Sobre mim ...

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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

café com letras

de quantas vogais se faz uma vida, um livro, uma página, um parágrafo aberto sobre a mesa? de quantas linhas (programáticas) se fazem, compactas, as tábuas das leis? as mutualidades, as assistências, as necessidades especiais? a vigilância epidemiológica, ambiental? a educação para a saúde, a atenção integral à criança, ao adolescente, ao jovem, o envelhecimento activo? uma escola, uma casa, uma campa, um berço?
onde, quando, e em que  lugar de ontem, deixámos inacabado o resumo rústico e genuíno do que somos desde o colo de nossas mães, ou, para que conste, no ventre, no útero e mais além?  (deixei de acreditar na lonjura dos teus olhos, sabes? e isso dói. e isso inquieta. e pesa e macula como grude nas asas. por vezes, 'inda. o acervo da memória é-me inútil...).
sem vislumbre de futuro, rejeito a matriz SWOT, e, cabotina, por certo, assumo o erro da crença e do princípio - falhei!
entre um gole e outro, em jeito de pausa, vasculho-me por dentro, interrogo-me amiúde, e, sem respostas, remeto-me ao meu mundo pequeno, umbilical e supremo, em que o pouco é tanto e, tanto sendo, me basta ... 
 café com letras!


sábado, 12 de outubro de 2013

na face dos dias: Dulce

(Originalmente publicado em 27/07/2013)

