Sobre mim ...

A minha foto
Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Mensagem de Natal ...


A todos quantos (e tantos foram), anonimamente ou não,  por aqui passaram, quero,  para além de desejar que as minhas palavras sejam, em 2010, companhias vossas (e que me saiba acompanhada com a vossa presença), quero, dizia, acima de tudo, desejar-Vos, a cada um, pessoalmente, um Natal pleno de PAZ.

Fraterno abraço da Mel ...

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Por uma mortalha de papel

"Dorme, meu amor — a morte está deitada sob o lençol da terra onde nasceste e pode levantar-se como um pássaro assim que adormeceres."(1)



Ela como as bocas das cigarras. Muda de gestos e de promessas, subia-lhe a roupa até ao rosto que aquecia. Gelado. Hirto. Boquiaberto em espanto. Não a via. Dormia. Para sempre, dormia.

Sem lágrimas (já não chorava) revia passo a passo a matemática da música e do vento que soprava lá fora e que lhe vociferava sempre escombros pecaminosos de um tempo em que, na areia da praia, as mulheres antigas (tão loucas) cismaram de lhe dizer
“Ele não volta. Ele não volta … Esquece e segue, mulher ”…

E ela, eterna de Atenas, envolta em lã ou nuvens de algodão doce, tecia no xaile a noite que sabia de si, de todos os minutos e os segundos - luz e sombra -, enquanto retalhava os dedos contra as escarpas. Azeitonas negras, dizia, desapartadas de um baralho “ao vento que passa”, e que um dia haveriam, por mor de si, de ser, vidência, claridade.
Abria o corpo de si própria e das palavras, sem medo de sentir dor. Esperança vã de que, o dia de hoje não fosse intempérie sucedânea do de ontem, sequer antevisão do de amanhã.

Era o tempo de ser tempo, dizia a contento, pese embora o facto incontornável de que, relojoeiros desatentos, não sabiam ver, no rodar de ponteiros, o rastilho das horas gastas...
Colocava-lhe um monóculo na ponta aquilina do nariz e nem assim…Cegueira crassa.

- Sai dai mulher, tu nem de ti gostas. O mar está para além de embravecido, as ondas rasam o cais e as redes. Que fazes tu a tanto olhar o mar, se sabes, e tu bem o dizes e afirmas que o que amas, que aquilo que te retêm e te fascina, não bóia à tona d'água, sequer navega?
Volta para casa, ao telhado de zinco que te abriga, volta para casa - morada de mulher honrada, e tranca a porta, de ferrolho corrido, que se adivinha, noctívaga, forte, já a borrasca. Em terras altas e no mar largo …Por todos os caminhos onde o diabo perdeu as botas…

Mavilde não ouvia.
Ou se ouvia preferia não ouvir. Grilos falantes em forma de mulheres. Doninhas mal cheirosas, escumalha de mal amadas e invejosas, corças sem pernas a pretender dar saltos… e ria de si e dos seus pensamentos.
Na solidão da praia, sobravam os coices contra o estômago vazio que, de tanto esforço, de ser saco de boxe, sangrava sem parar. O sangue, vivo, saia-lhe por onde encontrava espaço…

Eleva-se sobre o casario.
Sobre as fugas das chaminés. Sobre os restos dos risos que as crianças ao fim das aulas deixavam soltos no pátio da escola. Pétalas maravilha, com que, apensas por pinças, amalgamava em escamas e bordava. Texturas de filigrana.
Seroava solitária.
Entre margens bebia tisanas de folhas que colhia dos bosques mais antigos e, ela, mulher-águia, sem tino nem juízo, sobrevoava a ilha, em voos ubíquos, sempre circulares, sem sair do mesmo lugar. Insulava-se. Do mundo e de si própria.
Ela a ínsula, nem duvidava.
Dele a certeza de que, velho que fosse, haveria de tornar. Por uma mortalha de papel. Por uma onça, por um copo de tinto ou, pelo branco de um cigarro que fumava ali, enquanto na linha do horizonte, longe da cabotagem, consumia sereias rápidas num fumo de cachimbo. Acetilénico, que não travava. Na ânsia de se exceder… Ela sabia. Que lhe importava?

Era madrugada. Acordou com a fúria da trovoada. Das portas a ranger nos gonzos, dos relâmpagos a desembocar na sala e no quarto. Dos ratos sob o sobrado e sobre o forro das telhas. No sótão onde guardava todos os monólogos invertidos. Todos juntos, estonteantes, uníssonos, numa fanfarra macabra.
E os gritos. Assim parecia.

Envolta na nudez do corpo, à luz das velas, no negro da noite mal dormida, em papos de galinha, esfregou os olhos. Assomou-se à janela. Um regimento de gentes maltrapilhas no quintal em frente, onde minutos antes (ou séculos) anjos celestiais a haviam embalado em baloiço de heras e cores de framboesas
- Mavilde, Mavilde… deu à costa. Veio preso nas redes. Dos pescadores da sardinha.

Levantou-se. Vestiu a calma que não tinha. Aprontou-se em segundos. Cobriu o rosto e a cabeça. Tomou lugar na cauda daquela massa anónima que, da falésia se dirigia rumo à praia.
Sob a palidez das candeias, ele. Voltara.

Dobrou-se sobre as vagas, tomou-o em braços.
Levou-o consigo. Deitou-o sobre uma mortalha de papel. Rezou um terço. E deu-lhe um nome.

Adamastor em forma de poema, domava-lhe, uma a uma, todas as suas mais compungentes vontades. A vida, a dela, jangada parada à mercê de um tempo.
E ela, não mais do que timoneira desgovernada na fúria de um sentimento que nada aplacava.
... Amaciava o vento, afagava-lhe o rosto, que beijava.

Sabes, meu amor,
"— a noite é um poema que conheço de cor e vou cantar-to até adormeceres." (2)

***
Fotografia de Dora Leal
Citações, 1 e 2, do poema " Dorme, meu amor" de Maria do Rosário Pedreira


quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Orquídeas, candeias de luz



esta noite sem luz guio-me pelos instintos sediados nos terminais de um corpo que se apressa em partir e, uma vez mais, os meus dedos me conduzem a labirínticas paragens, que mais não são do que galerias de um espaço conhecido - o teu espaço.
enceto o mergulho no interior de nós mesmos, no escuro e na solidão.
percorro a teia de ariana uma vez mais.
galerias infinitas onde, a cada descida, a cada sifão passado, o mergulho se torna mais difícil - são os túneis do tempo.
desço,
tal uma espeleóloga experimentada que nada teme. de alguma maneira sei que não estou sózinha. estás aí, seguras a ponta da corda . és a confiança. trust ....

mergulho, pois, neste encontro a cada momento mais profundo, mais intenso.
sou água, tu és água - tenho-to dito vezes sem conta. mergulho e encontro-me comigo mesma.

a cada descida, sinto que o fim se encontra mais próximo.
oiço, lá ao longe, os rios subterrâneos a calarem-se. estão silenciosos, adormecidos, são serenidade, são mansidão de um tempo que ainda não nasceu . “saudades de futuro”…
em rigor, o mundo subterrâneo que existe sobre a tua e a minha pele. aquele em que mergulhaste há muito tempo - tanto tempo, amor -, pela janela fresta do meu olhar... no mar. aquele em que mergulhei, quando, olhando o fundo dos teus olhos, te reconheci e te aceitei como parte de mim…

desde esse dia, eu, a temente, a cautelosa, decidi descer em rapel a um poço negro, silencioso, e, tantas vezes opressivo, onde as rochas condensam as trevas...
aceitei respirar solidão. esta solidão de ausência e, contudo, pungente de uma presença tão, mas tão forte. és o meu vício e eu, o teu vício ...
noite a noite, descemos as espirais do tempo. conhecemos os mapas de tesouros. conhecemos o leito e as margens de cada um e, numa perícia, num saber trazido de imemoráveis viagens, percorremos recônditas cavernas, sempre, mas sempre convictos de que, do outro lado, está o nosso guia. não improvisamos: confiamos e deslizamos - somos duas gotas apenas. serenadas gotas. talvez orquídeas amarradas para a vida e para além da vida -, como estas, do jardim do éden, que te ofereço. como te ofereço a eterna regra dos dois terços...
nunca a esqueças: - reserva sempre um terço de ti, para o regresso, para o imprevisto. enceta a subida com a calma de quem sabe que aqui, nesta papoa protegida, está quem te aguarda, com tranquilidade de quem já viveu várias vidas, de quem conhece todas as linhas de um grande labirinto e que têm a cruel atracção pelo abismo ...


