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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Orquídeas, candeias de luz



esta noite sem luz guio-me pelos instintos sediados nos terminais de um corpo que se apressa em partir e, uma vez mais, os meus dedos me conduzem a labirínticas paragens, que mais não são do que galerias de um espaço conhecido - o teu espaço.
enceto o mergulho no interior de nós mesmos, no escuro e na solidão.
percorro a teia de ariana uma vez mais.
galerias infinitas onde, a cada descida, a cada sifão passado, o mergulho se torna mais difícil - são os túneis do tempo.
desço,
tal uma espeleóloga experimentada que nada teme. de alguma maneira sei que não estou sózinha. estás aí, seguras a ponta da corda . és a confiança. trust ....

mergulho, pois, neste encontro a cada momento mais profundo, mais intenso.
sou água, tu és água - tenho-to dito vezes sem conta. mergulho e encontro-me comigo mesma.

a cada descida, sinto que o fim se encontra mais próximo.
oiço, lá ao longe, os rios subterrâneos a calarem-se. estão silenciosos, adormecidos, são serenidade, são mansidão de um tempo que ainda não nasceu . “saudades de futuro”…
em rigor, o mundo subterrâneo que existe sobre a tua e a minha pele. aquele em que mergulhaste há muito tempo - tanto tempo, amor -, pela janela fresta do meu olhar... no mar. aquele em que mergulhei, quando, olhando o fundo dos teus olhos, te reconheci e te aceitei como parte de mim…

desde esse dia, eu, a temente, a cautelosa, decidi descer em rapel a um poço negro, silencioso, e, tantas vezes opressivo, onde as rochas condensam as trevas...
aceitei respirar solidão. esta solidão de ausência e, contudo, pungente de uma presença tão, mas tão forte. és o meu vício e eu, o teu vício ...
noite a noite, descemos as espirais do tempo. conhecemos os mapas de tesouros. conhecemos o leito e as margens de cada um e, numa perícia, num saber trazido de imemoráveis viagens, percorremos recônditas cavernas, sempre, mas sempre convictos de que, do outro lado, está o nosso guia. não improvisamos: confiamos e deslizamos - somos duas gotas apenas. serenadas gotas. talvez orquídeas amarradas para a vida e para além da vida -, como estas, do jardim do éden, que te ofereço. como te ofereço a eterna regra dos dois terços...
nunca a esqueças: - reserva sempre um terço de ti, para o regresso, para o imprevisto. enceta a subida com a calma de quem sabe que aqui, nesta papoa protegida, está quem te aguarda, com tranquilidade de quem já viveu várias vidas, de quem conhece todas as linhas de um grande labirinto e que têm a cruel atracção pelo abismo ...


***
é manhã, deslizo em ti, península papoa encantada. trago ainda as neblinas da noite sobre a face magoada. trago as mãos cortadas das cordas, os joelhos em sangue. são registo inequívocos do esforço da subida. procuro a luz do sol nascente, procuro os brilhos que me envias reflectidos em milhões de espelhos ... procuro um sinal de que estiveste aqui e, encontro, uma a uma, seis novas espécies desabrochantes de orquídeas.
belas, como sempre. raras, enigmáticas, em várias tonalidades de sol poente ... em matizes de laranja e rosa - fragmentos da rosa que desabrochaste - pétalas de rosa do deserto, pedaços de luz jorrante na manhã ensolarada. e tanto mais.
está frio, envolvo-me no meu xaile de lã escocesa, passeio entre flores, serenamente dissipando aos poucos a sombra da noite.
desatenta, o xaile prende-se de repente sobre alcantilada fraga. tento que se solte. está numa posição de contraste.é, num só tempo, sombra e luz. tento uma vez mais, mas entre ele e eu, o abismo. ou a própria morte.
meu xaile, companheiro de tantas noites, o meu xaile de lã ...
olho-o e hesito. sustenho-me no ar vento a varejar a fraga inóspita; quase que cedo, quase que plano - pássaro de seda, fio de prata, gota ou gotas caídas sobre o meu mundo -, convictamente, sou, "tudo e nada"!
desisto e, como por magia, sob o sol avermelhado da manhã, sob os meus olhos, renasce, inesperada, das cinzas, uma bela e misteriosa flor: uma nova espécie de orquídea. dizem que uma das mais fascinantes e sensíveis flores já vistas na natureza...

ajoelho.
deposito em ti todas as minhas dores, todas as minha mágoas. e rezo. rezo-te, senhora dos remédios, tu que te vestes de azul e mar, que estás aqui a vigiar esta península, deixa que me consagre a ti, nesta orquídea em flor - candeia de amor!


sobre mim, sombras de mil asas de gaivota. tombo enfim. estou tão cansada ...
"

***

o que lhe aconteceu?
conta a lenda, que terá morrido quando os homens sem delicadeza, sem dela se darem conta, a pisotearam e a deixaram ali, no chão, caída. por tempos e tempos. para além dos tempos..
mas que, a sua semente, por vontade dos deuses, revive a cada madrugada nos germes dos espeológos que se aventuram a descer a fraga da papoa no encontro com as suas mais secretas rotas e faz deles pessoas raras, belas e solidárias ...

conta a lenda que, na papoa da vida, elas, as orquídeas, são candeias acesas sobre os altares do amor, candeias iluminando as trevas, os desalentos e que, em cada romaria em homenagem à senhora dos remédios, lá no cabo carvoeiro, os pescadores percorrem a papoa, em busca de uma que seja, para com ela louvarem à sua protectora...

conta a lenda que

a semente do amor, jorra em cada ventre de mulher, em cada abraço com que acolhem os filhos da terra e do mar, no fim de cada viagem ao vulcão de si mesmos.

conta a lenda ...

_
Nota: Texto publicado aqui em 2006
Foto: Mel de Carvalho in Loro Park, Orquidário - Tenerife

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...