"Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo.
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa."
Sophia de Mello Breyner Andresen in Coral
talvez as minhas glícinias estejam à minha espera, disse-lhe de rompante. repara, aqui só os cães ladram de igual maneira. presumo que assim seja. corrigiu-se de repente. e as galinhas... quem sabe?
debicam o chão em busca de minhocas e não lhes vejo forma distinta das que escavam o quintal da minha casa...
levantou os olhos. sentiu que o romance minutos antes sustido e contido a concha dos seus dedos, cúmplice perfeito e abrigo do tempo, caía desamparado, ali, na terra das ameixas verdes. não tentou sequer o gesto de o reerguer. na noite antes a fogueira a espavorir o espírito do Inverno. a fogueira onde ardiam todas as imundices da aldeia, não daquela, mas de uma aldeia global onde tudo, por mais distante, lhe contundia a pele e a alma. ali, entre cada chispa, na pira dos fenos, havia a demonocracia do quinto dos infernos.
[Feliz aquela que efabulou o romance/Depois de o ter vivido/A que lavrou a terra e construiu a casa...]
[Feliz aquela que efabulou o romance/Depois de o ter vivido/A que lavrou a terra e construiu a casa...]
de novo Sophia. esfregou os olhos com as luvas de pelica, afastou o fumo. aspirou, antecipando, o odor malva das glícinias. compreendeu o porquê das vestes do tempo de páscoa. a universalidade dos gestos. de narinas abertas. como as bestas nos pastos, em destemperança de febres, desinteressou-se da cor do vestido, da lingerie que, como uma bofetada de verdade e desencanto, lhe mostrava a crueza e a realidade das coisas. uma nudez de mágoa apossou-se do brilho dos seus lábios que, e não obstante, maquinalmente, se esforçavam por reproduzir vocábulos estranhos em saudações e votos pascais - sorria, iluminando a noite. com as mãos abertas rasgou o portal do inverno,
foi o sorriso que me abriu a porta do teu mundo, brando e másculo. pressenti-te o salto para a frente, a timidez e o espaço-porto inabitado. adivinhaste-me deusa de aurora, Eostre, chamaste-me. e eu ouvi. seremos deuses, meu amado? e foi aqui, na terra das ameixas verdes que nos fecundámos pela primeira vez. e a esta terra voltaremos na nitidez dos olhos e dos pastos. construiremos a casa, e nela a parede dos sonhos; as labaredas hão-de pintar os dedos quando bebermos da resina da floresta, tu colocarás de novo sementes no parapeito da janela, não sem antes lavrares a terra, estará frio e serei pássaro vagaroso,
a debicar tímida da tua mão...
a debicar tímida da tua mão...
Eostre aproximou-se perigosamente do fogo. dali, ao centro da pira, distavam curtos passos. lançou-se no desafio de viver em consonância com a ocasião e com a sua própria possibilidade. à distância, media-se com as ervas cobertas de neve, com a liberdade das crianças pulantes e ávidas, ao ser redor. antecipou a manhã líquida, o branco dos telhados e dos beirais. tudo o mais, detalhes preciosos, eram-lhe vagar de lembranças.
cerrou as pálpebras. um fogo interino tomou-lhe conta das entranhas como da primeira vez em simulacro de nevoeiro, a aspiração de liberdade - o tempo em que gostava de passear no jardim do seu final de tarde.
sabes, andamos à cabra-cega em torno da fogueira, como crianças, e, o ovo da Páscoa, o tesouro que procuramos, está tão dentro de nós. são vãs as riquezas outras, e meu o terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo, pejado de malfeitores - corja de pavões a pavonear as asas, criaturas úbiquas, diabólicas e amargas, emplumadas em rendas dissimuladas,
disse-lhe, por fim, que a riqueza que ambicionava encontrara-a sem procurar.
depois, aguardou o regresso das horas, devolveu-se à realidade. quando a lua em quarto minguante incidiu sobre os molhes de feno enrolados como novelos sentiu-lhe os dedos, a sua espada de carne vulcânica a romper a aurora. e ele chegou, rei de um reino de que era deusa e princesa
"uma das minhas maiores riquezas és tu, [Eostre], meu amor. És o meu tesouro secreto ..."
sabes, andamos à cabra-cega em torno da fogueira, como crianças, e, o ovo da Páscoa, o tesouro que procuramos, está tão dentro de nós. são vãs as riquezas outras, e meu o terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo, pejado de malfeitores - corja de pavões a pavonear as asas, criaturas úbiquas, diabólicas e amargas, emplumadas em rendas dissimuladas,
disse-lhe, por fim, que a riqueza que ambicionava encontrara-a sem procurar.
depois, aguardou o regresso das horas, devolveu-se à realidade. quando a lua em quarto minguante incidiu sobre os molhes de feno enrolados como novelos sentiu-lhe os dedos, a sua espada de carne vulcânica a romper a aurora. e ele chegou, rei de um reino de que era deusa e princesa
"uma das minhas maiores riquezas és tu, [Eostre], meu amor. És o meu tesouro secreto ..."
respondeu-lhe num gemido de lava: tenho um rio de ternura a crescer-me dos dedos, meu amor, e não sei como dizê-lo, se não sendo[te] deusa etérea d' alvorada... a origem das espécies é controversa, tudo converge para a tua chegada. no ciclo das colheitas a derivação é regressiva, da semente ao pó, e eu, bem sabes, quisera morrer de amor - agora - antes que seja noite, que seja dia ... e nada temo,
talvez as minhas glícinias estejam à minha espera.
Eostre deu dois passos. seguiram-se mais dois, mais curtos, mas determinados. um grito raspou a aldeia como um assobio. labareda e fogo em tons de malva.
talvez as minhas glícinias estejam à minha espera.
Eostre deu dois passos. seguiram-se mais dois, mais curtos, mas determinados. um grito raspou a aldeia como um assobio. labareda e fogo em tons de malva.
Inédito