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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

no encontro do poema




Enquanto caminhava a Sul, um arco-íris fendia-lhe o céu plúmbeo. No pára-brisas uma chuva miudinha. Espiou a cordilheira à direita. Era Domingo. Uma placa desnecessária identificava o lugar, muralhas de cerca antiga, o cheiro da fornalha, o ladrido dos animais, um barco sem remos no ancoradouro, o jardim de pedra,
Guinou o carro,
foi há mais de cem anos?, talvez, de tanta estrada ocorre-me a baralhação do interdito com aquilo que importa (ainda) dizer. era, disso tenho convicção absoluta, tempo de vindimar cepas retortas na crosta solarenga da serra. eu não tinha a sabedoria dos que cresceram nos socalcos nem fleuma áspera e sadia dos cabelos desgrenhados das mondadeiras do trigo, ocultos em chapéus de palha;
dizias de meus olhos chanfros recordados no meticuloso gesto de uma máquina precisa, amendoados como duas olivas lazúli, azeite de candeia, água de beber, ao lavar do rosto a poeira da tua estrada. exausto, dizias-te, no silêncio da tua fala, foz de lágrimas extraídas dos poros inquietos da terra, sob o sol de Inverno, lágrima muda em minha face,
Senhora, não guardes palavras nos bolsos rotos da madrugada,
fala, A solidão por vezes é um lugar mal situado em que nos reinventamos...
não me deixaste continuar - teus dedos poisados leves (tão leves) nos meus lábios -, Solidão doirada, para não morrermos devagar e vagarosamente sós em rosas e rotas inventadas,
Recordei-te o adágio antigo, Até ao lavar dos cestos é vindima... pousei a cesta rendida ao apelo da tarde; inclinei-me rebordada sobre o cajado firme do teu peito, elevei o olhar a roçar-te a fronte tangente ao queixo atenta à pulsação dos ribeiros, ao cantar dos grilos, harpas de prata ao desafio a cada final de dia,
e já era noite,
nos currais o gado resfolegava em bafos quentes, os cães dormiam a teus pés o sono dos justos e eu, mínima (tão mínima) pela primeira vez, soltei as asas contidas nos meus dedos e afaguei-te
a medo, o rosto,
a medir-me contra a grandeza das vagas cor de espuma que te encobriam a idade, neblina a varrer a terra e o mar, de lés-a-lés, a celebrar-te - as mãos em concha - à bica aberta dos silêncios,

Na inevitabilidade, deste-me o braço a pedir desculpa pela imperícia dos gestos,
roubaste a estrela de cinco pontas de um esquecido presépio
que pousaste no teu ombro

guias-te-me em tua casa,
e foste-me língua da península a penetrar-me a fala.


