Sobre mim ...

A minha foto
Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

respiração da memória

absolutamente, necessitava.
que respirassem. que vissem a claridade luminosa que ela mesma via, dali, daquele espaço onde crescera e se fizera mulher. não as trocaria por riquezas outras em circunstâncias algumas.
era certo que estavam "desbeiçadas" como se dizia a propósito disto ou daquilo cujos "beiços", os rebordos, haviam perdido a forma original. esboiceladas como diriam os mais eruditos, era certo que não serviam os requisitos utilitários para que haviam sido concebidas há mais de cinquenta anos. mas certo era também que durante anos e anos, tantos ou quase tantos quantos os da sua meninice e parte da adolescência, as vira dependuradas na cantareira e se vira ela mesma "proibida" de as usar no dia a dia.

"são para dias especiais, ouviste???".
ouvir até ouvira... mas...
pois. não lhes resistia.
o fascínio pelo belo, pelo harmónico, falavam sempre mais alto e, não raras vezes, quando solicitada a cozinhar, ou quando avançava os preparos culinários por iniciativa própria, as ditas riam para ela apelando ao toque. era então que, nesses dias, subindo a um banco ou uma cadeira, descalça para não os danificar e bem na pontinha dos pés as libertada do jugo a que se viam votadas e ousava infringir a regra que lhe fora imposta: usava-as!!!, nunca sem que antes as passasse por água corrente.
depois, delicadamente, cuidadosamente, usava-as.

regra infringida, a punição?
bom, dependendo o humor, assim o resultado: um sorriso ou um ralhete... ou um misto de ambos num orgulho disfarçado de a ver “aprumada…”
"dás cabo das panelas, tens que te haver comigo... não te servem os tachos de barro? e os de alumínio??? …fina que me saíste, rapariga...".

que fazer?
ele, o "trem de cozinha", namorava-a a olhos vistos (ou ela a ele, vá-se lá saber...).
usava-o. tentava contudo que não tocasse nas pedras da bancada, que não pegasse ao fundo. não desviava as atenções, mexendo com a colher de pau ou abanando as asas, dependendo do que estava a preparar…

“cada coisa tem seu preceito, rapariga. aprende que não duro sempre. a caldeirada abana-se, o refogado mexe-se … e “colher provada, colher lavada“. porcaria não, ouviste???…”
isso ouvia. e aprendia. e aplicava. a panela era sagrada. a comida uma dádiva de deus. a cozinha o altar onde se rezava sem palavras. limpa, sempre. imaculadamente limpa.
e bela. convinha!!! … as panelas?, os paramentos, pois então …
tentava que nada danificasse aquelas preciosidades destinada aos dias de festa.
para ela todos os dias eram dias de festa. a vida tinha de ser uma festa. de outra forma que sentido lhe encontraria? e, “boa em retórica”, nunca por nunca, deixava de argumentar:
"mãe, os tachos têm que respirar, têm de ser usados...".
"que pressa tens tu de os acabar, rapariga??? ora deixa-te de finuras e areia os de alumínio que fazem tão ou melhor figura. ou tens medo de estragar as unhas? olha, olha, já a "cigarra tem catarro"..."
ou
“… ainda não descobri se eras boa para seres médica (jeito tens, lá isso é verdade, para os porcos… e para os cães e gatos, a dares-lhe a vacinação) ou se davas para advogada, com tanta lábia…mas a mim não convences. ora deixa lá os tachos na cantareira que me custaram bom dinheiro e nem sempre choveu por aqui…”.

sabia disso. dos esforços para os comprar. quando a pedreira engoliu as terras, o gado deixou de ter pastagem… sabia das mãos gretadas e dos trabalhos rudes com que aqueles povos, netos e filhos de lavradores, se viram a braços. e porque sabia, mais amava cada peça. e se amava, tocava. ou quem ama não toca? só olha?
teria a mãe amor platónico pelos tachos???

lera à socapa sobre isso: amor platónico…
tão lindo… fazia chorar que nem cebola em faca afiada. se fazia! mas não lhe servia a ela. gostava de tocar os tachos. de os usar e de ver as caldeiradas a fumegar nas suas entranhas …
dos outros amores ainda não sabia….

teria por essa altura pouco mais de duas mãos de anos. e gostava de unhas limpas, sim senhora... e pintadas, pois então ... de branco, que outra cor, exclusão do pérola, não lhe era permitido. e o alumínio mascarrava a pintura, obviamente, pois claro!!! ... para além de que, a condizer com a faixa de ladrilhos bordeaux que encimava o branco dos demais, de dez por dez, e que cortava a cozinha a meio, só mesmo aqueles, eles também, de rebordos bordeuax... e amarelos pálidos como o sol de Inverno.
usava-os.
"para que respirem", insistia.
um dia o maior deles quase que “morreu” … mas isso era outra história. salvou-o a ti’Lucrécia e a sabedoria da aldeia…
“botas de molho, filha… o queimado amola… depois, devagar (pressas só para parir, que a hora se quer curta, ouviste??? devagar, com as tuas unhas (ficas sem elas, mas crescem…), rapas… até só ficar o negro. colocas lixívia pura… e amanhã lavas. depois limão e sal grosso… e lavas de novo. quem te mandou sair de casa e deixar o tacho ao lume??? um porradão te dava eu se fosses minha filha…”
não dava. só dizia que dava para meter respeito enquanto amarrava o lenço à volta da cabeça ao jeito da Nazaré… não era dali. viera por “mor’amor, ó rapariga. o me’homem é que me trouxe fugida das redes, aqui p’ras “leziras”…
o tacho ressuscitado. quase novo …

a respiração das memórias … anos depois, já mãe, a sua filha:
"…o umbigo, o umbigo mãe, eu acho que é o respiro do corpo ... não achas mãe?"
um sorriso em ambas. a respiração das coisas. os laços umbilicais. os cordões que nos unem às memórias. só nossas.
por essa altura já o inox chegara e destronara o esmalte encantado… já os tachos vinham à mesa… já se “desbeiçavam” sem grandes penas … a espaços. vinham a espaços …

agora ali. adornando o tempo … e o espaço.

"love me, Alex., dont love the things...", dissera-lhe. “love me, and go with me, soon…”
ela partira. amava-o.
a casa recebera "the things";
misturadas com as anteriores eram pertença de todos e de ninguém. o amor transferira pessoas para outras longitudes (e o destino levara outras para outras dimensões…)
havia que repartir “the things” pelos parentes próximos.
onde houvesse espaço, utilidade ou ambos…

em tempo de Verão, a casa vazia reabriu-se. recebeu maravilhada uma vida nova.
sorriam as paredes em novas cores
e os tachos expostos nas pérgulas…
“tu e a mania das finuras. quintais, criatura. quintais …ora pega na vassoura e varre que as folhas da buganvília mancham o chão …”

“… mãe!!! gostas dos teus tachos aqui, mãe???… gostas que eu sei…”
[… conversas inverosímeis, só nossas, mãe…… não ralhes mais.
os teu tachos são muito bonitos, sim].

e das memórias da casa, desfolhadas, revividas e reinventadas se pejaram os tempos.
os dias soalheiros e os sorrisos. e as gargalhadas. e a admiração dele.
"..."madrina", this furniture, this basins, was of your mother? and there has more than 50 years old? you kept it, conserved it and now here it is displayed? so pretty… oh, so pretty..."
"yes, Mathias, they where my memories and they need to look the sun ..."

o inglês estava longe de correcto. de ambos… pouco importava. era da respiração das memórias que se tratava…

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...