há coisas que nunca mudam. que permanecem inalteráveis ao passar das vidas, ao passar dos anos. 
que o digam estas bagas que recolho do chão, algumas secas, imprestáveis, e, outras, ainda verdes e frescas da madrugada adormecida em chão de folhas e caruma;
que o diga este cheiro, traumático e intenso,  que se asila, desde que me lembro,  nas mucosas das  minhas narinas - a minha avó usava-o para impedir as traças, afastar os insectos, para defumar as casas; fazia-o a crepitar no fogo incansável da lareira. transportava-o, depois, em brasa, ao longo de todas as divisões, a passos largos, para que dele nada se perdesse, rápida.
o perfume percorria todas as dependências, varrendo-as de baixo a cima, de cima a baixo, abrindo-nos, desbagado, os pulmões, os peitos em jeito de quilha de galinha,  ainda frouxos de amores e de vontades, de crianças. e,  dizia-me: respira, respira forte
e eu respirava, primeiro a medo, aquela alma embuçada de verde a percorrer-me  as fossas nasais, os lábios, a garganta, a descer em mim como nas paredes, para subir e logo descer de novo, igual ao rio que dali avistávamos, já desbragado por chegar à foz.  aquele rio de fumo a entrar em mim e a sair, sem licença, sem permissão, por todos os poros, a sair, já meu, tomado da minha respiração, do meu ar, do meu sangue, a sair, como entrara, pela porta da traição, e eu ali, impotente, lacrimante, sem apelo nem agravo. 
mudada por dentro, amolecida, acre e doce, fraca e forte, Dulce, dulcíssima,
respirava de olhos fechados, chorosos, sem saber se, do fumo ou da força indecorosa que advinha da mistura das bagas e da labareda. ainda assim, respirava de novo,  cada vez mais próxima, os folhos das saias a roçar o chão, a varrer os bichos rastejantes, quase a consumir-me de vontades de ser, eu mesma,  parte daquele todo. daquele fogo, animado nas bagas que eu própria lhe acrescentava. - poucas de cada vez, Dulce. poucas. estão verdes, não trazem mal ao mundo, mas, ainda assim, não se sabe. nunca se sabe.  nunca ateies um fogo que não saibas ou não possas controlar. nunca, mas nunca,  ouviste? 
e logo,
respira, verás que dormirás melhor, que não haverá tosse que te pegue, nem humidade que em ti entre.  resulta, resulta sempre, são santas as bagas do eucalipto, repetia-me a minha avó, mulher sem idade à face dos meus dias. agora vai, já chega. vai e dorme com Deus. e eu ia, perfumada pela terra, em passinhos miúdos, adormecer as noites para que não me trouxessem nem a tosse nem os invernos dos montes.
entrava de mansinho nos lençóis que puxava a mim até que me cobrissem por completo.
Dulce, dormes? dormes, Dulce? não respondia, encolhida de pernas e de braços, um novelo de nada, um meada ainda por dobar do que haveria de ser mulher, um dia. abraçava os joelhos com muita força, com toda a força do mundo, um casulo como os dos bichos da seda, contava "um, dois, três, ... trinta, trinta mil ", fazia  batota para que o sono chegasse mais depressa, e não, não vinha. custava a chegar. os passos dela, arrastados, afloravam as paredes, quase que via a caliça solta a colar-se ao negro com que se vestia, quase que a sentia dentro do meu casulo, quase,
Dulce, estica-te. pareces uma rodilha, é por isso que não dormes. não te esticas, a cama não aquece, que mania a tua. estica-te, ou será que tenho que te amarar pela cabeça e pelos pés, como faziam na Inquisição, às grades da cama? com a diferença que, à mão,  só tenho as teias de aranha do curral, mas se não te esticas verás de que sou capaz. ora não querem lá ver que tenho mesmo que te castigar...
esticava-me de mansinho, o casulo a quebrar-se, a pele a deslaçar, a meada a desenrolar-se num emaranhado de fios e vontades - tanto trabalho para nada, agora teria de contar de novo, "um, dois, três, ... trinta, trezentos,  trinta mil ", talvez o  sono chegasse. e, de novo, já longe, mas ainda ali, "Dulce, estica-te, eu estou a ver-te, respira fundo, imagina que és uma bailarina em pontas  presa por  fios de aranha. imagina, Dulce. consegues imaginar? sonha com isto e  amanhã contas-me o que sonhaste. eu já sou velha, não sonho (ou se sonho não me lembro). por isso, contas-me os teus sonhos, combinado? e, para que me motivasse, acrescentava, eu faço-te uma boneca de trapos com olhos da cor dos teus: duas ervilhas doces. duas ervilhas, Dulce ...
e eu ficava a ruminar naquilo 
    "era uma vez uma princesa que não dormia porque, sem que soubesse, tinha uma ervilha sob os lençóis, e, noite após noite, todo o corpo lhe doía. e a alma também. ou seriam duas? ..."
nunca fazia. nem a boneca nem a bola que prometia aos meus primos. não tinha tempo. era quase velha quando tinha apenas trinta anos, e, adulta de todo, quando a conheci. e os adultos estavam sempre atarefados a encontrar desculpas para não serem felizes e para não fazerem felizes os outros;  ou isso era o que eu imaginava quando os via, cabisbaixos, enfadados, a morrer nos limites de cada fim de tarde - adormeciam fincos contra as mesas, subiam aos tombos para os quartos, ressonavam pela noite adentro a concorrer em roncos vorazes com os porcos, a desafiar os alvoroços matinais dos galos e das rãs residentes nos charcos da chácara para onde, sem que me perguntassem se queria, me "despachavam" pela rodoviária,  - Toma conta dela, senhor motorista? ela não incomoda nem vomita, e, lá na Várzea, os tios hão-de ir apanhá-la. e eu subia, os degraus maiores que as pernas, a saia de folhos a atulhar-me os joelhos e  as canelas pejadas de arranhões e nódoas negras - não tomas atento a nada, parece que és cega, pareces um Cristo em chagas -,  a mala para três dias, leve de vazia,  e cheia de inutilidades para as tias, para a avó, e depois passavam três meses, a escola começava, e ninguém me ia buscar, nem a avó "despachava a mercadoria" - ficas cá, aqui também há escola, e tu respiras melhor, não te acoitas de maleitas,  nem fazes lá falta. e já era a feira de Outubro, e os touros já andavam na rua, e os campinos já se engalanavam pelas ruas da cidade, as tronqueiras já estavam fechadas - por aqui ninguém passa, andam os bois na rua, ou querem levar umas cornadas?  e, por fim, a "mercadoria" era requisitada - a tua mãe não pode vir. está a trabalhar. vim eu, é o que importa, não é? ora Dulce, vês como te faz bem estar na chácara? (chácara porquê?, perguntei um dia:  foi um tio, que partiu  para o Brasil e por lá morreu de tifo, doenças de meninas,  ou,  já não sei, que a comprou. nas Lezírias, é uma fazenda, bem sabes, mas é a Chácara  e não se discute. nem mais, seria Chácara...), 
pareces outra, cresceste, esse vestido está curto, temos de cortar esses cabelos, parece uma juba de leoa,  a tua avó é que tem tempo para te fazer tranças, para o ano cresce de novo. não, um dia vou dá-las à Senhora de Alcamé. dá já. nãooooooooo.
agarrava-as,  minhas, louras, quase ruivas. escondia-as sob os queixos; - as tranças não, não; eu penteio-me, madrinha, por favor... se eu me pentear, a senhora não mas corta? 
sem resposta, 
apressa-te, temos de sair daqui antes que soltem os bois e encerrem as trincheiras. dá corda aos sapatos, estica-te, vá, olha em frente, deixa-te de pieguices, abre-me bem esses olhos, ou será que tens medo de incendiar o dia? ainda ficas marreca. será que te tenho de atar um fio à moleirinha contra o céu? depressa, Dulce, mais depressa.
 liam todos pela mesma cartilha, eu,  a corcunda, a marreca, com mais olhos do que cara, "cor de ervilha, enormes, num palminho de rosto",  e, talvez por isso, o medo grande de olhar em frente, de incendiar um fogo que não fosse capaz de apagar
como aquele que via na minha avó quando mo dizia. aquele fogo estranho, brilho de água e sal,  de quem tem dentro mil anos e um só destino. aquele fogo que se ocultava na espada de Lancelot, 
vá, imagina que és uma bailarina em pontas, ergue o queixo e respira. e, do chão, agora, não o cheiro do eucalipto da avó, mas a bosta dos bois, dos cavalos, a areia solta  a encher-me os olhos, o choro sem razão e sem sentido. querem lá ver esta? não queres ir para a escola? já começou a semana passada. ou queres ser, marreca, corcunda e, além do mais,  analfabeta? 
talvez,
a sabedoria pesa. é um fardo, uma canga que nos dobra. quem te andou a dizer essas coisas? os bichos, respondia-lhe. os bichos? andaste à fala com os bichos?? endoidaste, Dulce, endoidaste de vez...
aproveita e diz aos touros que se atrasem ou, tu e eu, levamos umas cornadas. 
atravessávamos, juntas, mais a mala, num ápice a praça. ao longe, e já tão próximos, os chocalhos, os cabrestos...  
...
há coisas que não mudam. 
naquela manhã Dulce levantou-se cedo, encheu o peito de ar, ergue a cabeça, o queixo a esconder a trança semi-desfeita da noite de insónia,  dirigiu-se ao duche, a banheira demasiado alta para as pernas já cansadas de derrames e  varizes,  uma, depois a outra. a água a contornar o corpo. alguma flacidez a inaugurar-se nas carnes secas - o princípio do fim. a água, livre, aberta, depois fechada. as mãos desnudas, reconhecidas dos caminhos de pureza, 
e aquele mimo a que se dava, os cheiros da infância, o Musgo Real, a Alfazema do Monte, a Lavanda, sabonetes reencontrados como que por magia - coisas que não mudam nunca, por séculos que viva fosse. essas e tantas outras. vestiu-se, prendeu os cabelos num puxado sob a rede invisível, colocou uma fita larga a encobrir-lhe as fontes, a ocultar-lhe a nuca, protegeu-se contra o sol indecoroso de uma manhã de Julho, pegou numa garrafa de água fresca, no relógio, no telemóvel, nos fones com que se haveria de alhear do mundo e bateu a porta. depois com a outra, e ainda a outra. finalmente, com a do carro. o vidro lateral direito queixou-se, estremecido ao embate. haveria de tomar mais cuidado, na próxima, ainda há dias substituíra o elevador da janela esquerda, uma nota preta, um despesa impensável para quem contava "tostões" em tempo de vacas magras;  accionou o motor, corrigiu a direcção e seguiu em frente. havia que seguir em frente, se necessário fosse, com duas palas laterais aos olhos, como as bestas no ardil da nora. havia de seguir em frente - era quase velha e tinha a idade de vento em fim de tarde. mas era manhã, e, sem que se impedisse,
estacionou rente ao rio. ergueu-se o mais que pode;  Dulce, ergue o queixo, olha o horizonte, imagina-te uma...

sim, mãe, tia, avó, sim, imagino-me uma bailarina em pontas suspensa por um fio de coco! não, não posso. maior que o universo é-me hoje o apelo ao chão que piso, a busca da essência que atravessou a minha vida. que me atravessa, ainda,  alojada  em cada baga de eucalipto que exalo, à mercê do sol...