***
é manhã, deslizo em ti, península papoa encantada. trago ainda as neblinas da noite sobre a face magoada. trago as mãos cortadas das cordas, os joelhos em sangue. são registo inequívocos do esforço da subida. procuro a luz do sol nascente, procuro os brilhos que me envias reflectidos em milhões de espelhos ... procuro um sinal de que estiveste aqui e, encontro, uma a uma, seis novas espécies desabrochantes de orquídeas.
belas, como sempre. raras, enigmáticas, em várias tonalidades de sol poente ... em matizes de laranja e rosa - fragmentos da rosa que desabrochaste - pétalas de rosa do deserto, pedaços de luz jorrante na manhã ensolarada. e tanto mais.
está frio, envolvo-me no meu xaile de lã escocesa, passeio entre flores, serenamente dissipando aos poucos a sombra da noite.
desatenta, o xaile prende-se de repente sobre alcantilada fraga. tento que se solte. está numa posição de contraste.é, num só tempo, sombra e luz. tento uma vez mais, mas entre ele e eu, o abismo. ou a própria morte.
meu xaile, companheiro de tantas noites, o meu xaile de lã ...
olho-o e hesito. sustenho-me no ar vento a varejar a fraga inóspita; quase que cedo, quase que plano - pássaro de seda, fio de prata, gota ou gotas caídas sobre o meu mundo -, convictamente, sou, "tudo e nada"!
desisto e, como por magia, sob o sol avermelhado da manhã, sob os meus olhos, renasce, inesperada, das cinzas, uma bela e misteriosa flor: uma nova espécie de orquídea. dizem que uma das mais fascinantes e sensíveis flores já vistas na natureza...

ajoelho.
deposito em ti todas as minhas dores, todas as minha mágoas. e rezo. rezo-te, senhora dos remédios, tu que te vestes de azul e mar, que estás aqui a vigiar esta península, deixa que me consagre a ti, nesta orquídea em flor - candeia de amor!


sobre mim, sombras de mil asas de gaivota. tombo enfim. estou tão cansada ...
"

***

o que lhe aconteceu?
conta a lenda, que terá morrido quando os homens sem delicadeza, sem dela se darem conta, a pisotearam e a deixaram ali, no chão, caída. por tempos e tempos. para além dos tempos..
mas que, a sua semente, por vontade dos deuses, revive a cada madrugada nos germes dos espeológos que se aventuram a descer a fraga da papoa no encontro com as suas mais secretas rotas e faz deles pessoas raras, belas e solidárias ...

conta a lenda que, na papoa da vida, elas, as orquídeas, são candeias acesas sobre os altares do amor, candeias iluminando as trevas, os desalentos e que, em cada romaria em homenagem à senhora dos remédios, lá no cabo carvoeiro, os pescadores percorrem a papoa, em busca de uma que seja, para com ela louvarem à sua protectora...

conta a lenda que

a semente do amor, jorra em cada ventre de mulher, em cada abraço com que acolhem os filhos da terra e do mar, no fim de cada viagem ao vulcão de si mesmos.

conta a lenda ...

_
Nota: Texto publicado aqui em 2006
Foto: Mel de Carvalho in Loro Park, Orquidário - Tenerife

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

não fora as estrelas

não fora as estrelas
e os dedos adormeciam sob a pele.

rasgam-se os dias - ermidas ou santuários - onde, a cada instante, numa remota (in)possibilidade se erguem do chão de pedra fria, sulfuretos de águas termais. esboçam os dedos as vontades, os sorrisos de frescura, os lençóis lavados onde nunca se deitaram os corpos. e advêm de lá de dentro as vozes, na maciez da pedra, ledda de amores, em diálogos improváveis, achados virgens na doméstica indemne dos sentidos. demora-se em nós a fonte, a lírica matricial da água, de amante-amigo, se nos tardamos, corvos na noite, aquém da serra, ou albatrozes divididos, sem leme, na linha do mar…

não fora as estrelas
matrizes entre o profano e o litúrgico
e não nos restaria sequer o cheiro empapado na poeira, um ocre mate de tílias e de rosas, quando a noite remota de bem longe e volta à nossa beira
solitária.

não fora as estrelas
velidas e alvas, como moçoilas (in)versas das trigueiras, em baloiços de vento e não te diria desta perturbação, deste gesto que negando ao mundo te ofereço implícito no poema que construo vazio e branco por dentro.

não fora as estrelas
e este clima marítimo,
a beira-mar do tempo, que nos agrega e salga a alma, não traria, desejando, um navio em cada movimentação de água. sequer as fainas das gaivotas, aqui, ao rés do rio, neste balcão onde me sento, seriam, tal qual são, desta forma: intempestivas de tão nervosas. ratos de ar, diz quem sabe. oportunistas, preguiçosas. por não se dedicarem a pescar … como é de sua natureza própria. para além de que propagam moléstias e maleitas de ordem vária.
mas que me importa, se a cada voo picado por dentro do meu prato de batatas, residuais batatas fritas, que não como, em desperdício, enchem o meu mundo de chilreios, de trinados coloridos? se, na asa escarpa que sobe agora me elevo e me alteio e, de lá do cimo trago
flocos de algodão doce
e flores
briosas
com que te enfeito os cabelos, no branco que se adivinha, no adiantado da hora?

não fora as estrelas
e este meu impulso descontrolado, este impulso afectivo de as guardar em peito, arrecadadas em formas circulares de grinaldas e diademas para com elas engalanar as cordas e as barcaças… e seria
folha solta
noz quebrada
no deslizar de verbo. tão frágil, tão pardacenta, rente à pedra,
rente à água, fortuita, ora pela ribeira do tejo ora na embocadura do mar de vigo, onde o frio é mais frio
mais intenso, na forma vacilante e lenta, lendo de joan zorro, uma a uma, todas as cantigas de amigo. leio-te esta
“pela ribeira do rio salido/trebelhei, madre, com meu amigo//amor migo/que non houvesse/fiz por amigo/que nos fezesse…”

não fora as estrelas…, não fora...

***
fotos: Mel de Carvalho, Parque das Nações

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Sim, eu sei... amanhece agora

“Sim, sei bem/(...)
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,

Enquanto dura esta hora,/
Este luar, estes ramos,

Esta paz em que estamos,/Deixem-me crer
O que nunca poderei ser.”
Fernando Pessoa


Sim, bem sei, sei de tanto e tanto mais
do quase tudo, do etéreo, do volátil, da precariedade do tempo, do tempo que a cada letra se esgota numa ampulheta contínua.
contudo
deixa que confie sem confiar em demasia, neste encapelar de asas que acalentam as minhas
dores
nas palavras
subliminares que enroscas tíbio, vacilante, verbo, poema que escrevo e me inscreve, no papiro de um Kronos, algo desatento,
ao meu redor quando
o sangue
não sobe a montanha, o monte do Senhor da Boa Morte,
sequer
a árvore secular da vida e, a desconcerto, se perde na pele rota de uma mente estiolada
se esvai por todos os canais de rega em regadio na planície
de sequeiro
de um rio que é
já mar. oceano de que não distingo o tinto: azul-cobalto, azul-celeste, que tem cor marítima, de tom escuro, pouco diverso do índigo....
ou se reveste de, em fases sucedâneas de
soluções concentradas dos sais de cobalto ou de trilhos pontiagudos, asteróides e de estrelas: azul-ferrete? não por esta ordem, está claro, mas de acordo com a de uma paleta que se imiscua e se diz(tinta)
negra
quando um navio carregado de nafta explode, no excesso de carga, nos braços de um poeta e as aves sem forças, anímicas, ou outras, ficam presas num voo sem pressas…delongam-se os dias, nos bicos com que escrevem riscos na tela aberta de um horizonte - nardos ou cardos silvestres ou ainda, e porque não, na mão que se oculta em ramos de violetas. no vime dos cestos, nos açafates, nos sonhos…

deixa que te acredite na preservação da natureza
das coisas insondáveis
e das outras – as reservas naturais, as zonas húmidas e extensas, os sapais, para que, juntos possamos olhar a cada dia que amanhece
e nos amanhece o olhar
a avifaúna aquática
a migração dos pássaros, os mamíferos, os répteis, os anfíbios.
A nidificação das espécies. o barro dos corpos e dos ninhos esconsos por entre os caniçais, nas morraças… na gramata, na salgadeira e na flora fina dos abraços desta Lezíria …

tudo passa, sabes? tudo passa “enquanto dura esta hora”
porquanto, em comprazimento, se aprofundam mouchões no umbigo de Géia, estremecem por sob a ponte as falhas tectónicas e o mar, o mar da da palha se entorna largo, largo
no lago de um olhar
se, num abandono se comprazem
por nós, as orlas ribeirinhas e as margens que a vista já não alcança e donde, aljazares do Tejo, plataformas verdes, sementeiras de arroz, me acenam nas largadas de pássaros pernaltas ou, quando ainda, em segredo de vidro estilhaçado os oiço, no levante dos restolhos, p’la noite adentro. sibilam pedras na encosta, meu amigo nos tons de um fado… vadio fado. vadia a memória dos ecossistemas do estuário. estuarinas sejam, enquanto esta hora dura, enquanto o ar se perfuma branco “in vítreo”
nas giestas
retintas a papoilas
e as castanhas cheiram ao frio e às apanhas e nos aquecem a palma aberta da mão - é tempo de castanhas, sabias?? - enquanto
de lá do fundo vier o cheiro do vinho novo a fermentar nos pipos, a relembrar-me da importância
do sector primário e agrícola
e aqui, a chuva miudinha emporcalhar os vidros que a Salomé lavou ainda há pouco e eu permanecer sem nada que me fixe à terra que me viu nascer a não ser
esta vontade de me enlaçar fio a fio no tecido de um tear antigo, manta de organza e estopa…

***
Autor da foto: Armando F. Sousa

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Luar de pedra

Ah, este luar de pedra em que me deito
E adormeço. Quadratura do circulo.
Verbo
que me atazana o génio,
espírito, a alma, sem que reste dela, um centímetro que se seja, uma parte infinitésima, onde não se alberguem as memórias que, desejando não esqueço e do que, querendo esquecer, me lembro. Sempre.
O sangue, o sangue a escorrer-me quente pelas pernas. Aquele lugar a que chamavam de cama para dar à luz…
As pernas
,
soltas
vacilantes
contra
o metal erguido. A lágrima, a boca seca. O grito… O grito…


nãoooooooooooooo…
... depois, o nada. O vazio do ventre, o vento
a desmoronar muralhas de sal, no gume da água. De chumbo, o céu...
Era então Setembro.

