei o que elas representam na carne, no peito …

Destratavas-me, Vasco, e ponto final. Em coisas tão pequenas, mas de enorme importância. Num simples relato de uma anedota, duma história, em que sempre fazias questão, fosse na presença de quem fosse, de me corrigir:
- “Rosália, não é nada assim …”
E lá contavas, por palavras tuas, mais ou menos rebuscadas o que eu, ao meu modo simples contaria também … Os nossos amigos, tantas e tantas vezes, embaraçados, nada diziam.

Aos poucos, pedacinho a pedacinho, demiti-me da Rosália. Deixei de me interessar por mim, pela minha imagem, pela minha vida. Que vida? … Tornei-me amarga, como se tivesse deglutido um pote de óleo de fígado de bacalhau de uma assentada. Deixei de sorrir, muito menos dar uma gargalhada. O meu olhar turvou, como um rio em dia de temporal. E, Vasco, o pior, pior, é que o temporal permaneceu durante anos a fio…

É elementar. Da mais básica elementaridade, Vasco. Até eu que analfabeta já sabia isto. Sabia que isto podia acontecer … e aconteceu. Um dia, vá-se lá entender porquê, abri os braços, ou melhor, senti que no lugar de braços, me haviam nascido asas…
“As asas são para voar”, Vasco, como sabes…

Voei. Sozinha, Vasco. Sozinha. Visitei museus e galerias, fui almoçar a restaurantes, fui a cinemas e, pasma… andei até de teleférico. Não, Vasco, já não tem medo. Não tenho medo de nada… Claro que não te dizia. Não comentava. Mas também não comentava a ida ao talho ou à frutaria … Banalidades, Vasco. Banalidades…

Olhei-me de frente e vi-me mulher. E, gostes ou não gostes, vejas ou não vejas, tomei conta de mim. E tanto me faz que me corrijas como não, que apregoes a tua sabedoria e a minha ignorância aos sete ventos… Que me não olhes … Azares, Vasco. Sou mesmo uma tela transparente… tão e tanto que não consegues captar o que me habita…

Hoje, Vasco, tenho outros códigos. Não tos vou revelar, não de todo. São os meus. E é por eles que me pauto, à margem dos demais, se tiver de ser. E, nesta lógica de código meu, aqui estou.

Está um sol radioso. A praia tem estado óptima, pese embora os comportamentos de certos indivíduos a quem não foram dadas lições de cidadania … Gente tão, mas tão ocupada, Vasco, que, tal como tu, trabalha no areal da praia … e, claro, grita ao telemóvel, e, claro, me invade a privacidade sem nenhum pingo de respeito pelo meu descanso (para não falar dos bem casados que, de braço dado com as legítimas, passam o tempo a “galar” as miúdas …) Esses, fazem-me rir. Patetas!

Espero que estejas bem… voltarei um dia destes… afinal tenho todo o tempo do mundo. Não tenho trabalho mesmo, Vasco… há males que vêm por bem. Já trabalhei uma vida inteira, a pré-reforma não é afinal descabida. E, quem sabe, não seja hora de dar novo rumo à minha vida??? Li algures que existe sempre vida além da vida ... Esquece, Vasco, devaneios de uma simplória...


PS: Não fui ao supermercado, o frigorifico está vazio. Não te preocupes, não faço questão de ir contigo. Vai e diverte-te …

quarta-feira, 9 de julho de 2008

“Quem és tu, Sara?...”

Sempre se soube desatenta, meio “lunática”, meio aérea.

A comprová-lo um sem número de episódios absurdos: o dia em que foi para o emprego com sapatos diferentes, absolutamente diferentes – um castanho e outro preto, um de salto fino e o outro não, um com um berloque e o outro com uma chapa metálica no peito do pé -, ou ainda o dia em que acompanhou, no seu carro, durante mais de oitenta quilómetros, um suposto tio falecido … Sim porque, na hora aprazada o funeral que passou não era o do seu familiar e, pese embora não ter reconhecido nenhum dos rostos dos seus familiares nos carros próximos, decidiu que sim, era aquele o funeral e segui-o…. Acabaria por chegar adiantada ao cemitério e esperar lá pelo defunto. Afinal nada se perdia… tinha feito “companhia” a uma alma e agora ali estava, no papel de boa sobrinha, a aguardar a chegada do morto que deveria ter acompanhado…

No rosto um vazio e nas mãos rosas amarelas “dou-te a minha rosa amarela”, lera em algum lado. Rosas amarelas, símbolos de afectos, de amizade …

O seu olhar perdia-se frequentemente como se andasse sem ela pelos prados e pelas avenidas. Como se vagueasse em nomadismo de alma… Como se os seus passos se levantassem antes de si e, na manhã dos dias, já se tivessem antecipado às rotineiras tarefas e lhe tivessem aprontado as torradas e o café… Os seus passos, antes de si!