Dulce dobrou-se em voo rasante contra a berma da calçada do passeio ribeirinho. laterais, os pinheiros, os eucaliptos, o chão coberto de folhagem amarelada e de bagas. sacou de uma pequena bolsa do bolso das calças, e, com gestos pausados, ajoelhada já a beijar a terra, meticulosamente, recolheu, uma após outra, todas as bagas frescas que encontrou. 
antes que chegassem as primeiras chuvas, antes que fosse outono, a feira de Outubro, os bois na rua, as cancelas fechadas,  as trincheiras engalanadas, 
antes que a esquecessem de novo na Chácara, antes que,
antes, 
haveria de inalar a vida às mãos cheias. uma vez que fosse. ainda que para isso tivesse de romper as pleuras e os pulmões. ainda que...
de mãos firmes, pejadas de bagas, levou-as à face dos seus dias,  à face pálida do seu rosto. impôs-se ao sol, depois de meses a fio de recolhimento. sentiu-lhe, próximo, o fogo insaciável em libertação de aromas reminiscentes, a possui-la como antes, como sempre - há coisas que nunca mudam, Dulce, bem o sabes;  em anamnese  o que  simulava esquecido, o fogo de um Agosto a aproximar-se a quatro dias, a entrar-lhe, voraz, indecoroso, primeiro pelas fossas nasais e boca, depois a percorrer-lhe, ácido e turbulento, a faringe, a laringe, a traqueia, a descer mais fundo,  mais íntimo, a penetrar-lhe como a espada de Lancelot, os brônquios, os bronquíolos,  a encher-lhe os,  igualmente pequenos,  sacos alveolares (bolsas, como a que enchera).  aquele aperto, a pleura contraída, ou, não saberia dizer, se, o estilhaçar do diafragma,  urgente em  separar o tronco em partes desiguais, tórax e abdómen, a parte nobre e as vísceras, a impor-lhe o ritmo da respiração. a essência eucaliptíca a oxigenar-lhe o corpo em premência metabólica, a dor de burro, que tão bem conhecia, desde que,  pequena,  em corridas se deixava tomar pela quase impossibilidade de respirar de traqueia apertada por onde o ar, oposto aos anéis de cartilagem, quase impunha, fortíssimo, o fim, em paredes colapsadas...
ficou assim, por tempos incontáveis. ninguém a esperava...  
Dulce, dulcíssima...
...
o que lhe aconteceu? não sei, só a autópsia o dirá. suspeito que terá inalado, em demasia, o ópio da vida...