Sentou-se ao meu redor. Como se fosse eu o espelho, a chuva que bebia, sede de ser.
Por um instante que seja
Gente
ou bicho,
não me disse. Fiz por não distinguir. Trazia o verde da noite por dormir empalidecido no cinzento do vestido. Elegantérrima. Altiva. Um corte antigo, num revivalismo incontornável. Revivida do que fora, dizia. Ou do que seria, insistia eu em dizer-lhe: - Olga, é uma bela mulher… Tanto ainda por viver...
Sequer me deixava continuar. Num sinal ríspido de dedo erguido, por sobre os lábios, um
“chiu, não me diga nada, deixe-me continuar”…
Deixava. Era dela a palavra:

…Ontem num programa de televisão ouvi dizer que as perdas resfriam os afectos. As imagens a condizer, o olhar daquelas mulheres, negras de tudo, até de esperança. Os filhos perdidos, no antes, no já, nos nascimentos. Nados-mortos. Como os afectos que encolhem como moluscos em risco por saberem da improbabilidade de os ter. Um beijo que seja quando a tarde, de cansada, tomba no rio ao fundo e a luz se esconde, luar de pedra, por vergonha de iluminar o que as mulheres, como eu, se negam a ver.
A luz envergonhada…
Ou, como hoje, quando amanheci saudade.
A beleza é, tantas e tantas vezes, um empecilho. Impede que se veja que por dentro da cara que se mostra, do corpo que transporta a alma (e que “se usa”) existe a força maior da Natureza. Capaz de parir vida. De dar sentido à vida.
O beijo gela nos lábios.
Os braços toneladas que não sobem nem por força de guindaste.
E as vontades de entrega e de partilha são gaivotas que fogem e se albergam em grutas cada dia mais recônditas de uma ilha que não existe em mapa, em carta de marear. Ficam longínquos os sons dos barcos, os ventos nas copas, o vibrato dos anjos celestiais, a melodia de uma qualquer poesia, por maior. O sol não tem sobre nós qualquer poder. As perdas, as ausências, resfriam, irremediavelmente os afectos.
Perdemos nós e o mundo ou o mundo se perde por via de nós,
não sei…

Ia começar a falar-lhe.
Em rigor não sabia que iria dizer-lhe... Até aquele instante, sobre as minhas as mãos agitadas de Olga. Não as sentia mais. Como se, repentinamente, nunca ali tivesse estado. Assustada perante tão remota possibilidade, tentei o abraço, o contacto peito a peito… os meus gestos, como os dela, os de que me falara antes, apenas abraçaram o vazio. Ninguém ali. De encontro à fraga do Senhor da Boa Morte, apenas eu. E minha sombra projectada na claridade da tarde. Esquisso ou marca d’água... degrau incrustado na serra que, de cansada, se não desce, nem sobe.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

PROJECTO IPO ==> Capsulas Nespresso (IMPORTANTE)

Mesmo não tendo, pode passar informação a quem tenha a máquina de café Nespresso...

"Venho solicitar a vossa ajuda para um novo 'projecto' com as crianças do IPO.
Pretendemos recordar a importância de reaproveitarmos os materiais a custo zero com uma actividade criativa.
Um dos objectivos é fazer uma árvore de Natal. Vamos fazer esculturas com cápsulas Nespresso usadas /recicladas! Juntem as vossas cápsulas usadas num saco ou caixa.
para este trabalho também aceitamos telas de qualquer tamanho.
Os sacos podem ser deixados na Acreditar (Rua do IPO), enviados em cx . próprias dos CTT

obrigado a todos." - citando mail recebido ...

Contactos:
Pedro Bello
bello.pedro@hotmail.com
telemóvel: +351 916852874

ou
ACREDITAR
A/C Filipa Carvalho
Rua Prof. Lima Basto, 73
1070-210 LISBOA
Tlfn: + 351 217 221 150
E-mail:fc@acreditar.pt


PS: Felizmente, a maioria de vós não sabe o que é o dia a dia de uma criança com cancro e, estou a pedir pouco mais do que nada para as distrair. Divulguem sff.
Partilhar é um dom.

domingo, 25 de outubro de 2009

O tempo dos chinelos


De "férias forçadas", num tempo que ainda não é tempo de “encostar as botas”, vejo-me a braços com a difícil tarefa de “gerir o tempo”. Não aquele que escasseia, que fluí volátil, incontrolado, por entre compromissos de ordem diversa, que se esgota de forma stressante, que, por vezes, tantas vezes, apelidamos de “sem sentido”, encorpado numa espécie nefasta de uma qualquer correria, em torno de nadas, de absurdos, em em busca disto ou daquilo - sucessos, carreirismos, pódios, lucros, ou na busca de coisa nenhuma se espremido nada que nos acrescente resulta.
E que nos cansa. E que nos impede de gozar dos espaços e dos bens que acumulamos …

A propósito recordo-me sempre de uma máxima que ouvi de uma colega trabalhador-estudante, decorriam os “apressados” anos pós-revolução: “olha lá, Mel, tu passas a vida a correr para ganhar dinheiro com que compras uns sofás onde raramente te sentarás!!!”. Confesso que na altura, achei que havia na premonição de Sílvia algum exagero, alguma costela revanchista contra a pequena burguesia que se espójava (e esponjava) em sofás ao fim da noite, os "mangas de alpaca", os "burocas", enquanto que ela (como eu) tínhamos para nosso (des)conforto os bancos de "suma-pau" e os buracos dos pavilhões provisórios e pré-fabricados de uma secundária onde frequentávamos, em pós-laboral, o 12º ano… Outros tempos. Adiante. Voltemos ao tema desta “crónica de quotidianos”….

Falo então de um tempo cheio, qual “cartucho” de papel onde as castanhas, ainda que queimando as mãos, impiedosas, são desejadas…ainda que, como acima referi, esse seja um tempo que “não é nosso”. É do patrão. E falo deste, que , por vazio de agenda e de frutos, é só nosso.

Confesso que sempre achei que adoraria o “dolce ne fair nient”, o absoluto nudismo de relógios e sapatos altos. De maquilhagem, de saias travadas ou a varrer o chão, consoante o espírito do momento. Que me faria “feliz” (seja lá o que quer que seja o significado de tal vocábulo) a falta de atavios, por mais minimalistas que fossem. O poder estar de chinelo no pé, em casa…. Usar e abusar dos sofás em que, tão raramente, me sentava (sim, Sílvia, afinal tinhas razão… durante quase três décadas usei-os escassamente…)

Quando se anteviram as tais “férias” muni-me, tacitamente, de tudo aquilo que me faria sentir melhor: a começar pelos chinelos … não, de todo não seriam quaisquer uns. Quem me conhece sabe do meu fascínio pelo amarelo (os amarelos de Van Gogh), do meu sentido permanente de busca de estética e de equilíbrios. Os meus equilíbrios. E, sem qualquer pudor, digo-o: o prazer de me olhar e gostar de me ver. De chinelos que fosse. Sempre presentes em mim as palavras sábias das mulheres de minha família, avó, mãe..."menina, pobrezinha mas arranjadinha"...

Dizia, portanto que, ao adivinharem-se tais “férias”, preparei-me para as receber. Iria gozá-las não num qualquer resort à beira mar plantado, num qualquer lugar de montanha onde o branco enrolaria os saltos das minhas botas, mas, num espaço único e inigualável, sonhado e talhado, ano após ano, por mim: a minha casa.

As janelas abriram-se de par em par, aproveitando as horas mais oportunas do dia: O sol da manhã, o fresco do fim de dia. Alindaram-se espaços que há anos não mereciam um olhar atento… jarras voltaram a encher-se, as rendas ganharam gomas, as plantas interiores e exteriores foram redispostas segundo as suas necessidade: tamanho, exposição à luz, etc… novas espécies juntaram-se às que já coabitavam comigo, algumas das quais desde o início de “vida adulta”.

Quando as forças pareciam já escassear, surgiu, finalmente, uma ajudante de campo… e, na data agendada, tudo reluzia no equilíbrio desejado… era então tempo de gozar o tempo. De usufruir da beleza do campo, dos chilreios dos pássaros, dos coelhos bravos que saltitavam por entre as oliveiras, sem qualquer receio… E dos chinelos amarelos.

Porque não usufruía? Porque o sofá, recentemente estofado, não me dava o prazer que imaginara sentir, os milhares de livros com quem marcara encontro secretamente nos meses anteriores para que, mutuamente, nos lêssemos, não me conseguiam reter mais que escassos minutos? Ou a música, a música que tanto me acalmava quando, exausta, ao fim do dia, em transito e no transito, a ouvia no interior do meu Polo, não tinha agora, que a escutava em condições quase ideais, sobre mim, igual efeito?

Faltava-me quase tudo e tudo se resumia a tão pouco: o olhar enternecido dos meus idosos quando de manhã chegava… as palavras, as risadas, das colaboradoras, os seus olhos perante a aprendizagem de novas matérias, as corridas das crianças no parque em frente quando me viam ao longe, os seus abraços, os beijos lambuzados, as “larachas” dos residentes da vila para quem eu não tinha nome, mas que, a quem, por um profundo à vontade não se coibiam de as dizer. A exemplo, do sapateiro, um jovem "algo gago" quando lhe pedi que me colocasse na forma uns sapatos que, teimosamente me incomodavam.

“Oh, Drª, se a senhora está tão magra como é que os sapatos estão apertados???” … (risada geral, claro).

Meu amigo, afinal o que me aperta são os chinelos… que os sapatos, esses caiem dos pés e competem com os ditos: "achinelam…" como por aqui se diz. É, meu amigo, acabei de descobrir que a estética que busco, o equilíbrio, a beleza, está em cada um de vós. Na partilha, na permuta. Nos dias cheios, na falta de tempo, na utilidade do tempo. No sentido do tempo...

Os chinelos terão de me aguardar, portanto. Farta de férias, está na altura de repensar novos caminhos e, se de uma coisa estou certa, é a de que os meus caminhos terão, imperativamente, de se re-cruzar com os daqueles a quem lhes parece não terem eles mesmos, ainda caminho pela frente...