Tempos houveram em que se “enganava a si mesma”. À noite, depois da família estar aconchegada, Sara preparava a mesa do pequeno-almoço, a máquina do café. Cortava o pão, introduzia-o na torradeira e… colocava um temporizador em ambos os electrodomésticos. Quando chegava à cozinha a sua criada invisível, o seu mordomo, haviam-lhe preparado o breakfast… Continental, pois claro, mas era o que se podia arranjar… do mal o menos. Afinal merecia!!!

Sempre se sentiu ausente de si e do mundo. Não raras vezes desligava os comandos e deixava que o piloto automático comandasse a sua existência. E assim acontecia. Tudo se ia ajustando, como se uma mão invisível … (vinham-lhe agora à memória as teorias de Adam Smith e as suas últimas palavras, as que terá proferido à hora da morte: “Liberdade para sempre”...)
Uma mão invisível… uma liberdade para sempre. A sua forma "lunática" era a sua maior liberdade...
Em boa verdade, dos seus tempos de aluna, vinham-lhe mesclados os conceitos de “mão invisível” com os de "liberdade de acção", da sua acção enquanto ser social, da sua determinação operante e operacionalizante, a sua capacidade de agir em sintonia com a sua consciência social. Sentia-se não raras vezes nos antípodas de si mesma. O verso e o reverso. O ser e o não ser.

Eram nesses momentos, em especial, que os conceitos económicos lhe emaranhavam os neurónios. A curva de Gauss, a normalidade dos “trajectos”, o ponto de Cournout…
Não entendia aquele súbito interesse por temas económicos, mas o facto é que a pressão da “economia doméstica”, da "gestão doméstica", faziam-na repensar o factor “investimento”, o “curto e o longo prazo”, os "recursos e os métodos" … e as "economias de escala", e as "economias sociais" ...

A vida era um imenso comboio em que a haviam colocado sem lhe determinarem a função. Ou seria antes uma linha de montagem? E ela, quem era? Pessoa? Máquina?
Talvez! Ou talvez não... Não que quisesse, conquanto, maquinalmente ia empurrando a vida (ou puxando por ela, como preferirem).

A sua vida fora sempre um sucedâneo de actos não previstos em que as soluções haviam surgido de improviso. Improvisada. Resolvia. Desenvolvia. Unia pontas, cerzia e passajava uma manta esburacada de gasta. No fim, tudo parecia perfeito, como se os remendos fossem patchwork, como se aquela tivesse sido, desde sempre, a intenção da obra. Patchwork ...

No percurso impunha-se um distanciamento de si própria. Um olhar-se de cima, como na noite em que, uma hemorregia não prevista, em resultado de uma simples operação às amígdalas lhe ia custando a vida. Tinha então cinco anos... Viu-se de cima, viu médicos e enfermeiras a lutarem por ela... Para quê? Não sabia... eles tinham tanto mais que fazer. Mas lutou também. Sara um dia seria médica (ou talvez não).
Impunha-se o tal distanciamento. Camuflava-se, como intimamente dizia (metamorfoseava-se no seu casulo). E protegia-se expondo-se. De novo nos antípodas de si mesma. Nos paradoxos.

Num destes dias, de conversa com uma antiga colega que não via há anos, ouviu dela aquilo que sempre soube, o que intuía ser a leitura que dela faziam:

- Sabes, Sara, sempre te achei “estranha”… desculpa lá, mas é verdade. Aparentemente és uma tipa aberta, “uma porreiraça” mas, quando achamos que já te estamos a conhecer… ausentas-te de nós e é como se uma barreira se erguesse, invisível e inultrapassável. Desarmas qualquer pessoa. Tão “lunática”, mas tão densa, amiga… perdoa a análise. Quem és tu, Sara?

Sara sorriu… Abraçou a amiga, um abraço sincero e, naquele jeito muito seu de ser “ausente” rodopiou sobre os saltos altos, pegou na mala deposta sobre a cadeira ao lado e, com um sorriso a bailar-lhe nos olhos e um véu de tule sobre ele, respondeu:

- Sei lá, Carminho … sei lá!

O eco perpetuou a pergunta por muito, muito tempo … para além do tempo. Sem tempo, Sara continuou ...

“Quem és tu, Sara?...”

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...