Sobre mim ...

A minha foto
Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Mulher-palhaço

Anárquica
a água dobra a sinalética imprecisa. A rua geme a dor da perda - a forma em que o alcatrão se esvai e é barro, barro cru, a escorrer-se lento nos ralos e nas sombras
[e nas sarjetas de um tempo que não devia sequer existir.]
A intempérie avança. No casulo das borboletas esvoaça agora uma traça.
A mulher-palhaço já não tem força para retocar a pintura,
nem sequer deseja recolocar a peruca. O palco está sempre mal iluminado e as feras aguardam o que resta do festim. O pano sobe:
disseram-lhe que naquela noite teria de substituir a trapezista. Ela tem medo das alturas. O público aguarda o número das facas.
O fogo escorre já em câmara lenta. Desliza contra a escarpa mais alta em sombra esquia.
O cheiro da gasolina empapa a estrada, escoado pelos canos de escape. O sangue escorre (ou assim parece). Não sabe mais onde é o seu lugar. Não é dali nem daqui. Ouve uma buzina... e outra, e outra.
Segura a roda da vida, mas o volante guina, perigosamente guina. A condução está descomandada.
Timidamente enxuga a boca. Rasga um sorriso na pele mordida pela geada do último dilúculo, alarga-o rente aos lábios com o gelo formado em forma pontiaguda, desenha a lágrima que lhe dizem enfeita a face pálida, calça as botas sem solas e sobe ao palco.
Eleva-se então, eterna - dizem que se cair terá sempre a rede. Contudo não a vê: “o rei vai nu…”
No último segundo a corda cede. A valeta é a sua derradeira morada.

Do ventre da terra vem agora o escárnio, o ruído da tempestade. Um soldadinho de chumbo espreita a guarita em segredo. Ainda tenta mostrar-lhe o caminho, a passagem secreta… em vão.

Anárquica a voz se solta por entre um chorrilho de lágrimas. E de palmas. A alma sobe. Ela já não mora mais ali.
Findou a luta.