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Nefretite *

Adaptação do original de Zeca Afonso


Nefretite não tinha papeira

Tuthankamon apetite

Já minha avó me dizia

Olha que a sopa arrefece (bis)


Nos funerais de antanho

As capicuas gritavam

E às escuras na cozinha


Só as galinhas dormiam (bis)


Manolo era o rei do fandango

Do fandanguilho picado

Maria se fores ao baile

Leva o casaco castanho (bis)


O rei João era dos tesos

Chamam-lhe João dos Quintos

Lá na terra brasileira


Vinham quintais de ouro preto (bis)


Em suma a soma interessava

A quem interessa algum dia

De lingotes e pimentas

Ainda vamos ao fundo (bis)


Lá para o reino da Arábia

Havia amêndoas aos centos

Que grande rebaldaria


E a Palestina às escuras (bis)


Os Sheikes israelitas

Já que estou com a mão na massa

Lembram-me os Sheikes das fitas

Que dão porrada a quem passa (bis)



___
descaradamente "roubado" daqui, onde pode ouvir a música, claro!!!
Obrigada, colegas ISCSPianos.
Bateu a saudade ...

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

respiração da memória

absolutamente, necessitava.
que respirassem. que vissem a claridade luminosa que ela mesma via, dali, daquele espaço onde crescera e se fizera mulher. não as trocaria por riquezas outras em circunstâncias algumas.
era certo que estavam "desbeiçadas" como se dizia a propósito disto ou daquilo cujos "beiços", os rebordos, haviam perdido a forma original. esboiceladas como diriam os mais eruditos, era certo que não serviam os requisitos utilitários para que haviam sido concebidas há mais de cinquenta anos. mas certo era também que durante anos e anos, tantos ou quase tantos quantos os da sua meninice e parte da adolescência, as vira dependuradas na cantareira e se vira ela mesma "proibida" de as usar no dia a dia.

"são para dias especiais, ouviste???".
ouvir até ouvira... mas...
pois. não lhes resistia.
o fascínio pelo belo, pelo harmónico, falavam sempre mais alto e, não raras vezes, quando solicitada a cozinhar, ou quando avançava os preparos culinários por iniciativa própria, as ditas riam para ela apelando ao toque. era então que, nesses dias, subindo a um banco ou uma cadeira, descalça para não os danificar e bem na pontinha dos pés as libertada do jugo a que se viam votadas e ousava infringir a regra que lhe fora imposta: usava-as!!!, nunca sem que antes as passasse por água corrente.
depois, delicadamente, cuidadosamente, usava-as.

regra infringida, a punição?
bom, dependendo o humor, assim o resultado: um sorriso ou um ralhete... ou um misto de ambos num orgulho disfarçado de a ver “aprumada…”
"dás cabo das panelas, tens que te haver comigo... não te servem os tachos de barro? e os de alumínio??? …fina que me saíste, rapariga...".

que fazer?
ele, o "trem de cozinha", namorava-a a olhos vistos (ou ela a ele, vá-se lá saber...).
usava-o. tentava contudo que não tocasse nas pedras da bancada, que não pegasse ao fundo. não desviava as atenções, mexendo com a colher de pau ou abanando as asas, dependendo do que estava a preparar…

“cada coisa tem seu preceito, rapariga. aprende que não duro sempre. a caldeirada abana-se, o refogado mexe-se … e “colher provada, colher lavada“. porcaria não, ouviste???…”
isso ouvia. e aprendia. e aplicava. a panela era sagrada. a comida uma dádiva de deus. a cozinha o altar onde se rezava sem palavras. limpa, sempre. imaculadamente limpa.
e bela. convinha!!! … as panelas?, os paramentos, pois então …
tentava que nada danificasse aquelas preciosidades destinada aos dias de festa.
para ela todos os dias eram dias de festa. a vida tinha de ser uma festa. de outra forma que sentido lhe encontraria? e, “boa em retórica”, nunca por nunca, deixava de argumentar:
"mãe, os tachos têm que respirar, têm de ser usados...".
"que pressa tens tu de os acabar, rapariga??? ora deixa-te de finuras e areia os de alumínio que fazem tão ou melhor figura. ou tens medo de estragar as unhas? olha, olha, já a "cigarra tem catarro"..."
ou
“… ainda não descobri se eras boa para seres médica (jeito tens, lá isso é verdade, para os porcos… e para os cães e gatos, a dares-lhe a vacinação) ou se davas para advogada, com tanta lábia…mas a mim não convences. ora deixa lá os tachos na cantareira que me custaram bom dinheiro e nem sempre choveu por aqui…”.

sabia disso. dos esforços para os comprar. quando a pedreira engoliu as terras, o gado deixou de ter pastagem… sabia das mãos gretadas e dos trabalhos rudes com que aqueles povos, netos e filhos de lavradores, se viram a braços. e porque sabia, mais amava cada peça. e se amava, tocava. ou quem ama não toca? só olha?
teria a mãe amor platónico pelos tachos???

lera à socapa sobre isso: amor platónico…
tão lindo… fazia chorar que nem cebola em faca afiada. se fazia! mas não lhe servia a ela. gostava de tocar os tachos. de os usar e de ver as caldeiradas a fumegar nas suas entranhas …
dos outros amores ainda não sabia….

teria por essa altura pouco mais de duas mãos de anos. e gostava de unhas limpas, sim senhora... e pintadas, pois então ... de branco, que outra cor, exclusão do pérola, não lhe era permitido. e o alumínio mascarrava a pintura, obviamente, pois claro!!! ... para além de que, a condizer com a faixa de ladrilhos bordeaux que encimava o branco dos demais, de dez por dez, e que cortava a cozinha a meio, só mesmo aqueles, eles também, de rebordos bordeuax... e amarelos pálidos como o sol de Inverno.
usava-os.
"para que respirem", insistia.
um dia o maior deles quase que “morreu” … mas isso era outra história. salvou-o a ti’Lucrécia e a sabedoria da aldeia…
“botas de molho, filha… o queimado amola… depois, devagar (pressas só para parir, que a hora se quer curta, ouviste??? devagar, com as tuas unhas (ficas sem elas, mas crescem…), rapas… até só ficar o negro. colocas lixívia pura… e amanhã lavas. depois limão e sal grosso… e lavas de novo. quem te mandou sair de casa e deixar o tacho ao lume??? um porradão te dava eu se fosses minha filha…”
não dava. só dizia que dava para meter respeito enquanto amarrava o lenço à volta da cabeça ao jeito da Nazaré… não era dali. viera por “mor’amor, ó rapariga. o me’homem é que me trouxe fugida das redes, aqui p’ras “leziras”…
o tacho ressuscitado. quase novo …

a respiração das memórias … anos depois, já mãe, a sua filha:
"…o umbigo, o umbigo mãe, eu acho que é o respiro do corpo ... não achas mãe?"
um sorriso em ambas. a respiração das coisas. os laços umbilicais. os cordões que nos unem às memórias. só nossas.
por essa altura já o inox chegara e destronara o esmalte encantado… já os tachos vinham à mesa… já se “desbeiçavam” sem grandes penas … a espaços. vinham a espaços …

agora ali. adornando o tempo … e o espaço.

"love me, Alex., dont love the things...", dissera-lhe. “love me, and go with me, soon…”
ela partira. amava-o.
a casa recebera "the things";
misturadas com as anteriores eram pertença de todos e de ninguém. o amor transferira pessoas para outras longitudes (e o destino levara outras para outras dimensões…)
havia que repartir “the things” pelos parentes próximos.
onde houvesse espaço, utilidade ou ambos…

em tempo de Verão, a casa vazia reabriu-se. recebeu maravilhada uma vida nova.
sorriam as paredes em novas cores
e os tachos expostos nas pérgulas…
“tu e a mania das finuras. quintais, criatura. quintais …ora pega na vassoura e varre que as folhas da buganvília mancham o chão …”

“… mãe!!! gostas dos teus tachos aqui, mãe???… gostas que eu sei…”
[… conversas inverosímeis, só nossas, mãe…… não ralhes mais.
os teu tachos são muito bonitos, sim].

e das memórias da casa, desfolhadas, revividas e reinventadas se pejaram os tempos.
os dias soalheiros e os sorrisos. e as gargalhadas. e a admiração dele.
"..."madrina", this furniture, this basins, was of your mother? and there has more than 50 years old? you kept it, conserved it and now here it is displayed? so pretty… oh, so pretty..."
"yes, Mathias, they where my memories and they need to look the sun ..."

o inglês estava longe de correcto. de ambos… pouco importava. era da respiração das memórias que se tratava…

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

sopro d'água



“só o teu rosto interminavelmente.
como o fogo e o mar. como a morte…” -
Eduardo Carranza

ainda o teu rosto. ainda o fogo a circundar bambaleante o altar de meu corpo, púlpito onde me elevo, sacerdotisa.
a eloquência sagrada desse palco - a pedra basáltica ganha ao mar. o alabastro da palavra. branda e forte. como gostaria que fosse a morte.
e nós, ganhões de um campo de tez dourada, pagãos e nus. os corpos… os corpos justapostos…

há que doutrinar o amor, diria.
antes que seja tarde. antes que nos assome mais forte que nós, a nortada.
olho a eira, circuncidada. caminho da poesia à prosa e à primeira forma, volto. volto sempre. em círculos. concêntricos. circunspectos.
adestro-me.
olho-me na roda do vestido vermelho com que me visto. no rés do mar, só o teu rosto interminável. como espuma, como lava… sobes. subo.

varejam no púlpito todos os círios. a cera escorre lenta, aqui, em maleabilidade dúctil. indulto-te! por ti todos os cerieiros suspendem em varal de aço torcidas de linho, do mais puro linho, para que não nos falte a luz.
a luz.
depois, na noite, quando partir, incendiar-se-ão círios, qual candeias reminiscentes orquídeas por sob os corpos. e, sobre o meu, teu rosto, que beijo, afago... e parto. lastro de barco rasgando as trevas, rumo à nascente.
“só o teu rosto (…) como o fogo e o mar…”

um sopro. num sopro, a vida. passa...
sopro d'água.

no monte, a claridade que varre o rebo, o tosco, em demanda do pó de astros. provectos.
o verbo, o substantivo …
“meu amor, meu amor, eu não sei na verdade(…).
era a tarde mais longa
de todas as tardes que me acontecia”.
(1)

toca.
toca na rádio. um lágrima migra. sem norte, desce e corta luminescente a folha crua.
estrela-se a tarde, na noite que se anuncia.