sábado, 6 de julho de 2013

a matemática das asas: Selma

não creias que a tarde finda apenas porque a noite cai, extrema, nos teus braços. 
seria redutor pensar dessa forma, bem sabes - em cada momento, o seu contrário, em latitudes inversas. neste verão, explicam-me os gajos da "menterologia", chove. chove granizo e tempestades, algures, onde não faz necessidade alguma;  aqui, à boca da rio, morre-se a sede das águas. 
mas é assim. estava escrito.  
para os crentes, por obra da ordenação divina, para mim, porque me convêm à narrativa: a chuva confere sempre um quadro melancólico à coisa, um cenário lúgubre, um certo misticismo de conteúdos e de formas, matiza de desconhecido, afastando, o chilreio ácido dos pássaros. esquadrinha as coisas sólidas em lamas que se alojam sob as unhas já de si enegrecidas de quem, como eu, dá a mão à palmatória. e por ali fica, pegajosa, tempos e tempo, a esponjar a alma, a toldar-lhe a consistência. custa a sair, a chuva, dos olhos e da pele. e o sol é astro distraído que nos repele em uv's demasiados e nos torna secos e ásperos, como lixa, como sola de sapatos.  sobram os pássaros. em certos dias, são eles que, há falta de tudo, me enchem as tardes. coabitamos de forma pacifica, nem sequer tento individualizar-lhes, verdadeiramente, os sons, os trinados, as melodias fobocrónicas. e nem preciso. conheço-os de ginjeira, nos voos picados com que descem ao solo da mais crua verdade e logo sobem em estertores cadenciados. adivinho-lhes momentos a anteceder a própria morte, a agonia, e fico daqui a pensar se gostarão mais de morrer a prestações, ou se não lhes seria mais vantajoso um golpe de vento certeiro, um golpe d'asa contra um poste. só se perde o feitio. o resto, a massa, a volumetria,  fica toda, ainda que dispersa pela paisagem em cacos disjuntos.  às vezes resulta, concordas? ou morrem mortos ou despertam, aprendem com os gatos o fôlego de viver sete vidas. e vivem felizes. aconteceu assim comigo, posso até contar-te, mais logo. mas agora não. digo-te, somente, de como os oiço, e quando os oiço, e, o tanto que tal me basta. 
silencio-me a observá-los, tão fina quanto um fio de água que se esgrima em disputa ávida contra o chão e acaba com as noites de sombras e insónias nas sancas da calçada. ou das paredes da casa, tanto faz. é por aí! nesses dias, confirmo-te, 
a praia é das gaivotas e  eu sou aquilo que não me lembrei de imaginar. 
simples como a matemática das asas – não conheço nenhuma ave que voe com apenas uma, são sempre aos pares. quando era pequena e me perguntavam o que eu queria ser quando fosse grande eu não sabia - faltavam-me os referenciais, os modelos, ou os exemplos grandes de ordeiros ou vilões, faltavam-me os carismáticos que,  mais tarde, bem mais tarde,  haveriam de encher de "ah's", a minha vida, e, reconheço, as vontades de ser qualquer coisa. qualquer coisa que fizesse sentido para eles, os que se inquietavam a colocar-me com tais questões.  a não ser... 
a não ser que, 
pudesse ser cereja no tempo de cerejas. erva das primeiras chuvas, melancia aguada com cheiro a verão e a lezíria. pão trigo acabado de cozer. ou bafo de forno em dias de inverno... disparates, portanto. 
daí a não ser nada do que não me lembrei de imaginar foi um passo de recém-nascido, um esticar lento de nervos e articulações, na carne e na alma, uma força merdosa a embrulhar-me os passos, amedrontada, ao e com, o peso da gravidade, e, talvez por isso, me tenha enchido de "talvezes" tantas vezes, ao longo da vida. mas que importa isso agora? nada, mesmo nada, é apenas o palanque donde (re) começa a narrativa. chamo-me Selma, o meu nome tem importância e não têm. têm porque assim sempre podes dizer "a Selma", não têm carácter, não tem peso na engrenagem,  a Selma, "coisa pouca", é ninguém. e, no final, dizer: puta que a pariu, escolheu o caminho mais fácil. 
seja. sou a Selma, por conseguinte. cinco letrinhas apenas,  fraca figura, porte de gazela assustada, mosca morta, rata de biblioteca. feito o descritivo, onde é que a Selma entra na história? recordas-te? vou avivar-te a memória. comecemos pelo início. estavas sentado no topo do teu pedestal, no gabinete do fundo. revias a lista interminável do teu dia. um time shequedule complicadíssimo, por sinal, vejo daqui, agora, com este olhar adquirido nesse dia. 
repentinamente, a sirene estilhaçou-te os ouvidos. atropelaste os corredores, engoliste o eco de um grito que, vá lá saber-se porque, te pareceu tão familiar, focaste a lente de repórter de imagem, enquanto que, numa fracção de segundo, todo o filme te passa. te passa ao lado. literalmente. passa-te ao lado. ainda assim, queres que te relate como aconteceu? foi simples, tão sub-liminarmente simples; a linha que separa a vida e a morte é, dizem, de apenas uns segundos, atravessei a rua, subi a escada, subi em busca de um espaço onde o ar não se ramificasse, fosse raiz e caule. procurava, um lugar limpo, arejado, libertário. subi ao terraço, intentei subir além do beiral, e, Ícaro, icei-me à parte mais alta da cobertura. foi quando senti, finalmente, o vento e a vontade de dobrar a aragem de mim própria, de ser qualquer coisa. era a hora. 
e ela chegou; liminarmente, chegou. como um pássaro fugindo da própria sombra. 
vinte uma grama, pesa a alma. agora estou mais leve. ela - desidrato de personalidade -, ficou colada numa estrela, algures; que assim seja, Ámen! é-me confortável tal possibilidade. 
de resto, creio, subiu em forma de pássaro azul; 

agora sou matéria, simplesmente, e, os meus olhos são livres de se despirem dos desejos ocultos, e a mim, finalmente, cabe,  em direito, o direito à descida vertiginosa ao mar onde as ondas são igualmente livres na interpretação dos nadas,

... e  posso,  por conseguinte,  ser aquilo que nunca me lembrei de ser, ou sequer, de imaginar:  Selma. 



imagem da net, desconheço autor

terça-feira, 21 de maio de 2013

Hélder ou a encenação do silêncio

[REPUBLICAÇÃO] 