 ***
imagem da net, desconheço autor

domingo, 18 de janeiro de 2009

Ofélia

“…Vês, meu Bébé adorado, qual o estado de espírito em que tenho vivido estes dias, estes dois últimos dias sobretudo? E não imaginas as saudades doidas, as saudades constantes que de ti tenho tido. Cada vez a tua ausência, ainda que seja só de um dia para o outro, me abate; quanto mais não havia eu de sentir o não te ver, meu amor, há quasi três dias!”
Carta de Fernando Pessoa a Ofélia, 19/02/1920
Projectou-se na montra, turvou-se com os trapos dependurados em época de saldos no manequins de fibra mas não se viu. Havia muito que deixara de se ver, ou melhor, do que via, pouco ou nada reconhecia. Um nevoeiro de Inverno atravessava as quatro estações, anestesiava-lhe memórias e astenizava-lhe o corpo que, sem vontade, progredia nas ruas da cidade. Naquele dia chovia uma chuva porca, lamacenta, que enodoava tudo. Subiu as golas, empurrou a cabeça para cima em direcção ao alto, o casaco de xadrez recém comprado a lamber-lhe os joelhos, as calças de ganga justas a denotar-lhe as formas. O cabelo a  afagar a cinta. O cabelo fogo, ela ainda. Olhou de novo. Viu-se na vitrina exterior do Centro Comercial. Confundiu-se com a manequim. Meio século de vida. Olhou o relógio: seis da tarde, sexta-feira. Em seu redor tudo parecia vivo num desfile de rotinas e de gentes. Menos ela. Abriu o carro, colocou o ticket do parquímetro visível. Maquinalmente fechou-o. Tinha agora uma hora sua. Só sua. A tosse invadiu-lhe o peito, a espasmos. Rapidamente procurou o pacote de lenços de papel. Assoou-se. Os tímpanos a latejar, a sensação de vazio, de vácuo. Na expectoração, o sangue vivo já nem a assustava. Sangrava de vários orifícios, tantas vezes …A garganta doía. O cansaço permanente. Horas antes duas mensagens. Curtas, incisivas. Depois o toque - “Ofélia, queria despedir-me de si, vou de fim de semana, mas não sem antes saber se está melhor, lhe dar um mimo …”. Minutos de sol no frio que a vestia. Cúmplices, brincavam com o fogo. Corriam rumores de que trepava as janelas como um gato, que padreava muros, que subia árvores sem folhas em busca de pássaros desabrigados que fazia temporariamente seus. Corriam rumores de que das sarjetas as ratazanas acorriam ao som mágico da flauta e se fundeavam no rio, no lençol freático de suas águas. Era necessário dragar o rio. Limpar as margens, para que voltassem a ter vida. As barcaças estavam paradas sem timoneiro e sem carga. Não se exploravam as areias do rio, o mar salgado invadira o mar da palha. E as aves eram sempre de arribação.
De novo a tosse, a vertigem. O chumbo da noite e o céu a cair-lhe em costas. O peso do céu: - “ligo-lhe de manhã, quer?” . Queria. Queria sim. Queria as migalhas, que fosse. Queria sentir que pelo menos ele se lembrava dela. Que pelo menos ele a não confundia com os manequins do Centro Comercial. Chovia agora mais forte. Abrigou-se na lona de uma das lojas. Outros transeuntes imitaram-na. Eram já muitos. Quase que a acotovelavam. Detestou ter ainda olfacto. Por fim, estendeu um braço, a palma da mão aberta. Não chovia já. Rapidamente retomou a marcha, rumo ao nada. Os demais seguiram-na, a rua voltou a encher-se. Desejou a feira de Outubro, o carrossel, o cheiro dos coiratos e dos polvos, desejou o rodopio de muitos anos atrás, quando ainda acreditava na força centrífuga dos corpos. E das almas. Desejou os toiros soltos na rua, a areia molhada, o atrevimento, a caliça solta dos pátios da escola. Desejou ser ainda a outra, a convicta. E os cabelos louros e os olhos de mar. Entrou no café. Pediu uma bica - “em chávena escaldada, por favor”.
Abraçou a chávena entre as mãos, demoradamente, “ninguém morre de véspera”, a não ser o peru de Natal. Quando é que ela tinha morrido? E onde se morre primeiro? No amargo das folhas de ciprestes, na avenida larga dos ciprestes por onde em cortejo fúnebre deslizam os caixões sem vida que levam os restos dos que amamos? Ou quando as janelas dos vivos se fecham em torno do nosso olhar? E a solidão nos chicoteia em noites de lua cheia? “Era Inverno na estação dos pássaros”…

Um rapazola entrou. Só o viu quando a mochila descaminhada tombou sobre si. Num ápice o café espalhado na mesa. O empregado apressado. O esfregão a absorver o negro e a vontade de ali estar.
Não disse nada. Levantou-se, saiu para a rua. Todas as luzes já estavam acesas. Era tempo de regressar a casa. Aproveitou os últimos minutos de uma falsa liberdade. Despediu-se lentamente de Ofélia projectada agora em palco, acéfala. Noutro palco.

domingo, 11 de janeiro de 2009

todos os dias um dia




"Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um..."
- Eugénio de Andrade


perco-me
no labirinto dos sentidos. no sentido fungiforme das multidões proliferantes em paredes brancas.
o olhar dança no contorno perfumado das palavras
nos tons da tinta
da tinta preta que se agita. dizem que sou o tempo. quanto a mim, nunca soube quem sou. “todos os dias um dia“, disse-te, quando dizes-te , “… pode ser que a gente se veja amanhã”

vim. a praceta está deserta. como naquele dia. uma laranja ácida tomba dulcíssima da laranjeira. meia laranja se esborracha no alcatrão. dois gatos em telhados de zinco brincam em ritos de acasalamento.
o cenário perfeito. baile de máscaras. ópera. bailadado.
dois cines no lago
de nenúfares.

remexo-me na cadeira de ferro
- o frio gela as ancas e os quadris.
o corpo avulta para além das fronteiras geométricas, vielas a que chamaram formas. espaços, hangares negrumes, plataformas informes onde gravitam intocáveis castas hindus. castros antigos. citânias dispersas em nevrologias parcas. em necrologias de páginas sépticas no cepticismo
que me toma.

a bola vermelha contorna o tema. o poema era.
o poema é
'inda
néctar. ainda é … “planura de utopias”. um mar, uma maré, uma ilha. um barco que parte no azul contraste do infinito. “na praia onde esperei por ti, as ondas subiram e, afogada, morri”

volto ao poema.