Imagem da net

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Axonomorfa


Num espelho de aumentar defeitos, olhava-se, prejudicial a si mesma. Perscrutava cada ruga, cada poro, cada alteração de cor ou de textura, a que, como é de regra, os corpos estão sujeitos. Antonieta era então uma mulher sujeita ao pior dos julgamentos, aquele que, sobre si mesmas, encetam as mulheres desavindas.
Aos seus ouvidos, ainda a frase do dia anterior
Consegues colocar-te no meu lugar?
E a resposta, desconcertante, sem espaço a contra resposta - Não.
Levantara-se da mesa. Nada mais havia a dizer. Aceitar perecer devagar ou largar tudo e começar de novo. Em qualquer dos casos, como bastas vezes dizia, deixaria sempre que, boa, enorme parte de si, morresse. Por ali corriam todos os dias em que amara, os filhos paridos, as árvores plantadas, os cheiros híbridos da casa. Por ali vagueava nua à conversa com os gatos, a aquecer a alma nos olhos dos cães vadios convertidos em camaradas. Mas tudo ia, como ela, flora ou fauna, desembocando no túnel estreito da velhice, e, um após outro, a seus pés ou no seu colo, feito, antes de si, a viagem. Tal como o limoeiro que vivia agora a uma haste só. Do tronco espesso de outrora restava uma casca esventrada, casa de formigas de asa, a suportar a única pernada - a do ladro esquerdo. A da direita, aquela a que tantas vezes amarrara a rede e donde, suspensa, embalara as noites de estíbio, a iludir o tempo, com as crias em colo, há muito secara. Usava-a para amparar a hera que ia, ainda assim, embelezando e invadindo num voo consentido, os muros da memória.
Enquanto se olhava ao espelho de aumentar defeitos, por entre as roseiras desguarnecidas e o amarelo das folhas espalhadas nos passadiços de mármore, arrancava uns pés de salsa e, ali mesmo, à água corrediça, os lavava. Mordiscava até que o trave azedo lhe aclarasse a dentadura. Purgava-se como os bichos. Depois o verdete escorria-lhe os cantos da boca que bochechava, gorgolejando ruidosa, confundindo-se com a água, à abertura franca da torneira. Gelada, o gelo a fulgir sorrisos contra a parede sombria. Continuava. Nas rotinas que inventava, nas que o ciclo dos dias crus lhe atribuíam por género e predisposição.
Foi quando a viu. Sacudia pantufas numa janela próxima. Desgrenhada, de avental, ataviada em trapos sem forma, quase cadavérica. Dias antes, cruzara-se com ela na rampa de acesso. Entre os bons-dias e os folgo em vê-la, monólogos circunstanciais, viu-lhe a dentadura a bailar na boca, notória dificuldade em a segurar às gengivas. À fala. Desarticulada. Inexpressiva. “…a menina dança?". Viu-lhe o desacerto do que fora, em tempos não muito longínquos, molde perfeito para um sorriso, ainda que postiço.
Viu-a e viu-se.
Agora a salsa não só lhe branqueava o sorriso, mas o sentido de si. Em desespero de causa, arrancou até à última folha, toda quanto cobria o alegrete - no vazio, ninguém daria pela falta. Em desespero, mordeu-a, mascou-a até que, na boca inchada a segurar os dentes, apenas as fibras restassem do que fora, daquela planta, roseta empenechada.

Agora apenas os talos estiraçados lhe escorriam o rosto, finos como as rugas, pastosos como as raízes engrossadas. Axonomorfa.
Planta aromática de um jardim imperceptível, salsa, salsa latina, talvez, igual a tantas outras. E a força das raízes. Sem folhas.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Como pode acontecer, Cidália?


Ainda te sinto nas minhas mãos, Cidália. Ainda sinto a quentura da tua pele, o bafo quente do teu beijo, a tua língua enrolada na minha. E o teu desejo, Cidália? O teu desejo… a hora em que eras mais tu, e logo mais minha. Cidália… Como pode isto acontecer ? Eu acreditava em ti, eu queria o melhor para ti, o melhor para mim, o melhor para nós. Como pode isto acontecer? Em que é que falhei, Cidália? Porque fui eu que falhei, Cidália…

Sabes, Cidália, enquanto atravessava o país de lés-a-lés, enquanto atravessava as horas de todos os dias, os dias de todas as semanas, as semanas de todos os meses, os meses de todos estes anos, era em ti que pensava, era no calor do teu corpo que descansava, era o desejo que via nos teus olhos que me guiavam na madrugada. Tinha fome de ti, Cidália, fome, Cidália, fome!

Às vezes, às vezes – confesso-te agora, que não importa mais -, parava num qualquer Club, bebia uns copos… Sim, Cidália, sim, isso mesmo que estás a pensar… Saciava a carne, a fome da carne. Mas nunca te trai, Cidália. Nunca, ouviste? Nunca amei nenhuma delas, nunca desejei mais que o instante em que o corpo se esgotava. Ai, Cidália, fechava os olhos e eras tu que eu via, os teus seios pequenos nas minhas mãos, as tuas ancas a ondular na fome do teu prazer… tinhas prazer, Cidália, que eu sei… Ou fingias??? Tu fingias Cidália??? Não, Cidália, não posso acreditar que todos estes anos fingias orgasmos, que me mentias… que me enganavas. Cidália, diz-me que não, que esta suspeita não tem qualquer fundamento… que eu, o teu marido, te dava prazer… Cidália, fala, fala … não me deixes nesta incerteza, não deixes que esta dúvida me torture para o resto da vida… tens a noção de que isto é a honra dum homem? Um homem, Cidália!!! Cidália, vais-me dizer que não era homem para ti? Que quando te possuía não te dava o que um gajo deseja dar a uma mulher, à mulher que ama… eu sempre te amei, sabes? Tudo menos isso, Cidália, tudo menos isso! Sempre fui macho, Cidália, antes de ti, tive várias mulheres e, Cidália, sei que foram felizes comigo, sei, percebes? Um homem sabe, Cidália, um homem sente… ou não sabe, Cidália??? Ou pensa que sabe e não sabe coisa nenhuma? De que natureza são feitas vocês, mulheres? Cidália…