somos o lugar e o domicílio de todas as solidões"
Constantino Corbain

Na "hora do lobo", escreveu, quando lhe entregaram para que preenchesse um formulário complicado.   No espaço destinado ao "local", campo exíguo, por sinal,  apertou as palavras, contraindo-lhes o ar "domicílio de todas as solidões". Deslizou a mão não fosse esborratar a folha e, no fim, no campo das "Observações", declarou: Morte natural, nada mais a declarar.  Para que constasse.  
Levantou-se rígido, encaminhou-se direito ao galinheiro, sangrou o galo capão, molhou o indicador. Depois colocou no local da assinatura a sua marca própria, de analfabeto funcional.  Olhou o impresso, transparente como a linfa, última invenção da sociedade burocrática. Max Weber haveria de jubilar se conhecesse tal incremento da tecnologia. Sorriu de antecipado gozo. Cumprida a missão. Leu [se] em voz alta. Havia falha de informação – não sabia a hora ou sequer a data exacta  a averbar em certidão, o dia de morrer – o seu.  Juiz em causa própria, morrera em todos eles,  como vivera. Disso tinha convicção plena. Sabia que morrera, águas depois,  marés mais tarde, que o cão, fiel companheiro de olhos doces de saudade (também ele há vários anos solitário), seguidamente à hora da  gata de olhos de porcelana e miar de fogo.  A tartaruga, inexpressiva, como convém a tartaruga que se preze, mantinha a obrigação de exigir a cabeça fora das costas a arrastar na tijoleira a  carapaça.  Contudo, o brilho dos olhos estava há um horror de vidas riscado de solidão. Não contava, portanto. Companheira, essa, voara como um fumo em dias vendaval -  não lhe sabia nem queria saber o onde ou para onde nem com quem. Ficara-lhe apenas dela o cheiro em todas as fendas da casa, em todas as gavetas que se recusava a abrir. Em todas as roupas que ela usara e deixara suspensas em cruzetas, dobradas a rigor dentro de cómodas, a par com saquinhos cheios de lavanda e alfazema. Ficara-lhe dela  os pentes, as escovas ainda com resquícios de cabelos (eram de fogo os cabelos, talvez de cobre, não sabia muito bem…), ficara-lhe ganchos, travessas, elásticos e bijutarias de algum valor,  sobre a cómoda de nogueira em  caixas pintadas pelos seus dedos – via claro agora que nunca os beijara, nem chupara. Teriam sabor diferente dos da Filipa ou dos da Joana? Os dela, de Rosália, a que saberiam? Inquietou-se. Um nó estranho apertou-lhe a maça do pescoço. Desapertou-se. Dela  ficara-lhe o cheiro impregnado na cozinha das suas compotas, dos bolos, das iguarias com que durante anos o mimoseara  e aquela mágoa a que chamavam dor de corno, por não ter sido homem para a segurar. Não lhe faltara com nada a não ser com o que, raios as parta, desejam as mulheres – um beijo ao amanhecer e outro, se possível mais longo e mais profundo, antes de dormir, Afinal, homem, podes nem acordar. Ou eu, quem sabe? Ou eu….
Em certos dias nem lhe respondia, noutros, Sim, sim, tá bem, até amanhã, dorme que se faz tarde,
Virava o rabo, olhava as frinchas das portadas, contava carneiros se não adormecia de imediato  – o que era raro –, Que falasse. Quanto a ele,  em dois tempo roncava,  C'os diabos era lá homem de lamechismos?  Beijos dava-os às moçoilas quando rapaz, se as apanhava a jeito num esconso em que as subia e as trepava por todas as colinas, em que lhes prometia a mesa farta do seu corpo.  Desse tempo, ficou-lhe o gosto, retomado a cada dia. Rosália era virgem quando a tomara sua e nunca passou desse estado a seus olhos ainda que neles bailassem luares a agourar a experiência íntima do excesso. Hélder era, por conseguinte canónico com a mulher e putanheiro com as demais. A sua era santa, e, se vinha em mácula – bebido ou tocado pelo pecado da carne fora de portas, não lhe tocava ao de leve,  nem para o beijo de boa noite, Tu vives no Paraíso, Rosália, sabes lá o que é o mundo. É cão, morde as canelas dum gajo, o mundo é mar traiçoeiro a virar traineiras mesmo quando se anuncia mar-chão,
Às vezes o Paraíso, respondia-lhe em surdina, mata mais que o Inferno, mata mais profundo que o mar de onde vens,  e tudo o mais. O fogo é lento e a água ferve em banho-maria, por anos e anos,
Tens tudo, nada te falta, Falta-me a vontade, Pois bem, sim, sim,  faz rendas e bordados, não te obrigo a fazeres mais nada. Já te olhaste em espelho? Não tens marcas de esforços,  estás lisa e luzidia, nem rugas tens (no corpo dela, havia,  sem que as visse, marcas intrigantes de violência –  iam e vinham, a espaços, como as marés  –  amareladas, pardacentas...)

Morreu quando tudo à sua volta começou a morrer, o bolor tomou conta do frigorífico, as plantas do jardim secaram em pleno Inverno, as orquídeas deixaram de florir, o lixo se acumulou pelos quatro cantos da casa.  Morreu no dia em que a viu no jornal na coluna da necrologia. A custo leu a notícia de letras demasiado pequenas para a graduação dos óculos. Recriminou-a, palavroso – era obrigação dela,   só dela, ter providenciado a consulta atempada do oftalmologista, as mulheres têm papeis destinados desde a nascença - cuidar dos pais, dos filhos, dos maridos, Vês Rosália, agora nem sei se estou a ler em condições ou se as letras bailam a enganar-me como tu,  mulher sem préstimo. As lentes estão desfocadas, que bicho ruim não morre nunca, Rosália, o que leio é maquinação tua, mandaste escrever estas palavras para te ilibares e me incriminares a de mim,   puta que te pariu,  ingrata,
                 “Hélder do Carmo encenou a morte de Rosália Lira durante mais de trinta anos de vida conjunta mas foi pelas mãos da própria que a peça subiu a palco", puta que a pariu, repetia para se ouvir,   foi ela quem assim escolheu.

Pela primeira vez em muitos anos sentiu a face molhada. Não chovia. As águas da ria subiram o sobrado onde se encimara. Por ali ficou. Puta que a pariu...


Imagem da net, autor desconhecido.

terça-feira, 9 de abril de 2013

a recusa da evidência

"Há noites que levamos à cintura / como um cinto de grandes borboletas. 
E um risco a sangue na nossa carne escura / duma espada à bainha dum cometa."
in A recusa das imagens evidentes, Natália Correia