ela ali.
desfolhava o tempo
em vitrais de que lia apenas as parangonas (assim parecia, quem podia ter a certeza, se ninguém sabia a profundeza das águas nem sequer das vagas em que se emulava em anéis de lava).

sabes … entre a multidão, o tempo. Kronos.
incógnito, deixa registos de gastura e de secura no sangue a pulsar artérias e veias. adelgaça-se a pele, contraditória, num registo de eternas luas cheias ocultas por sob poros em congruência.

remexo-me agora
a cadeira tem pés contundidos
e a curvatura das horas amolece-me os olhos de cansaço.
enrolo-me embrionária e de novo, a espaços,
volto à postura erecta.
e de novo te procuro, tal réptil, em todos os lugares inquietadores em que a tua mente se esconde e onde a minha ousa avançar:
- traças arrebatadas e inusitadas tramas e esperas que chegue. aí, sem dó ou piedade, és a noite: avanças, sugas-me em isometrias de uma forma vampírica e, “numa boca descarnada de dentes“. sem que exista sentido neste jogo, deixo que me aspires e que me faças tua presa (se de ti estou presa há tanto tempo…) noite! noite da minha vida, inverso da luz, lugar provável onde reside a alma.
entras
pela janela dos meus olhos, deslizas sob a epiderme dos sentidos. enrosco-me em ti, dramática e, felina, agradeço a tua visita, a cada vinda.
refloreço em orgasmos inveterados de palavras. em epigramas e anáforas…

"Devias estar aqui rente aos meus lábios”…
lentamente
deixo que me penetres todos os sentidos.
código de barras impresso na parede, dou-me a ti, neste altar de frutos e de flores e espero que me conduzas ao teu mundo…

" ...para dividir contigo esta amargura"

quando a manhã chega, sob os lençóis freáticos da alvorada, encontra duas sombras imprecisas e, no vale onde me habitas, um cheiro a cânfora, a rosas e a sândalo...

duas gotas de sangue escrevem o horizonte. à boca da bica, na bica do abismo. ciclópicas gotas.
o perfume da noite, ou nada!


segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Morreu serenamente


- gostava tanto de dançar, menina, tanto … dizia-lhe enquanto a percorria num sorriso de luz na memória revisitada naquela manhã de Inverno quase Natal..
- toma um chá quente, D. Anália?
- tomei um de manhã, menina, ao pequeno almoço…
- mas quer um de novo? só para me fazer companhia… vá lá ...
A cabeça a abanar afirmativamente. E um novo sorriso de gratidão imenso, rasgado, sereno. Pelo chá, pelos cinco dedos de prosa, que adivinhava ia ter…
- aqui tem. Com pouco açúcar. Desculpe … tem de ser, como sabe. O meu é mesmo sem nenhum, que gosto do sabor das ervas…
As mão tremelitantes num afagar de chávena. E as da interlocutora a tocarem as dela. E ambas em sintonia. Em rota. Em busca astronáutica da poeira e da poalha dos astros.
A cadeira de rodas encostada ao lado e a poltrona cheia de almofadas. Os pés poisados, os pés cansados, num pequeno banco a que chamava seu…
- ajeita-me o banco, menina? Só um bocadinho mais para trás, vai deslizando no mosaico… ai estes pés… tanto que dançaram menina, tanto…
- o que dançava D. Anália?… no rancho?
- no rancho? Não, não … danças de salão, tango (gosta de tango?), valsa, (e valsa, gosta?) … sabe, a vida é tão rápida, tão, mas tão rápida ...tenho tantas saudades, tantas… das tardes em que dançava, do meu par.
- seu marido?
O olhar agora enigmático, fugidio, volátil, a esculpir figuras cénicas na enseada. A ansiedade de saber o quanto já era tarde. O cabelo branco, tão branco, a emoldurar o verde-cinza do olhar. E o sonho misturado com a magreza da realidade.
- não menina, meu par na dança, apenas … O meu par real era outro. O meu marido não sabia nem gostava de dançar. Escolhi então aquele (e ele me escolheu a mim) e nos seus braços, menina, encontrei a liberdade… Era tão lindo o meu par… esguio, alto… nunca mais o vi.
O olhar agora longínquo beijava a memória dos tempos de que não havia retratos. O olhar de Anália girava em ciclos concêntricos parados nas rodas da cadeira de rodas. Na incontinência total, de fezes e urinas, que não raras vezes a tornavam alvo de chacota. Dos outros. Dos pares ali em sala...
- está toda borrada. Outra vez…
E as fezes, líquidas, incontidas, a chegar aos pés da mesa. Em poça. E o almoço de todos completamente estragado. O desconforto. A mágoa. A impotência face ao cruel da realidade.
- tão triste ser velho, menina. Tão triste…
Um afago breve - “esqueça, D. Nália, foi apenas um incidente. Já se limpa tudo, verá…. Fará a sua higiene, voltará aqui à mesa para fazer a sua refeição …”
A cabeça a abanar compulsivamente. Não. Não, nãoooo... Depois o olhar indiferente… ausente. Talvez algures a lágrima. Não chorava.

