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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

domingo, 11 de maio de 2014

no sangue das buganvílias: Elisa

quando pela manhã o jardineiro chegou não hesitou. num tom firme, determinado, foi indicando, um após outro,  quais os arbustos, árvores de fruto e/ou simples mato, queria eliminar. nem o tom de quase súplica "menina, a nespereira está carregada de fruto... a laranjeira está de novo em flor ... a buganvília está linda, em cor de fogo...", a demoveram do seu intento. seria agora. corte, senhor António, não se detenha em contemplações - a céu aberto o horizonte madruga mais cedo nos meus olhos, com toda a certeza, e, consequentemente,  verei  mais claro e mais  longe. 
e ele, meneando a cabeça lá foi desmatando ao redor da casa, deixando para mais tarde o corte dos arbustos e das árvores, tão contrário aos seus princípios, em pleno período vegetativo, de florescimento e frutificação, de maturação dos frutos - não lhe fazia sentido, ainda que, houvesse quem lhe referisse a vantagem do "arejar da copa, melhorar insolação e até a qualidade dos frutos". modernices, menina, modernices, tudo o que é genuíno, nasce e cresce na medida certa,   a "poda verde" é, a meu ver,  como arrancar do peito um amor que cresce sem medida, um filho do colo de sua mãe - as plantas são tal e qual como as pessoas: sentem-se, choram... atalhou-lhe a fala, a "talhe de foice", em pleonasmo de tempos circunstanciais. mais áspera que de costume, inconfortada no rumo da conversa:  continue, Senhor António, pf., continue. não tenho mais tempo hoje menina, já se faz tarde,  volto para a semana. não, terá de ser hoje, o mais tardar amanhã. tem medo de se arrepender? de todo não, senhor António, nunca me arrependo dos passos que dou, apenas daqueles que, por medo não ousei intentar. meneou de novo a cabeça, não era aquela a menina que conhecia. ou seria e não sabia? fez-lhe a vontade - quem paga manda, a senhora é quem sabe... 
o subir do trato, de menina a senhora, era nítido indicador da discordância.  a sua menina só se podia ter passado, logo ela, que não colhia uma simples flor pelo prazer de as ver morrer de pé, com dignidade... logo ela.
tomou o podão, a serra mecânica e demais artefactos. num silêncio de bicho mudo, cortou despiedado, tronco após tronco, até que, ao longe o horizonte se fizesse perto. anos de crescimento derrubados contra o chão, das folhas aos galhos, das flores aos frutos. uma tela, amalgama de cores, cheiros e sucos, do laranja ao verde, e, a escorrer-lhe das mãos, o sangue ainda quente das buganvílias. 
olhou-o, indiferente. os olhos desmedidos a iluminar-lhe a face - bom trabalho, Sr. António. 
não sente pena? pena, de quê? quando um barco está prestes a virar há que soltar carga ao mar para seguir em frente...
na inexpressão do rosto entendeu que não a entenderia - era notório, para ambos,  o desconforto do vazio do espaço, horas antes luxuriante de viço e cor. certo era que, no minimalismo de que agora se travestiam,  respectivamente, casa e jardim, ela própria quase os não reconhecia. assim tinha de ser! 

ajoelhou-se sobre os picos num pacto vampiresco de sonhos e desígnios, passou em revista todos os soldadinhos de chumbo ocultos numa caixa de pandora -  "o futuro é o presente com sonhos, Elisa". que presente? que futuro? as palavras sábias de sua avó, a lâmpada mágica de aladino - "nunca invoques aquilo que não caiba nas tuas mãos - ao ouvido tísico do Universo, nada escapa ...".
sentia os espinhos da buganvília cravados na carne, e, vindo de cima, uma luz leda e lívida a suavizar-lhe a face. abraçou, então, sem reservas, cada segundo de um tempo findo - uma vez  e outra, 'inda; cada espora, cada pico, cravado mais fundo, cada instante passado em revista, e, a inebriar-lhe os sentidos, os frutos e as flores esmagados contra a terra - por tantos anos, ali...  e, eis que, senão quando, no sangue agora frio das buganvílias, escorrido nas suas próprias veias, retraçou o rumo da sua inexistência: Elisa.

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...