 não tinha memória, verdadeiramente, de quando abraçara alguém de verdade.
naquela manhã de vésperas reabilitara a sua velha aparelhagem, uma Sharp dos anos 80, vintage como ela própria. para sua desolação o leitor de CD's não trabalhava, por certo pelo acumulado de poeiras. haveria de resolver a questão numa outra hora. agora não, disse a si própria, agora não, repetiu-se. "não há insubstuíveis, sabes?, a arte está na procura de outras alternativas. 
procurou o comando de infra vermelhos por toda a casa. por fim, no derradeiro minuto, no quase a desistir, encontrou-o, desventrado e sem pilhas; uma bênção, concluiu -  de outra forma estariam calcinadas e o comando corroído. em tudo havia sempre um lado positivo e nada haveria de contrariar os seus planos -  agora bastava encontrar novas e isso não se afigurava tarefa fácil, dado que, por sistema, eram sempre consumidas em "n" aparelhos, e, no carregador ninguém parecia interessado em manter nenhuma viva. pouco importa, há sempre alternativas, pensou em voz alta. decidida, retirou as necessárias de um outro comando disposta a, nessa mesma tarde, sem falta,  as repor. não tencionava deixar rasto dos seus dias, sequer das suas escolhas. ao fim de muitos anos tomava, determinada, o pulso ao tempo e às suas coisas. sintonizou a Smooth Fm - tocava Diana Krall, Every time we say goodbye. esfregou os olhos a dissipar a névoa que, súbita, desceu sobre o seu rosto. abriu os roupeiros e começou a seleccionar o que haveria de levar consigo;  de tudo o que não cabe numa mala, pensou, não ficará rasto... Blame it on my youth, blame... talvez fosse. a culpa fosse da "sua" juventude. tarde em demasia, agora.  
esfregou os olhos com mais força. adivinhava-se no horizonte um tempo novo de sombras perfiladas, soldados à porta de armas, e, dentro de si, em relutância de princípios,  passos perdidos em claustros monásticos. projectavam-se desabrigados, hoje como ontem, nas veredas e calçadas, nos silêncios remoídos, na espessura das searas, nas canas bravas. havia, contudo (e sabia-o desde criança)  atalhos no rumo rectilíneo das águas ..."ah, se os meus cabelos, soubessem da textura dos teus dedos... ah, se...". uma imensa trança ornava-lhe o ombro direito, espessa como um pulso de donzela casta, fulgente como crepitar de uma lareira, de chama e pontas  triunfante sobre a cinta. ..."ah, se …”
em fúria, a contrariar o rumo do pensamento, arrancou-lhe  o atilho.  os dedos a dedilhar os fios, a retalhar os nós, a doer no leito nupcial do seu desejo. um humor grosseiro a rasgar o rosto, um sorriso a morrer por dentro. uma mágoa bastarda e ilegítima.  de tudo o que não cabe numa mala, esguiava-se o verbo em neblina de movimento. vigilou-se, impôs-se a si mesma, como quem controla o acto e alibi, e agora, que lhe restava? "porque os outros" amam "mas tu não"...
a doçura da sua natureza nua, os dedos a desfibrilhar os nós, a chuva a magoar beirais, os cabelos soltos, a certeza de que  naufragamos  por vezes infinitas em mãos inimigas… a frescura da resina a impedir a morticidade da alma.
retomou o comando, aumentou o volume até que o jazz lhe trespassasse, cinzelando, em vibrato de vidros, todos os poros, levando para longe a poalha dos dias e as lágrimas - a lágrima é um cisco entre o olhar e o lábio  num apuro corrompido à falta de argumentos, pensou em voz alta. recomposta, com a cara enrubescida de emoções, mergulhou na feitura da mala, nos planos de batalha, na teoria do quadrado, na quadratura do circulo. estava agora  aturdida de um frio escuro (talvez fosse o inverno, ainda, e as estações do ano e da vida não necessariamente verdadeiras)  a subir-lhe as pernas bamboleantes. em dialéctica de contrários, surpreendia-se tantas vezes, a si  própria, ao salpicar a história de água benta, amolecida em recusa de imagens evidentes,  e,  contudo…
não são minhas as palavras, sequer as letras de um qualquer alfabeto; nem tão pouco os verbos que não contenho nas palmas abertas de uma vida; minhas, por certo, serão as formas com que visto  o tempo, este, branco de neve e espanto que me aguarda em Primavera que não chega, disse-lhe, enquanto Ricardo a escutava sem que dos seus lábios aceirados se soltasse uma palavra...
fez-lhe, um sinal, a mão a suplicar-lhe, mais perto. deixa-me abraçar-te, segredou-lhe já com a cabeça a tombar-lhe urgente sobre o peito. e, como se para si própria falasse, disse-lhe: sabes, meu filho, quando sonhas (e sendo tu, como és,   parte de mim, talvez seja a mim que o diga), quando sonhas, repito, olhas o horizonte, este que te rodeia, alvíssimo de branco, ou outro que quer que seja, e és, não do teu real tamanho, como já alguém o disse, mas do tamanho dos sonhos em que te atreves ser numa espécie de artes performativas, mas, quando te dás ao tempo de te olhar por dentro, de te ouvir por dentro, então, direi que vives. a assertividade não é incompatível com a performance que imprimes no rumo de tua vida...
lentamente afastou-o de si. o sol teimava em iluminar a cadeira de vime vinda de um verão longínquo. Catarina beijou-lhe o rosto onde uma lágrima parecia indiciar o entendimento do que acaba de ser dito. elevou a cara a buscar-lhe o rosto. depois, como lhe fazia quando ele era menino e lhe entrava um cisco, uma areia, uma poeira que fosse, para os olhos, segurou-lho entre as mãos e beijou-lhos, sugando-lhe as lágrimas. afastou-lhe o rosto de novo, riam os dois. gata, disse-lhe, és mesmo uma gata. bem sei, respondeu-lhe a franzir as sobrancelhas levemente, afirmativa e inquisitiva,  e, para que conste, tenho sete vidas.  o segredo dos gatos é uma espécie de metáfora de asas...  
ou a asa de um segredo a sombrear o tempo, retorqui-lhe. em tudo o mais, sempre te digo da importância desmedida de tudo o que não cabe numa mala… 
numa mala cheia de gatos?  num miar de gatos,  riram juntos. 
                 afinal, gato que mia não morre ... 

quinta-feira, 7 de março de 2013

Além daquilo que [nos] faz chorar.



Além daquilo que faz chorar os poetas, que faz com que 
os soldados se lancem para a frente e percam a vida 
à luz do sol: que será, Bill?           
(Carl Sandburg)


Morriam lado a lado como peixes podres com os olhos esbugalhados ao ridículo da questão. Por vezes, quando o Inverno lavrava leivas desapegas na argila lisa, improperando os terrenos à caminhada, impondo tempos de pousio em vésperas de cultivo das novidades, quando o frio antecipava a morte e lhes impregnava a pele no mofo de pregas vincadas - "féleo jugo" de ser pó e ao pó voltar -, davam-se conta, ainda que de forma ténue e nunca verbalizada, de que, dia a dia, esmoreciam de vontades e de futuros em afasias e extemporaneidades. Aí os dedos aproximavam-se aos gestos.

Mas não havia liturgias nem salmos nem oráculos divinos. Tudo era, à luz negrejada pela noite lá fora (e dentro de cada um) uma espécie de função utilitária onde só os corpos fermentavam em leveduras requentadas; os olhares, de baços,  já não se nutriam de palavras e, dia a dia, morriam. No canto espúrio dos olhos dela, por vezes havia ainda uma luz, centelha fortíssima à força de pedra. Jade, onde as lágrimas resilientes nascidas algures numa nascente de serra se retalhavam antes de tombarem largas a eviscerarem, iguais às chuvas torrenciais, o tecido do rosto. No canto espúrio dos olhos dele, no modo inverso, parecia já não haver espaço a manietações gravíticas, inquietações, desideratos sódios ou sequer projectos adocicados.