o vento, o vento...
importa ceifar a ventania. importa amar. importa soltar os pássaros na estação dos pássaros… "era Inverno na estação dos pássaros... ". meu amor!...

um fado.
uma flauta. de osso.
o suor em bica.
a medula que, de preciosa se dá e não se vende; se oferece ou troca... simplesmente,
na saliva que une o beijo à boca.

desnuda, descalça, subo à Basílica. o branco contrasta o azul da tinta…
a Basílica. ex-libris da cidade. não essa, mas a original, Sacré Couer de Monmartre. volto a paris. num sopro d’água, iço-me na enseada. sou. tento ser. pássaro livre, boémia, poeta, artista. visto o espírito do bairro que me acolhe. recolho-me, molusco. no vermelho do vestido o fogo, o Moulin Rouge. o verde das ruas e a esperança. de renascer.

as ruas arborizadas. frescas… os dias limpos;
meu tudo o que a olhar avista, até ao Monte de Santa Tecla, estudante ainda. a academia. académica, subo ao zimbório, pelo interior da Basílica. sei das vertigens, das visões caudalosas, sei de quando não me sabia…

volto
ao tempo em que escrevia. olho ao redor.
o fogo, o mar. o rio - os rios escorrem para o mar-, o estuário, as margens férteis, o delta.
aqui e ali, tudo se matiza, e já, de novo, sou tágide nesta lezíria. fogo e mar…

uma limusina atravessa a noite.
barcaça no teu rio. lima, douro, tejo…
rio dos rios subterrâneos e dos ritos iniciáticos do verso, do verbo contido em citânia, cidade primitiva onde te sigilo, perdurado na matriz, em síncrona dimensão e forma descontinua
entre
a mulher d’agora e a angelical menina…
que era.

na areia fina
“só o teu rosto interminavelmente. "
e o eco, boomerang que me responde:
“só o teu rosto interminavelmente. "
____



quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Estava-se marimbando... "Sopia"




Estava-se marimbando. Nitidamente marimbando.
Sorriu intimamente. Há quanto tempo não lhe vinha à cabeça aquela palavra? Dezenas de anos, largas dezenas de anos. Tantas quantos os que haviam passado desde que aquela cidade deixara de ser palco de aprendizagem e passara a ser tão-só palco de passagem.
De paragem por vezes (escassas) na época da Feira de Outubro, na época do Colete Encarnado. E, por fim, de visita amiúde àquele hospital.
Detestava-o. Ali deixara para os encontrar mortos, ambos os pais. Épocas diferente. Doenças diferentes. Mas incuráveis. E o vazio pungente da orfandade. Como doença insanável com que tinha de, todos os dias, conviver.
[Como é que se mata a saudade mãe? Como é que se mata a saudade, pai?]
E ali voltava por circunstâncias análogas: familiares. Tios, primos. Uma infindável cadeia de afectos que se quebravam.
Estava-se pois, marimbando. Não adiantava o corta e solda, o pinga aqui, remenda dacolá. Todas as teorias do re-arranjo sabia-as na carne de que apenas adiavam a partida. Previamente marcada a cruzinhas por um Deus desconhecido num qualquer calendário escondido do seu olhar. Mas agendado. Sem direito a alterações de datas, de decalagem, de dias de compensação, porrogação e etc. Data fixa, portanto!

Aconchegou a mala bege contra o colo. Sentada na esplanada do mercado, tentava ocupar-se a imaginar as vidas para além das janelas fechadas daquela hora. O calor Ribatejano impunha o recolhimento dos espécimes. Senis na sua maioria. Envelhecidos como frontarias dos prédios circundantes. Um apenas de traça antiga, à sua direita, reconstruído recentemente por cima do que fora uma casa de penhores. A cor rosácea. Rosa velho. Para não destoar dos demais...
Abriu-se uma porta-janela. Uma mulher a rondar os cinquenta (assim parecia) em trajes de "andar por casa" ocupou uma das cadeira de verga da varanda. Viu-a sentar, abrir o jornal (dali não sabia qual, imaginou o Expresso, pelo tamanho…).
Desejou ser "a mulher". Não por coisa nenhuma de especial, mas porque e só porque, estava em casa, lia, aparentemente pacificada e a ela o fim de tarde estava destinado a ser preenchido por uma não desejada tarefa: visita hospitalar…

Estava-se marimbando.
Comeria o bolo, de nozes e mel, beberia o suco natural. Que se lixasse. O que fosse depois, seria. Estava saturada de se privar. Comeria sim.
- desculpe, quando a senhora chegou ainda estavam nessa mesa as pessoas, por isso não retirei a loiça
Sorriu. Respondeu monossilábica:
- não tem mal…
Embrenhou-se no saboreio lento das nozes trucidadas. Tentou que as papilas gustativas lhe devolvessem estímulos. Compensações… sensações.
Nada. Comeu mecanicamente. Como se, por proibido, desaconselhado, enfim, o organismo sequer valorizasse os alimentos. Marimbou-se, portanto. Comeu. Ponto. Até à última migalha, até à última gota. Bebeu.

Apertou a mala. Ali dentro o seu destino nos próximos tempos misturado com as quinquilharias do costume. E os livros, e as canetas. E o telemóvel que não servia para coisa alguma. O do trabalho estava desligado, o pessoal, pensou, melhor seria que o aventasse definitivamente ao lago dos patos no jardim…
Detestou-se…
Teria de ali permanecer por mais uns minutos. Ela e o bolo. Ela e o suco… mais nada.

De súbito o toque. Um passe doble, uma música de tourada. Alta, incomodativa, rugiu que nem uma trovoada. Ou uma manada de bois soltos no largo da praça...
Só então os viu. Estavam na mesa ao lado. Dois. A meia idade estampada no “sal e pimenta”, as Le Coq Sportif, os sapatinhos de vela …
A conversa:
- ...claro que estou com o Serafim, minha linda, o que é que achas? Queres que to passe? Duvidas de mim? Eu passo e já vês se tem voz de gaja…
- ... daqui a vinte minutos. Tens saudades do je, tens, meu amor??? ... Já me contas isso tudo...
não, não posso ficar hoje para jantar...

Os risos. Os engates. O telemóvel agora desligado…

- tá caída, a gaja. Caídinha. Andam todas à babuje e um tipo tem de lhes dar linha… corda, se é que entendes…
- a tua mulher?...
- ...coitada. Está doente. As mulheres se não tivessem barriga eram eternas…. Ainda bem que têm e que um gajo tem sempre trabalhos fora…e longe.
- a que horas chegas a casa?
-ó pá, sei lá … quando chegar chego. Ela espera sempre… Telefono-lhe mais logo. Agora estou a trabalhar, bem vês…

Serafim, assim designado havia minutos, esboçava um sorriso sacana…. Porfiava o bigode fora de moda, desonante com o xadrez da “ Le Coq Sportif”. A espuma da imperial a amarelar a boca.
- fazes bem, pá. Marimba-te nisso. Como os meus filhos dizem, “a malta tem de curtir uma beca”. Puta que as pariu, estão sempre doentes, porra… o que vale são estas, sãs que nem um pêro…e boas como a pêra rocha. Tudo tem um preço, porra. Estas valem... se valem...

Sopia levantou-se. O relógio marcava as 18.15. Dali ao Hospital, escassos minutos.
Estava-se marimbando. Fazia parte do grupo das “não-sãs que nem um pêro”…. Bom seria que nenhum gajo se tentasse afiambrar. Poderia ficar envenenado, deu-se consigo a pensar…
E, pensando bem, estava-se mesmo marimbando para que morressem no veneno que eles mesmo destilavam.
O seu destino, o dela, Sopia, estava dentro da mala que agora balouçava livre e serena na ponta dos dedos…
Elevou-se no porte, balançou os cabelos, ergueu o queixo, avant-garde...
Caminhou a tarde. Marimbou-se no restante.

Fotografia: Jorge MC Pacheco

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

radical mother? no ... but

Confesso que jamais pensei em falar de mim e do que me toca de forma tão directa. Sempre fui avessa a imiscuir a família nos meus "devaneios literários". A família tem um papel em minha vida que não cabe em nenhum post que algum dia fiz ou venha a fazer. Os meus filhos, particularmente, dão um sentido maior a cada etapa que, tenazmente, tento superar.
Este post será, talvez a excepção.
Porque excepcional é o momento...

Na praia, ontem, fim de uma manhã luminosa, início da tarde. Mergulhos, corridas (as vossas que eu fico mesmo na toalha...) E o vosso retorno a mim.
O virar da agulha da minha atenção.

Ao lado fica por agora o livro que me tem feito companhia e que tanto me sensibilizou.
É, é verdade. "No teu deserto", malogrado o vaticino algo "sinistro" de uma senhora que, amavelmente, tentou impedir que o comprasse numa das inúmeras papelarias do Vasco da Gama, com um tão desconcertante quanto inesperado:
"... não vale nada. Ganha fama e deita-te a dormir...",
viria a revelar-se um espaço de leitura em prosa-poética, belíssimo. Miguel Sousa Tavares, uma vez mais, ainda que num registo diferente, não me desiludiu.
Sophia-mãe, tal como eu em relação aos meus, estará muitíssimo orgulhosa ...

"...mãe, vou fazer-te uma razta... vais ficar uma mãe radical"...
"...não ... por favor, como desembaraço depois o cabelo?"...
"...esquece! Deixa lá... mas que ficavas fixe, ficavas...".

Contagiaste-me, filho.
Não porque queira ser "radial". Mas porque tu quisesses-te que eu, tua mãe "cota", ficasse parecida contigo, meu especial raztafare... E tu, filha, pactuante, num riso sem limites:
"fica quieta, mãe ... vais ficar fixe ..."

Foi assim.
Ganhei uma razta. Um ninho de ratos, digo eu... Um emaranhado de fios por debaixo do cabelo que insisto em manter longo. E o sabor, o prazer inigualávell, inesquecível, dos vossos dedos, meus filhos - de ambos -, em meu couro cabeludo. E desta partilha de espaço e de afectos. E das memórias de quando, eu mesma, menina, penteava minha mãe, se a "apanhava a jeito". Em regra quando acamada, doente... Um pente de tartaruga de que até hoje não me separei. Partido, sem cabo. Mas que guardo com tesouro ...

