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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

domingo, 18 de janeiro de 2009

Ofélia

“…Vês, meu Bébé adorado, qual o estado de espírito em que tenho vivido estes dias, estes dois últimos dias sobretudo? E não imaginas as saudades doidas, as saudades constantes que de ti tenho tido. Cada vez a tua ausência, ainda que seja só de um dia para o outro, me abate; quanto mais não havia eu de sentir o não te ver, meu amor, há quasi três dias!”
Carta de Fernando Pessoa a Ofélia, 19/02/1920
Projectou-se na montra, turvou-se com os trapos dependurados em época de saldos no manequins de fibra mas não se viu. Havia muito que deixara de se ver, ou melhor, do que via, pouco ou nada reconhecia. Um nevoeiro de Inverno atravessava as quatro estações, anestesiava-lhe memórias e astenizava-lhe o corpo que, sem vontade, progredia nas ruas da cidade. Naquele dia chovia uma chuva porca, lamacenta, que enodoava tudo. Subiu as golas, empurrou a cabeça para cima em direcção ao alto, o casaco de xadrez recém comprado a lamber-lhe os joelhos, as calças de ganga justas a denotar-lhe as formas. O cabelo a  afagar a cinta. O cabelo fogo, ela ainda. Olhou de novo. Viu-se na vitrina exterior do Centro Comercial. Confundiu-se com a manequim. Meio século de vida. Olhou o relógio: seis da tarde, sexta-feira. Em seu redor tudo parecia vivo num desfile de rotinas e de gentes. Menos ela. Abriu o carro, colocou o ticket do parquímetro visível. Maquinalmente fechou-o. Tinha agora uma hora sua. Só sua. A tosse invadiu-lhe o peito, a espasmos. Rapidamente procurou o pacote de lenços de papel. Assoou-se. Os tímpanos a latejar, a sensação de vazio, de vácuo. Na expectoração, o sangue vivo já nem a assustava. Sangrava de vários orifícios, tantas vezes …A garganta doía. O cansaço permanente. Horas antes duas mensagens. Curtas, incisivas. Depois o toque - “Ofélia, queria despedir-me de si, vou de fim de semana, mas não sem antes saber se está melhor, lhe dar um mimo …”. Minutos de sol no frio que a vestia. Cúmplices, brincavam com o fogo. Corriam rumores de que trepava as janelas como um gato, que padreava muros, que subia árvores sem folhas em busca de pássaros desabrigados que fazia temporariamente seus. Corriam rumores de que das sarjetas as ratazanas acorriam ao som mágico da flauta e se fundeavam no rio, no lençol freático de suas águas. Era necessário dragar o rio. Limpar as margens, para que voltassem a ter vida. As barcaças estavam paradas sem timoneiro e sem carga. Não se exploravam as areias do rio, o mar salgado invadira o mar da palha. E as aves eram sempre de arribação.
De novo a tosse, a vertigem. O chumbo da noite e o céu a cair-lhe em costas. O peso do céu: - “ligo-lhe de manhã, quer?” . Queria. Queria sim. Queria as migalhas, que fosse. Queria sentir que pelo menos ele se lembrava dela. Que pelo menos ele a não confundia com os manequins do Centro Comercial. Chovia agora mais forte. Abrigou-se na lona de uma das lojas. Outros transeuntes imitaram-na. Eram já muitos. Quase que a acotovelavam. Detestou ter ainda olfacto. Por fim, estendeu um braço, a palma da mão aberta. Não chovia já. Rapidamente retomou a marcha, rumo ao nada. Os demais seguiram-na, a rua voltou a encher-se. Desejou a feira de Outubro, o carrossel, o cheiro dos coiratos e dos polvos, desejou o rodopio de muitos anos atrás, quando ainda acreditava na força centrífuga dos corpos. E das almas. Desejou os toiros soltos na rua, a areia molhada, o atrevimento, a caliça solta dos pátios da escola. Desejou ser ainda a outra, a convicta. E os cabelos louros e os olhos de mar. Entrou no café. Pediu uma bica - “em chávena escaldada, por favor”.
Abraçou a chávena entre as mãos, demoradamente, “ninguém morre de véspera”, a não ser o peru de Natal. Quando é que ela tinha morrido? E onde se morre primeiro? No amargo das folhas de ciprestes, na avenida larga dos ciprestes por onde em cortejo fúnebre deslizam os caixões sem vida que levam os restos dos que amamos? Ou quando as janelas dos vivos se fecham em torno do nosso olhar? E a solidão nos chicoteia em noites de lua cheia? “Era Inverno na estação dos pássaros”…

Um rapazola entrou. Só o viu quando a mochila descaminhada tombou sobre si. Num ápice o café espalhado na mesa. O empregado apressado. O esfregão a absorver o negro e a vontade de ali estar.
Não disse nada. Levantou-se, saiu para a rua. Todas as luzes já estavam acesas. Era tempo de regressar a casa. Aproveitou os últimos minutos de uma falsa liberdade. Despediu-se lentamente de Ofélia projectada agora em palco, acéfala. Noutro palco.

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...