Em tangência virtual, vendiam-se ao tempo que passa, por dois reis de sobrevivência. Em litologias de anjos barrocos e olhares de peixes mortos.

Dela ainda a esperança de ser Fénix. Além do que fazia chorar os peixes. Vertebrados. 


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Publicado in A Arte pela Escrita, Três, pg. 164,  Mosaico das Palavras, Editora, Rio Tinto, 2010

domingo, 10 de fevereiro de 2013

ensaio sobre a verdade e a mentira, Victória.

JRLuis, artista circense, Circus AKademie Berlin


… por vezes há que reconsiderar sobre os temas, chorar lágrimas corajosas, revisitar  espaços e lugares onde a saudade é, tal como as nossas cabeças, não mais que uma ilha alagada de imagens;  por vezes, o nosso corpo, último reduto da nossa individualidade, exposto fronteiriço ao lago, devolve-nos parecenças em que dificilmente reconhecemos paridade. e a dúvida instala-se e se transmuta numa caixa de pandora, que aberta, dificilmente se controla; e é da cobra o lugar dos céus, e é da ave a terra e a miragem. e chove dos olhos lágrimas de pedra, e os lábios são sementeiras roxas fendidas de palavras vindimadas, encimados por códigos de barras que nenhum photoshop apaga -  estão e permanecem lá,  ainda que não manifestos, abutres atentos sobre a matéria seca.

submissas aos desígnios das modas, damos mais um passo, Marias Antonietas a caminho do cadafalso,

“que morra, que morra”, gritam uns quantos enquanto que, por dentro, na convicção do dever cumprido, se afirma victoriosa a carne envelhecida, seca cavaca que nenhum lume ateia. e isso mata.
esconjuradas e renegadas, duvidamos da verdade, como duvidamos da mentira. somos aquela ou a outra? somos a que julgámos ser, ou a que que se travestiu por artes mágicas e, por iguais magias, apagou as rugas, retocou as curvas, vestiu a saia justa onde a mulher exacta não cabia mais? na nossa incapacidade própria de lidar com o tempo, perdemos a noção do real, extremamos os extremos, desviamos o desvio-padrão e, no limite dos limites, não ousamos ser, de quem somos, contemporâneos, viver agora e o já. projectamos o futuro num passado imaginado e, por fim, extra-temporais, renegamos o presente – são assim os dias nebulados de que me falava Victória ontem ao fim da tarde, quando me sentei com ela a beber os últimos raios de sol das Lezírias numa chávena de chocolate quente.
noutros dias, continuava,  a memória dos momentos alvos, cada vez mais escassos quando o fim se aproxima,  devolve-nos um universo de música audível de olhos cerrados, um mimetismo equilibrado como uma bola de cristal nas mãos de um artista - harmónica, sensorial, translúcida. desliza em afago de brisa a pele de que somos pele; toca-nos tão ao de leve num emaranhado de percepções e tempos sociais como aquele que a trouxe de novo aqui, menina.  tão ao de leve,  que,  abençoados, tomamos então consciência de que, e  na verdade, é  o tempo escamoteado por nós  que tece e cirze e alinhava uma teia finíssima de atalhos e nos permite revisitar quem fomos.  é o tempo que, nos que gerámos em ventre de águas mansas, carne, linfa e sangue da nossa própria carne, nos leva à eternidade. e é, na profundidade de uns,  que somos outros, singulares e plurais,  presente, passado e futuro, como agora, entende? talvez sim, respondi a medo. entende? - repetiu. sim, Victória, sim... 

se este diálogo existiu? da verdade e da mentira nada sabemos, sequer das razões que lhes comummente assistem. permanecemos inconclusivos ainda que revisitemos amiúde Foucault, em particular  quando, e a propósito da dúvida conceptual sobre a verdade ou a mentira,  saibamos que terá dito de forma categórica: “… a verdade? a verdade é uma mentira cozida pelo tempo".
a acompanhar os meus pensamentos, como se os lesse,  julguei ouvir de Victória - “e  sobre a mentira nada sabemos,  de igual modo, menina. e essa é a nossa salvação maior. suprema, direi, até …"
levantei-me. a tarde tombava na campina. uma luz serenava-lhe o rosto: era tempo de voltar a casa…


quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Physalis, Cremilde, Sidónia e outras mulheres.


a Physalis(1) crescia no vaso de barro. anunciava, em floração de invernos,  o fruto próximo.  de árvore em árvore,  de galho em galho, um bando de pássaros negros abanava as manhãs num chilreio de ignomínias formando uma barreira contra o avanço da tempestade. num trapézio de ensaiar vaidades, subiam de tom, alteavam-se. dispersavam-se, porém,  e depois a chuva retomava o seu curso, espessando a claridade, que, no óbvio, diminuía francamente a visibilidade - o rio era então uma linha leitosa, esbatida contra as margens, contra o cinza matriz do céu.  Sidónia encostou-se à ombreira da casa, embrulhada num robe azul-marinho desbotado como as memórias, e que, àquela hora da manhã, já alta, por sinal, quase meio-dia,  ainda lhe aconchegava o corpo escanzelado de magro. era assim, nos últimos tempos.  sem ocupação conhecida,  e sem projecto de vida, sem quem a olhasse além dos olhos migalhados dos pássaros negros, os tais que povoavam os campos metafóricos da vida,  cada dia se aprontava mais tarde, e, por mais que se tentasse convencer de necessárias ablações, era-lhe inequívoca a urgência reclusa dos espelhos dos olhos. das pupilas, das meninas dos olhos, razão de sua existência. ou não! Sidónia tinha alma de pássaro e estava morta – teria sido talvez por isso que quando os rios se juntaram em forma de cruz, no mouchão fronteiriço, as mulheres sangraram pela primeira vez, e as lezírias foram searas maduras. dizia, para quem a sabia ouvir, da democracia das águas e de como lavavam uns e outros sem atentarem às origens.  lavavam tudo, menos a má língua. 