Agora a dança. Um sorriso de pássaro livre. Fora. Seria até ao fim.
- está bom o chá, D. Anália? Quer uma bolachinha de água e sal?
- não, obrigada, não se mace. Basta que fique por aqui… é bom conversar…

Morreu serenamente. Na mesa, ao pequeno almoço. Sem uma palavra. Acompanhada pelos pares da casa última antes da derradeira morada…

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Lulu e outros galãs ou a "Cadeira Veloz"

***
Gueddes e Cunha até ai calado, anfitrião da noite, com investimentos no sector privado “na saúde, meus senhores, na saúde e na velhice, que é o que dá garantia de retorno” avançava agora dois passos enturmando-se com os restantes comparsas. Fixava âncora ao candeeiro de ferro forjado verde-garrafa, fixava as margens largas do corpo precocemente envelhecido nos excessos das campinas, das noitadas e “outras cavalarias altas” nas botas de montada, largamente ensebadas. Pigarreava no fumo do cachimbo, tentativa infrutífera de clarear a voz, esfalfada do dia inteiro a tanto incentivar cães nas supostas tocas dos coelhos e das raposas em coutada.

Embrulhava-se ao capote de lã, subias golas, compunha boné, enfiando-o profundo na cabeça calva. Em antecipação de supremo gozo, buscava o inominável das palavras mais contundentes, que, a muito custo, sustinha na saliva da boca…

No escuro pouco iluminado da praça, apenas os olhos de pequenas dimensões e de “grandes visões” como sempre afirmava a propósito e a despropósito de si, fulgiam, num sorriso branco para além de maquiavélico. Lançava chispas a Heitor Coutinho, num desafio destemido de “contas tu ou conto eu?” enquanto esfregava as mãos compulsivamente, uma em outra.

Os rostos avermelhados pelo frio e pelo carrascão “suprema colheita, aquela, meus senhores…”, aproximavam-se um a um. Era a hora de todas as horas “agora ou nunca, Heitor…”.

Adivinhava-se uma grande revelação, de contornos auspiciosos ao libertar de profundas risadas e de inconfessáveis vontades de ter dela feito parte. Afinal, nestas coisas de saias (e era disto que se haveria de falar, pois então), o naip nunca estava completo. Uma dama de espadas, uma vaza de ouros, um valete de copas, uma facada no matrimónio (dos próprios ou dos outros), era de somenos. Desde que, obviamente, os galardoados fossem diferentes de si, que não eles. Isso não…

Heitor avançava com anedotas de circunstância a empatar a hora, ditotes sobre a política e o estado das artes, sobre os deslizes verborreicos na cozinha e nos salões de Belém, sobre “isto e aquilo” e mais “aqueloutro”, sobre os afãs e os consortes preteridos; sobre os livros que, pese embora a vontade, nunca havia lido … “falta de tempo, meus senhores. Um homem não chega a tudo…”
Tarde demais!

“…pois conto, eu. Não se livra o senhor de que saibamos todos o que, por lá no Hospital, na época em que andou com o “colesterol alto e a tensão baixa”, se passou… valha-nos Deus, meu amigo, a “vergonha” que o senhor há-de ter sofrido. Logo o senhor, dado a corridas de bicicleta pelas encostas da serra… não foi dai que lhe adveio o epitáfio de “Heitor, o ciclista”? … bem, convenhamos que seria mais a propósito “Heitor, o maratonista”, não é caríssimo amigo?…

Ria, ria já perdido. Heitor nada podia fazer para reter a estória da sua aventura hospitalar e desse modo preservar o bom nome da dama que, à semelhança de si, tinha aliança nobiliárquica no dedo.