"era fixe que a não tirasses...", pedes. Olho-te de frente. Desconcertas-me. Decido:
- Não, não tirarei. Será o meu amuleto.

Amanhã é outro dia, depois outro. A vida passa. Ficam em nós os momentos em que o sangue do nosso sangue se nos igualiza e nos identificamos com as suas escolhas.

Sophia, porventura, nas suas, Miguel.
Nos desertos por onde o seu impulso o fez caminhar. E ela, mãe, em cais, desejosa de o reabraçar.
Eu nas viagens dos meus "raztafare"/surfista" e "certinha mergulhadora"...
Esperar-vos em praia. Desejar que uma estrela vos conduza sempre ao cais do meu colo.
E ser-vos âncora que amarra e solta. Que não retêm para além do que é "legítimo" reter.
Com o coração nas mãos, sempre.

Das vossas escolhas, do apoio incondicional que vos dou - pese embora a tentativa de vos demover por medos - , se faz o vosso e o meu caminho.

Há muito que deixei de querer ser a vossa mãe, ou melhor, continuo a querer, mas... o que mais desejo é ser a vossa melhor amiga.
Radical? Raztafare? O que for será ... a vosso lado.

sábado, 8 de agosto de 2009

Desejou-a espaçosa... "Gabi"

Desejou-a ampla. Espaçosa.
Desejou-a na enormidade possível de quem deseja. Não por qualquer sentimento de posse, de lhe chamar sua - jamais teve com o que em seu caminho se cruzava esse sentimento -, mas porque, dessa forma, a poderia mais e melhor desfrutar. E, uma vez mais, desfrutar para ela significava, porventura o que não significava para muitos.

Desejou-a ampla.
Desde o dia em que, acidentalmente, por caprichos do destino, o seu rumo deixou de ser as águas quentes do sul, onde nos últimos dez anos havia passado os dias de sol mais luminosos de sua vida. A juventude...
Memórias que desfolhava de quando em vez, em especial quando, dada recorrentemente a arrumos e limpezas “grandes”, encontrava os álbuns familiares. E se via. Não fossem o acumular progressivo dos dias e, diria que, há distância de mais de três décadas, a figurinha era a mesma. O mesmo penteado, o mesmo corte de cabelo, agora pintado à cor daqueles tempos, num tom mate entre o cobre e o ruivo… Apenas o olhar a traia… perdera o brilho, o fulgor incendiário que fazia com que as pedras se encobrissem de vergonha da sua palidez… A pele permanecia, tal como na adolescência sem borbulhas, sem manchas. Avessa a cosméticas, ria-se com frequência das tentativas vãs que as colegas, as vizinhas e afins, desenvolviam no sentido de lhe venderem a "última gama" desta ou daquela marca de que eram agora, para ganhar uns cobres, revendedoras. Apenas a uma comprava até ao dia em que, sua amiga desde sempre, Gina fora a sua casa e usara o seu WC privado. E lá estavam eles… alinhados, ordeiramente alinhados, os cremes intactos da tal "última gama" …
- Gabriela, acabou! Sou tua amiga. Não te vendo nem mais um creme …
Percebeu. Viu claramente a amizade espelhada no tom zangado da voz de Gina. Tinha razão… Comprava por e só por ser a ela. Nunca tivera intuito de usar. Conhecia-se. O banho rápido, duas escovadelas no cabelo, a ida semanal ao cabeleireiro para que o “tratasse” e pouco mais. Água e sabão lhe bastavam…

Desejou-a ampla.
Levou catorze anos desde o dia em que entrou as muralhas da cidade pela primeira vez, a subir as escadas daquela a que chamaria a “sua casa”. No entretanto, nos primeiras tempos foi alugando sucessivamente uma casa de emigrantes. Em menos de uma mão de dedos adquiriria um apartamento… espaçoso, claro, na primeira linha de mar...
Mas não. Não a satisfazia. Gabriela era, como sempre dissera alto e bom som, “do campo”.
As caixas de fósforos do Papalagui não a comportavam. Era gregária. Vivia em clã …directos e indirectos, colaterais, descendentes e ascendentes….
E amigos. E amigos dos amigos…. Nas suas casas a chave estava sempre na porta. Desnecessários os avisos de que chegariam... eram sempre bem vindos. A comida, por artes mágicas, crescia nos tachos ... Assim fora criada e assim se fizera mulher....

Desejou-a, pois, ampla. E, dia a dia, desejou-a mais. Amplíssima. Com espaços exteriores. Churrasco. Mesas de madeira, várias. Bancos e cadeiras ...
Em vários níveis.
Camas. Muitas. Vários quartos… Condições para todos se alimentarem e dormirem bem. Tudo o resto fluiria, acreditava. O mar a dois passos faria o resto. E as redes brasileiras, essas, por certo não dispensaria ... o recheio? Minimalista. Objectos reciclados de várias gerações... cobertores, lençóis. Pouco importava.

Subiu a escadaria pela primeira vez há cerca de dez anos atrás. O primeiro sentimento que a atravessou foi de dor … “mãe… não te posso já oferecer esta casa. Tiveste sempre de aqui, nesta cidade, dormir na sala. Bem te ofereci o meu quarto, mas nunca aceitaste … muito menos os dos meninos...”. Depois a imagem. Um mulher de sessenta anos, vestida de negro, acabada de perder a sua própria mãe, junto ao Forte, a despedir-se muda, serena, da cidade de que tanto gostava [sabia que a havia contagiado com o amor por aquela cidade... No início sempre coberta de nevoeiros...]. A despedir-se em definitivo dos barcos, do cais…
E ela, com as lágrimas a morderem-lhe a garganta a tentar fingir que não entendia. Era então Novembro, um sol tímido abraçava-as. O Natal por perto. Meses depois, faria a viagem anunciada. Sem um ai, sem uma palavra. Convicta e determinada da sua decisão… “mãe… estarás por perto, prometes?”…
Quando viajava, se o fazia sózinha, sem os filhos, Gabi, na descolagem entregava-lhos sempre ... "...mãe, toma conta deles, prometes?"...

Subiu a escadaria.
Elevava-se geminada em três pisos. Um terraço, por fim.
Dali e ao redor, até onde a vista conseguia alcançar, fosse qual fosse o sentido, mar. Mar e mar.
Não duvidou. Era ali o seu lugar. E de todos os seus sobrinhos (verdadeiros ou de faz de conta…). De todos quantos a quisessem sua. Sem reservas.
Por vezes brincava:
- ...vou instalar uma recepção lá no R/C, que acham?… Riam, claro.
- Fazes bem Gabi. Isto é mesmo a casa da “mãe Joana”…
- Da tia Gabi, queres tu dizer ...
Ria. Riam todos. Fora assim a última década.

Dos seus risos e pertences que todos os anos iam ficando estrategicamente esquecidos, se fizera a casa. Memórias dos que partiram em definitivo. Também. Nas pranchas ... nas camisolas ... Essas tão dolorosas…

Gabi arrumava meticulosamente gavetas, dispensas.
Caixas de fatos de Carnaval, de decorações de Natal…
Ocupara-se daquela tarefa nos últimos dias. Como prenuncio da tempestade de Agosto telefonara meses antes à empregada que abria e mantinha a moradia habitável sempre, em qualquer altura do ano, para que lavasse as roupas, as arejasse.
Nunca em vinte e muitos anos o solicitara. Era ela e só ela quem a cada ano, a cada Verão, revolvia os limites, os cantos. Sentia-se, todavia, demasiado cansada. …

Colocava caixas etiquetadas no lugar certo. Tudo alinhado. O desalinho era só do vento, lá fora. Ou dentro de si?
Em que lugar o rio se fizera mar?
Mar aberto onde não chegava sequer, da areia deixada em praia, vislumbre de lugar? Do "lugar"?...

Não chorava. Estranhava-se.
A praia, o mar, já não a enluvavam. "Ou a luva ou o anel" ... Escolhe! - Determinava-se a si mesma. Não havia espaço a indecisões...
Um desprendimento maior, um absoluto desprendimento, tomava conta de si.
Olhou-o inquieto. O "seu mar". Recordou-o - o cheiro, a vaga espaçada, o branco espumado- , quando o abraçou, dali, pela primeira vez, a ele, empoleirada naquele dedo apontado a Oriente. Tinha nome de mulher. Um dedo com nome de mulher: Papoa.
... Tudo ainda estava virgem. Era virgem o lugar. Apenas os caniços pasto de infindáveis caracóis e escarpas donde gaivotas zarpavam a parte incerta.
E veio-lhe em memória a vontade de se perder e se encontrar a cada dia, a cada hora, a cada instante, nas águas gélidas daquela baía.
Do quanto e do tanto que, ao longo do ano inteiro, vivia o sonho de que Agosto chegasse.
Depois, como se clausura fosse, trocava o bulício citadino pelo silêncio… O calor da cidade grande pela bruma constante e pela neblina matinal. O acordar com a buza. A manta ...
E pela casa cheia de risos de crianças, de adultos na sueca, e dela, escada abaixo e acima, numa labuta sem fim. E o fim do dia, como as crianças de fartura na mão ao som da feira da Senhora da Boa Viagem.

Desejou-a espaçosa.
As infiltrações do terraço eram iguais às dela própria. De reparação urgente…
Era a hora de confiar nos técnicos. Era a hora do sonho dar lugar ao pragmatismo.
Na água sempre. Apenas isso em definitivo. Já o manifestara.
Seria o seu lugar.

Desejou-se espaçosa.
Sentiu que era. Em si, viviam ad eternum, todos os que amara...

domingo, 2 de agosto de 2009

Ainda sobre "Plágio"

Sem mais comentários ...

Em busca de um poema meu, para responder a um desafio que me foi lançado por "Porosidade Étera", de novo e em segundos, mais "alminhas-gémeas ..."