numa manhã de atrevimento, atreveu-se. olhou de frente o céu, ele mesmo a atrever-se contra o espessamento da chuva, cada vez mais próxima. era a hora de partir.  deitou mão a alguns pertences, colocou a capucha de burel a agasalhar-se nos ombros ossudos, subiu-a ao peito,  determinada,  e contra o queixo, o mais que pode. resguardada assim do frio da invernia rigorosa, saiu para a rua, sem destino concreto. os passos, firmes, igualmente determinados, chão do seu próprio chão,  encaminharam-na para o palácio da sua meninice. mediu diferenças, se as havia, afinou a esquadria. nada mudara, apenas envelhecera. o bulevar permanecia intacto, o lago dos peixes vermelhos ladeado de árvores,  as laranjeiras em fila indiana formavam uma espécie de praça forte contra a rudeza dos dias;  e que dizer do o ar dali, macio, ungento, a vedar-lhe golpes na própria casca?  aspirou forte. isso, Sidónia, tu podes, tu consegues. um passo em frente, dois atrás, um de novo, agora…
talvez devesse dar-se ouvidos – reconsiderar o que a movia além dos passos, do verdete dos caminhos. talvez sim, quem sabe? 
igual a sempre, a profusão de folhas e de cores formava com o barro e com a bosta dos animais passantes uma pasta onde se enterrava, prazeirosa;  um emplastre calmante a que se dava,  maçarica, esperançosa de que, numa outra vida, alciónica quiçá, fosse luz além da barra. um dia, quando seguia a bordo para a ilha, o mestre Carlos falara-lhe dos maçariços, "almas-de-mestre", guias,  as estrelas mais brilhantes das Plêiades, segundo o próprio.
e  não era isso que a minava? pólipos alciónicos? como cogumelos a proliferar nas vísceras... tudo se conjugava afinal... conversa de merda...  quanto tempo lhe restava? querer alienar o tempo, dissera-lhe, era pois, uma impossibilidade - ele deixa sempre marcas. por isso o remédio,  se é que existe, está em não haver remédio;  enfrentar a besta pelos cornos de forma  austera e ríspida.  as bestas não reconhecem outra linguagem, Sidónia.  o doce já não resolve, sabes? por essas e por outras é que este país está como está, cravejado de diamantes em pano roto. fazes parte da "não pandilha" e resistes, ou, pelo contrário,  optas por chorar por dentro como as grutas, criatura? 
ainda te resta a escolha, o livre arbítrio…
um passo em frente, dois atrás; recorrente  o ditado americano "hell hath no fury like a woman scorned" fustigava-lhe o rosto. tantas as formas de traição e tamanha a sua passividade... ultrajante o frio que a varejava de vitupérios e injúrias. seria bruxa, pois. que fosse!
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saiu sem rumo. havia dias,  vários, e  que a Cremilde  seguramente  pareciam   meses,  que perdera a vontade de se mimar, de se cuidar, de ser quem fora, ou cuidara  ser,  até então.  só a espaços, cada vez mais abetesgados e raros,  é que, e  por efeito dos tachos e as panelas, dos cheiros  das compotas fumegantes ou das sopas, todos eles  fortes e revigorantes, sempre diferentes e feitos a olho, sem medida,  sem regra pelas suas próprias mãos intuitivas, as imagens do futuro se lhe revelavam,  vaporíferas. surgiam-lhe ora  recortadas e  figurativas, ora exactas em geometrias bruxuleantes, contra as paredes.  em ambos os casos despertavam-na para um sentimento a que chamava, plagiando sabe-se lá quem,  de "saudades de futuro". ainda  assim,  conservam-na  numa espécie de banho-maria.  
nesses momentos inalava  profundamente a vida nas coisas breves consciente de que   havia, algures, instalada num lugar distante, uma espécie de metanóia que a penitenciava em clausura e a mantinha prisioneira sem pulseira electrónica, sem apelo, sem agravo, na face oculta das coisas e se transformava na expressão corriqueira do seu sentir.  e havia, constatava vidente, alhures,  um tanque,  piscina olímpica,  de lágrimas não choradas, que, como um vento ronceiro, lhe impunha a mudança no pensamento...
 talvez devesse pôr-se em causa - reconsiderar o que a movia, além da cor. do imediato do seu mundo de folhas amareladas, dos silêncios e dos uivos dos cães, que, em ablação, a entristeciam, talvez devesse. mas não...
foi mais ou menos por essa altura que se avistaram em espelho. Cremilde baixou os olhos. Sidónia, pelo contrário, não tinha nada a perder, olhou-a bem de frente. nunca se soube de que falaram, mas o que quer que fosse durou horas, prolongou-se além do inimaginável. o gelo da noite, como farpas, chispavas-lhe os olhos. na calada, Sidónia, envolta em burel,  uivou e era loba, embrenhada na floresta,
Cremilde retornou os passos. na cesta de vime carregava  as laranjas de todos os pomares que nunca haviam sido enxertados, bravos como ela mesma.  sem pressas, abriu um a um cada fruto, retirou-lhes os caroços, colocou-os a salvo, prestativos os sabia em pectina, cola natural e  consistente. e o quanto necessitava dela para realinhar os cacos - a vida era-me de vidro e partiu-se, disse. quanto às laranjas laminou-as em juliana, cobriu-as com água, macerou-as de forma demorada. no fim trancou as portadas...
uma luz súbita rasgava o ventre da terra, o leito era-lhe desconforto e ansiedade. ergueu-se,
                    soprou o dia, a noite e a madrugada. por fim, na manhã já alta, banhou-se, aprimorou as vestes, enrolou o cabelo na nuca, colocou a rede e as travessas. teria perto de cem anos. abeirou-se da cozinha;  rigorosa nos seus próprios preceitos e princípios, inflexível consigo mesma, retomou a feitura dos dias de laranja amarga...


Nota:(1) Physalis

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...