“…exacto, casada a balzaquiana beldade. Casada e mal amada. Carente, obviamente… os senhores sabem o quanto me constrange, o quanto me avilta a alma, que se vivam carências … sabem do meu espírito humanitário, solidário e samaritano. E, se assim sou, são também assim os amigos que escolho. A senhora era minha amiga, só me ajudou…Ora, meus senhores, tudo não passou de um gesto de boa vontade …”

“factos, Heitor. Factos. Conte-nos lá como tudo aconteceu. Não coloque mais paninhos quentes na coisa. Ou é homem ou não é. Ou tudo não passou de um “lamentável incidente?”…

“… bom, não … não! Seja. Conto. Prefiro contar a que o Gueddes se lambuze em minudências e “evidências” que jamais aconteceram. Que venha dizer que, antes deste terrífico dia já nos galávamos desmedidos entre os registos no computador e as portas dos vestíbulos onde me trocava para os exames… que nos roçávamos, escorridos um no outro entre um aperto afectuoso de mão e a abertura das respectivas viaturas no estacionamento… que, bem, os senhores sabem o quanto é capaz de apimentar coisas banais. E, meus amigos, sou um tipo banal. Nada dado a encenações. Acham que iriam entrar num jogo destes? Ali, no hospital? Ora, tenham santa paciência, se fosse no meu território ainda poderia ser, mas ali? Aconteceu e, creiam, afinal foi tudo muito simples...

... O que na realidade, em rigor da verdade sucedeu foi que, estando a fazer um check-up no hospital “X” (posso omitir o nome, pelo menos?) e, vitima de uma enorme indisposição, dados os níveis altíssimos de colesterol (despido, claro), a senhora enfermeira (minha amiga por sinal, como já vos confessei), me aconselhou a que reclinasse a cadeira ao máximo… tonturas, vertigens, meus amigos… e, como devo subitamente ter desmaiado, ela, profissionalíssima, tombou sobre mim para me reabilitar os sentidos. Era verão, no píncaro da estação, a senhora estava de bata apenas, o que, ninguém de bom senso estranhará e que, na confusão, ter-se-á desabotoado na integra. Claro que nem se deu conta. Eu muito menos, desmaiado que estava….
No frenesi de me reabilitar - modernices, meus senhores -, a cadeira ergonómica deslizou, destravada, veloz e, sem qualquer controle alinhou-se com o olho óptico da abertura da porta que a tomou por maca … velocíssima, abriu ainda uma segunda, no mesmo alinhamento e, eis senão quando, acordo em plena sala dos médicos que ali faziam a mudança de turno. Eu e senhora, que, com o corpo (belíssimo...) desnudo tentava cobrir as minhas miudezas diminutas já pelo frio … coloquem-se no meu lugar, meus senhores e digam-me que podia fazer? A senhora tentava a custo recobrir-se a ela, fugia que nem uma gazela, desgrenhada, ofegante de cansaço… e eu, deitado ali, expostíssimo, mas já de colesterol em níveis baixos… valeu-me um amigo nosso, que estava na sala. Apressou-se a evacuar os demais, a devolver-me os meus pertences deixados na sala de enfermagem. E, claro, a fornecer-me um vodka da garrafeira particular que, secretamente guardava algures… mas como é que sabe esta estória Gueddes?… se jamais voltei a usar a cadeira? … e, saiba o senhor, saibam todos, que estive quase para levantar um processo contra a empresa que forneceu o material técnico para a unidade hospitalar. É que aquilo não tem segurança nenhuma, não cumpre a directiva comunitária minimamente … poderia até ter havido um acidente grave, não concordam, meus senhores?

Concordavam. Claro que concordavam. Se concordavam …

Entre risada geral entraram de novo numa das poucas tavernas ainda abertas. Por de trás do balcão, sentada na cadeira elevatória da caixa registadora, uma balzaquiana de longos cabelos azeviche e olhar de amêndoa olhava-os um a um. Heitor fez sinal aos comparsas que se sentassem. Iria ele mesmo ao balcão solicitar as bebidas … a noite, afinal ainda era uma criança.
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Agradeço, muito reconhecida as vossas leituras. A todos que por aqui passam deixo votos de um excelente 2009.
Abraço fraterno da Mel

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...