O meu poema: Abre-te a mim, amado

"Abre-te a mim, amado,
neste rio de cardos cravados na memória.
Bolina o meu corpo, no leme da nossa história,
…sem demora …

que o vento é de nortada, que o vento por nós
ondula a espuma da vaga e chora.
Que, no areal da tarde, a gaivota regressou e já lá mora,
… em espera,

e no seu doirado bico, tem um mapa cravado,
em que o meu e o teu destino, têm um ponto cruzado,
no reponto da maré.

Abre-te a mim, amado,
no deportar da saudade, nesta vagem de frutos silvestres,
dulcíssimos e avermelhados.
Amoras maduras, framboesas, mirtilos ensandecidos…

Liberta-te do sepulcro dos silêncios, ao clamor rugente dos sentidos;
Tange harpa em cordas com a polpa dos teus dedos,
e liberta, por fim,
do meu corpo e de ti, na impudicícia do momento,
um sílex fino, um gemido de violino.

Abre-te a mim, amado … na neblina da manhã,

…leve, leve,

em estrelícias pontiagudas, em promessas rubras de febre,
em aromas de hortelã!

“Lado a lado … lado a lado!!!”


publicada por LittlePiny às 4:37 a 8/Set/2007
Mudou de nome e, claro, de autor ...

eis o meu comentário de há minutos...

Mel de Carvalho disse...
Haja paciência (a minha) por gente e com gente que faz plágio descarado desta maneira...

Pensa que mudar o nome a um poema basta para o publicar como seu?

Este poema, caríssima senhora, é da Maria Amélia de Carvalho Luís, está registado no IGAC. Plágio é roubo aqui ou na China. Estou a começar a perder a paciência e, de agora em diante, vou accionar mecanismos de outra natureza para quem abusa deste modo do que os outros escrevem.

Este poema está em:
http://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=16128

com o nome: "Abre-te a mim amado".

Sem mais!
2 de Agosto de 2009 8:16

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Dito e feito:
Um dos mecanismos: de hoje em diante vou denunciar publicamente TODOS os plagiadores dos meus trabalhos.
Sou a pessoa mais generosa do mundo, acreditem caríssimos leitores.
Por causas sociais darei, desde que as considere válidas, direitos integrais de trabalhos meus. E fá-lo-ei com o maior desprendimento e, preferencialmente, sem palcos.
Estou ao dispor de quem achar que posso ajudar. Contactem-me, pois.
Roubo? Plágio? Não!!!! Sejam quais forem os fins. Estou, confesso, saturada. São milhentas as vezes que me vejo nesta situação... Respeito é bonito e eu gosto. Muito!

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sexta-feira, 31 de julho de 2009

In_continência!

Entre um compromisso e outro, quatro horas de espera.
Deambulo. Das Descobertas ao Parque das Nações. “Vasco da Gama”…

A viagem é, sem que o saiba, ao epicentro do verbo. In_continências; in_confidências…


Vem-me à memória a frase da contracapa de “No teu Deserto” …
É sempre no silêncio que mais me encontro e que me sobe febril a necessidade absoluta de “parir verbo”. Verborreia. A minha? Claro, é disso que falo. Dos demais apenas, porque deformada profissionalmente, observo. Analista social.

Entro no Gato Preto. Enquanto olho a traquitanada que já não me aconchega a alma, oiço-a. Desabafa mágoas com uma das empregadas. Olho-as de soslaio. Ambas. E sinto pena. Não dela, particularmente, mas que, de um modo generalista, assim seja. Que se sinta absoluta necessidade de que nos ouçam, a desprazer e a contra gosto, porque o “cliente tem sempe razão”, ainda que, como no caso, o assunto em contexto não caiba. E de quem, por outro lado, assim se expõe por lapidar certeza de que, em mais algum dia de sua vida, o estranho que está ao lado - ao caso a empregada -, o volte a olhar sequer, e deste modo se revele, esventrado nas suas mais nuas fragilidades… Chove-me o olhar. Retenho a chuva. Há muito que sou "deserto". Se chuva houver será de areia. E essa, meu amigo, decapa, como sabes, até a pele remota de um qualquer umbigo.
Divago, claro! Eu bem digo: crónica do absurdo.

Discretamente olho-as. Traço as linhas, as coordenadas. Os pontos absolutos de onde deferiam derivar todas as rectas. Linhas desta cidade, pelo Marquês, sabiamente projectada.

Remexo as almofadas. Em promoção, seduzem-me umas, entre o cetim e o veludo. Um fio de luz brilha. Dá-lhe toque suave. Decido, determinada, que as vou levar. Não que todo me façam falta. Mas porque me apetece numa época de crise ser do contra e gastar …
Eu, cronista do absurdo. Gastadora confessa....
Intimamente, sorrio. Não, não será só por isso. Mas também, devo confessar…
Aproximo-me resoluta. De ambas. Deliberadamente interrompo a conversa. Não permito quem, por frági,l assim se exponha, se não proteja. Vejo nos olhos de quem escutava um alivio singular: liberta, por fim…
Avanço:
- Gostaria de pagar, mas pf., guarda-mas até por volta das cinco horas. Tenho ainda um compromisso …
- Decerto… atendo já, desculpe…
Afasta-se a mulher. Saí. Instala-se-me a dúvida: Será que agi bem?? De nada tenho sempre certeza absoluta… desabafar não lhe faria falta? Mas ali????Inapropriado o lugar.
Como para se justificar, a empregada:
- Peço-lhe desculpa, não lhe ter dado atenção …
- Não se incomode. Percebi tudo. Não pude deixar de escutar a vossa conversa. Oiço demasiado bem. Demasiado bem… é como se tivesse em cada poro um ouvido…
Ri-se. Diz que então terei sexto sentido. Não confirmo nem desdigo. Pago, reservo e saio, com o meu “muitíssimo obrigada. Como lhe disse, voltarei então mais tarde …”

Deambulo de novo.
“Vitaminas”. Escolho o prato. Líquido que o calor aperta. Sufocam-me magotes de gente. O computador que nunca de mim se ausenta, mínimo, pesa-me agora mil e uma toneladas. Detesto-me por me carregar com absolutas banalidades: - agendas, blocos de notas, estojos de maquilhagem, escovas de cabelo e de dentes e sei lá mais quê, se nada, ou quase nada, desde que saio até que entro em casa, uso sequer...

Absurda. Eu!!! Absurdo o rumo…
O sol a pino. Procuro a esplanada. Cheia. Uma família levanta-se. O cavalheiro avista-me e oferece-me a mesa. Sorrio, avanço, aguardo, agradeço.

Sento-me predisposta a gastar ali os últimos cartuchos de uma manhã vazia de cheia. Ou talvez não…E vejo-os. Procuram, como eu há escassos minutos, uma mesa …
Olham-me. Nada dizem. Tímidos, deduzo…
Solícita, ofereço-lhes lugar. Avanço num sorriso cordial:
- Se para vós não for incómodo, para mim não é. Fiquem confortáveis pois.
Sem uma palavra sentam-se. Ambos à minha frente. Lado a lado. O McDonald’s no tabuleiro. O louro fugidio dos cabelos dela. As nuances da moda. As pulseiras, os anéis.
O telemóvel, último grito. De ambos. Sobre a mesa.
De preto ele. Vestido. Armani? Talvez... Contrafacão, porque não? Da Feira de Carcavelos ... Pode até ser...
Atento, discretamente. Relógio com vários cronómetros, a pele verdadeira na bracelete.
Tento maquinalmente, não aplicar a celebérrima “teoria do rótulo”, mas o caso é por demais evidente. Estes entram em catálogo directamente…

As vitaminas embaraçam-se-me em boca. Dificuldade de engolir sapos vivos ou mortos … verdes, de igual modo. Pegajosos...
Falam um com o outro. Sem contenção. In_continentes. Sem discrição. Sem...
E eu? Sei que nos últimos tempos emagreci realmente, mas será que para além de magra, estou de_veras transparente? Não me viram?
Não me ouvem?
Sequer no movimento arritmo dos talheres, no toque mais assanhado que faço propositadamente com a faca contra o prato? Terei de, num ataque de fúria, ranger os dentes??? Contra o copo!!! Contra o prato???
Cortar os vegetais a martelo e escopo???!!!É só o que falta. Basta!

contra factos, menina, não há argumentos” - relembro-me.
Falta de chá no berço, não entendes???
Se entendo. Se entendo.... Mas por mais esforço que faça, entedio-me como esta “gentalha” que se assim se insinua "gente", como se tivessem superiores capacidade e a mim, me fosse determinado, o dever de ser-lhes indiferente …
Eu a incomodada? Eu a que não devia estar ali! Captaram-me a atenção? Conseguiram, melhor? "... Ah, que pena ... É de outra geração."
E o raio de "porra" é que conseguem. Pela negativa. Mas sim. Captaram-me a atenção.

- ... as batatas estão carregadas de sal …
- ... esquece! Rega-as com Ketchup … (a loura...)
E logo no sorriso insinuado:
- Queres Ketchup?… vê lá ...
Ele embaraçado. Mudo. Por momentos. Curtos, contudo... Na verborreia incontido.
E ela? Sem rodeios! Carro a alta cilindrada, a vertiginosa velocidade, sem servofreio.
Fala do Salvador agora com ano e meio. Ele da namorada que já era. Do efeito dominó ...
- a família dela? ... os meus pais? Claro que não gostaram. Mas a vida é minha.!!! ...Trabalho? temos tempo, nem quero pensar nisso...
Ela do marido, viciado em jogos de computador.
- ...trinta anos, percebes? Não desliga… aquilo é vicio.
Trocam palavras entre dentes sobre as farpas que os atingem. Justificam-se. Um ao outro. Um no outro, in ...
Não a mim, como referi, transparente ...