Ainda te sinto nas minhas mãos, Cidália. A estremecer, a vibrar… e agora Cidália, a chuva que cai lá fora, a chuva que empapa a noite, cai pesada dentro do meu corpo, cai desgovernada dentro do meu cérebro. Sinto-me a afogar, as águas a subir, os caniços da margem cada vez mais longe, cada vez mais longe… estou agoniado, Cidália, não sustenho o vómito, o vómito tem a cor do alcatrão, o alcatrão de todas as estradas, de todas as noites que não dormi na febre de ir dormir a teu lado… como naquela noite em que depois de ter enganado o taquímetro, fiz mais de mil quilómetros. Cheguei inesperadamente, entrei no quarto, dormias, as crianças dormiam, tirei os sapatos e possui-te, vestido, sem te ter acordado sequer… Tinha fome, fome de te ter, Cidália, entendes? Não te tinha há quase dois meses … Apenas os primeiros raios da manhã iluminavam o nosso quarto. Sonhavas, aceitaste-me e quando abriste os olhos… não sei, Cidália, não sei dizer o que vi nos teus olhos… disseram-me … Sei lá, Cidália… que estavas a sonhar, pensei! Embrulhaste-te tão rapidamente, Cidália … sonhavas, pronto! Com quem sonhavas, Cidália? Com quem?...
Dói-me o peito, a luz baralha-se-me na mente, relampeja-me em trovões, e estes zumbem-me nos ouvidos… Oiço-te claramente, numa voz que nem é mais a tua, que não reconheço… e, contudo, és tu! Tu! Só tu…
A chuva ensopa-me a memória, a sopa escaldou-me a boca, os vomitados ensopam o sobrado, o nojo sou eu, o nojo é a vida, esta vida de enjoo… Como pode isto acontecer, Cidália? Tenho de dormir, dormir mil anos antes de puder entender a mensagem que me mandaste para o telemóvel ontem quando jantava … Bebi, bebi sim. Bebi até perder o norte de mim, até não distinguir o norte do sul, nem sei como vim parar aqui…
Oiço agora as risadas do Tomás, do Henrique, do Alfredo e sei lá de quem mais. Vejo toques de braços, olhares zombeteiros... “Vais para casa hoje, Miguel? Telefona antes, pá … não vás ter surpresas… As mulheres fazem surpresas a um gajo… dormem por casa das mães, têm medo do escuro, do bicho papão …”
E riam, Cidália, riam e acotovelavam-se se como que a passarem mensagens em código morse… nunca liguei, Cidália. O que eles tinham era dor de corno, as mulheres deles não eram como tu, Cidália… não tinham o teu viço, o teu brilho… Tínhamos uma vida bonita, uma casa um carro … E continuava, Cidália, trabalhava o mais que podia, queria o melhor para ti, o melhor para nós. Não, Cidália, não te ligava, como bem sabes… Não queria que pensasses que desconfiava de ti, que te estava a controlar. Telefonava ao Domingo, Cidália, sempre. Nunca me esquecia de ti, nestes anos todos de estrada, Cidália, e quando vinha, Cidália … ai, Cidália, tu sabes…
o vento zumbe, as árvores secas mergulham galhos na tempestade. O camião está lá em baixo, por debaixo da sacada, o destino do frete o Norte de Espanha, parto amanhã daqui d’Elvas…
Cidália, como é que esta merda foi acontecer???
O quarto cheira a vómito, eu sou vómito, eu sou esterco, bosta humana. Olho de novo e não acredito no que vejo … devo ter alucinado de vez, Cidália… cegado de vez… Como pude ser tão cego? Leio uma vez mais...

“estou no hospital … nasceu o meu filho. Os nossos filhos ficaram na casa da tua mãe… não me procures mais”…

Cidália… ainda sinto as tuas mãos, a tua boca, o teu corpo … como é que isto pode acontecer?


Republicação, in "Contos de Mulheres" ©, - livro no prelo
Imagem Bruno Moreira, Olhares

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Como pode acontecer, Cidália??

Por erro do blogger este texto não aparecia nas listas; foi recolocado acima. Dado que já havia sido comentado, deixo os comentários.
Grata
Mel

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...