Como se sentada no cinema, vejo a tela, o enredo, o esquema. O jogo todo. A vitamina não passa. Nauseia-me a verborreia. A falta de tacto e o desmerecimento. Mútuo. E aquele com que presenteiam os ausentes. Na verborreia incontinente do verbo…
Ela, a loura falsificada, insiste: … queres Ketchup??? A conversa prossegue a despudor... na palavra enrolada em maionese e mostarda. O sal bastante.

Guardo lentamente os meus pertences. Levanto o tabuleiro. O prato meio ainda. O Pavilhão Multiusos em frente.
Afinal aqui também há actores e peças. Puzzles de vidas incompletas...

Insuportável, o ambiente. Estou a ficar demasiado tensa.
Penso se lhe agradeça a companhia, se ignore e nada diga, ou se lhes sove a cara pérfida com luva de pelica, com um sonoro
“passem bem, tenham um excelente resto de dia. Evitam de me agradecer a mesa, a companhia...”.

Opto pela terceira. Já de pé. Olhou-os a ambos dextramente em olhos! No meio da testa. Sou dextra e nem sabia...
Solto a frase que me salta e pula urgente na garganta.
Sequer olho para trás, não quero ver o efeito, ouvir a não_resposta. O desconcerto, induzo.

Desta vez, arquivei o caso!
Rotulei e não me arrependi…
Afinal existe sim: Aplica-se muito bem aqui: Teoria do Rótulo... "Geração rasca".
Por falta de princípios, de valores. Íntimos e interiores. O dinheiro, comprovadamente, per si não nos traz nada.

O rio em frente.
Duas da tarde. Saco do portátil e, antes que a memória apague: escrevo … crónicas do absurdo. Absurda de mim, se me revelo aqui e não mais sou que palavra

"...no teu deserto"(1)
- “Escrever é usar as palavras que se guardaram: se tu falares demais, já não escreves, porque não te resta nada a dizer”…

… A caminho do segundo compromisso! Não falto a um compromisso. É ponto assente. O que assumo, assumi. Tudo o resto, deixo a cargo do destino.
O meu?
Ficou esta manhã traçado. A bisturi…

(1) Livro de Miguel Sousa Tavares

terça-feira, 28 de julho de 2009

Teoria do Rótulo - "Helga"

Sentada à minha frente, num banco ligeiramente mais baixo, escrupulosamente fardada, após os primeiros minutos de "cordialidade forçada", directivas dadas - as minhas - sobre o trabalho a fazer: cor, forma, cutículas e tratamento desejado, com um sorriso tímido, ia, aos poucos, tentando “meter conversa” como se diz na gíria:

- Desculpe, não leve a mal, a senhora é Doutora... É Doutora de quê? …

Expliquei. Displicentemente. Sucintamente. Era a segunda vez que estávamos uma perante a outra. Com nova gerência, novo pessoal, o salão acusava os efeitos colaterais da crise e os imediatos do Verão. Ou o seu inverso, talvez mais o caso.
Helga, conforme o nome em bata, tinha traços miscigenados. Poderia ser africana, brasileira… Mas radicada cá há vários anos … Quase sem sotaque. Presumi angolana. Erro crasso, como concluí depois.

Helga é moçambicana, nada e criada em Maputo, fez questão de sublinhar. De ascendência diferenciada onde o sangue europeu mais "ariano" - da Europa Central - se mesclou com o Italiano e com o Goês. Ao longo de várias gerações.

Os olhos verdes, a pele clara e cabelo encaracolado fazem dela alguém de quem se guarda memória, se não esquece. Todavia não razão suficiente para que me levasse a que escrevesse esta crónica do quotidiano…. Razões? Outras…

- Sou Socióloga… Doutoranda na área da Educação … Formadora, sei lá mais quê ...
- Ah, sim. Sociologia. Entendo. Parecido com Assistente Social, não é? Trabalho de observar as necessidades do social e procurar responder, encaminhar…

Acabava de me captar de todo, atenção!
Olhei-a de um modo diferente e, intimamente, dei-me conta que, eu, a tal que tenta não tecer juízos de valor, fizera uma leitura prévia de Helga. Uma ideia estereotipada e pré-feita e, de um modo grosseiro a catalogara num catálogo desapropriado...
Ou seja, porque esteticista de um “lugarejo” deduzi que, estar a explicar-lhe, do ponto de vista cientifico o que são ou devem ser os sociólogos, seria perda rotunda de verbo e tempo.
Sendo sexta-feira, fim de dia e eu esgotada, mais ainda. Silêncio fora, o que, ao transpor a porta do salão mais desejara e, por “consequência” aplicara a célebre “Teoria do Rótulo”.
Incomodada comigo própria, tentava justificar-me...

Helga, sem desviar o olhar das minhas unhas, continuava:
- … aos diferentes grupos, não é Drª?., toxicodependentes, prostitutas, crianças, idosos… pessoas em risco…
- Sim, Helga, tem toda a razão. É, ou pode ser esse, o trabalho de um sociólogo. Ao caso, como sabe, trabalho em formação, trabalho com quem trabalha com e para os idosos… mas também já trabalhei com jovens adultos, com adolescentes, com desempregados, etc …

Olhava-me agora embevecida. Sedenta de saber. Mais, mais...
Não por mera “cusquice”, mas por genuína vontade de entender mais e melhor o Universo que a rodeava. Entremeava, mostrando o trabalho:

- ...estão bem assim? Quer que arredonde os cantos ou prefere que as deixe rectas?…
- ...estão óptimas, se bem que curtas … mas disso, a culpa é minha, detesto luvas …

Sorriu. Falou-me de como viera para Portugal, após a independência, dos seus cinco irmãos (apenas 3 vivos), do seu saudoso pai, falecido em seus braços, literalmente. E de sua mãe, Cândida, que, no dia imediato completaria oitenta anos…

- Está num Lar, Helga?
- Lar, Drª?... Só se de todo nós não pudéssemos… a mãe no Lar? Não, vive comigo, escolheu a minha casa. Quando mudei criei condições para ela com a ajuda das minhas irmãs. Tem quarto com casa de banho só sua… e, faz tudo em casa. Rija... Quer. Fá-la feliz sentir-se útil. E eu, fico feliz com isso. Jamais se diz doente.
Tem saúde de ferro. E tantos desgostos passou… mas, Drª, como ela diz, foi uma mulher muito amada e isso faz muito bem à alma, sabe? Eu quem lhe dei a má notícia… do falecimento de meu pai. Sofreu muito. Eles se estimaram até ao último dia. Uma pneumonia mal curada e, como lhe conto, morreu-me em braços… a caminho do hospital. Foi assim....

(nebulosos os olhos, firmeza no trabalho, continuava...)

- ... meu pai, homem lindo, branco como a Drª, muito viajado (dos Caminhos de Ferro de Moçambique), amava-a muito; sempre que voltava lhe trazia de prenda um baby-doll… isso mesmo. Uma peça de lingerie. Todas lindas...

Sorria. Sorri.

- ... da Rodésia, da África do Sul… de onde fosse. Lindos. Minha mãe nos conta, a nós raparigas, que se fosse hoje, teria sido melhor amante. Que ele era fogo…vulcão, lava...

Sorria de novo. Sorriamos, ambas. Numa cumplicidade de mulher, sem status, sem barreiras ...

- ... vive agora das memórias desses tempos, Drª. Fomos criados com muito amor. Frutos desse amor… Todos diferentes. Na cor e no temperamento… mas unidos em laços que nem a morte separa…
Pintava-me nesse momento as unhas. Vermelho, como sempre.

- .... vermelho é fogo… gosto de lhe ver. Fica bem, sim…

A curiosidade agora era minha. Muita. Mais que muita. Saber mais dela.
- Gosta de ler, Helga?
- Claro, muito. Que leio? Um pouco de tudo. Desde Parapsicologia a Ética e Comportamento Relacional … ah, não se ria de mim, Drª… e, claro, poesia. De amor… Sophia, Eugénio de Andrade…

Era Fernanda, a dona do salão quem sorria. Conhecemos-nos de há muitos anos. De outros palcos, de outras guerras. Reencontradas agora, acidentalmente, com a sua tomada do salão...

- …terminei! Veja se estão a seu modo.

Olhei Helga de frente. Anui com um ligeiro aceno, sorrindo. Passei para a calha de lavagem de cabelo … O ângulo de visão, com a cabeça pendular, desconfortável. Apesar disso, fui dizendo:

- Helga, na próxima semana trago-lhe um livro…

Fernanda, a meu lado, enquanto a "menina das lavagens" colocava a máscara revitalizadora, cúmplice, continua a sorrir...

- “No princípio era o Sol”…. de uma amiga. Ofereço-lhe, se me permitir… Para que a divulgue, deu-me vários. Tenho ainda um ou dois lá por casa … vou procurar.
- Obrigada, Drª… E a sua amiga não se importa?
- Helga!!!! Claro que não. Creio até que vai adorar saber que a lê. Não se esqueça de parabenizar amanhã por mim a senhora sua mãe ... Oitenta anos é obra...
- Por certo. Muito obrigada... Não esquecerei.

Estava na hora de cerrar portas. Sete da tarde. A cabeleireira finalizava por fim o penteado. Despedi-me com um "obrigada a todas, até mais ..., bom fim de semana!", paguei e sai….
Entrei no carro. O calor provindo da Lezíria estonteava-me os neurónios. Abri ambos os vidros, sem ar condicionado… Desalinhei os cabelos. Em rigor, pouco importava. Não antevia ir a algum lado. Desejava o sofá, o miar da minha gata Xiluca, com quem, por certo iria "embirrar" ... "saí daqui, Xiluca, bolas, saí... dá-me espaço para me deitar, julgas-te a dona de tudo? tens a casa o dia todo, saiiiiiiiii" ..." e ela, como sempre, a ignorar-me. Felina, fazia o que lhe dava na gana....

Liguei a rádio...
"Baile de Máscaras", Antena 2 ...

Na próxima semana arrancaria a minha... estava prometido. O Sol de Julho a findar ainda não tombava no colo do meu rio!...

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...