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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

segunda-feira, 21 de julho de 2014

nem sempre brancas, sem sempre pretas


Se não tens memórias, disse-te um dia, não tens amanhã. sorriste e acenaste-me com a cabeça, compulsivamente. por momentos temi que, de algum modo, te saltasse dos ombros. e assim seria se, algures em ti, as raízes te não fossem de aperto e a alma cabutina. seria talvez a tua e a minha sorte.
foi quando, num ápice, soltei, prefaciando o desconhecido: vais morrer, disso não duvides. neste momento importa-te, e importa-me, saber onde queres desperdiçar as tuas energias. e, para que não restem dúvidas, foste-me incenso, luminária em minha vida. há,  nos teus e nos meus passos, um passado imperfeito que não é pretérito a tolher os dias que hão-de vir, e, nos meus olhos, uma lonjura de mágoa do tipo,
 nem sempre brancas, nem sempre pretas.
durante anos encontrei dentro de mim forças, estratégias, diria, para entender o voo rasante de tuas asas sobre searas de vento. durante anos esperei o teu regresso, de corpo inteiro, filho pródigo a meu ventre. durante anos encontrei migalhas a assinalar a tua passagem, como minas, prontas a explodir sob pés incautos. durante anos, a desmiúde, desminei terrenos antes que braços e pernas se esvaíssem corporizados num mar de sangue. à custa de meu próprio sangue. nada bastou.
e, daí que, sem mais que me finque aqui repito-me se te digo que a cada um cabe
a dor
que cabe.

retrato de mulher




não creias que a tarde finda apenas porque a noite  cai, extrema,  nos teus braços. seria redutor pensar dessa forma, bem sabes - em cada momento, o seu contrário, em latitudes inversas. neste verão, dizem, chove. chove tempestades,  algures,  onde não faz necessidade alguma;  mas é assim. para os crentes, por obra da ordenação divina e  para mim, porque me convêm à narrativa -  a chuva confere sempre  um quadro melancólico à coisa, um cenário lúgubre, um certo misticismo de conteúdos e de formas, matiza de desconhecido,  afastando,  o chilreio dos pássaros. em certos dias, são eles que, há falta de tudo,  me enchem as tardes, e, sabes, nem sequer tento individualizar-lhes, verdadeiramente,  os sons, os trinados,  as melodias fobocrónicas. e nem preciso. conheço-os de ginjeira, nos voos picados, em estertores cadenciados. adivinho-lhes momentos a anteceder a própria morte, a agonia, e fico daqui a pensar se gostam mais de morrer a prestações, ou se não lhes seria mais vantajoso um golpe de vento certeiro, um golpe d'asa contra um poste. às vezes resulta, sabes? ou morrem mortos ou despertam, aprendem com os gatos o fôlego de viver sete vidas e vivem felizes. aconteceu assim comigo, posso até contar-te, mais logo. mas agora não.  digo-te de como os oiço,  e quando os oiço, e, o tanto me basta. silencio-me a observá-los, tão fina quanto um fio de água que se esgrima contra o chão e acaba com as noites de sombras na calçada.  

nesses dias, confirmo-te,   a praia é das gaivotas e que eu sou aquilo que não me lembrei de imaginar. quando era pequena e me perguntavam o que eu queria ser quando fosse grande. eu não sabia  - faltavam-me os referenciais, os modelos, exemplos grande de ordeiros ou vilãs,  faltavam-me os carismáticos que mais tarde encheram de "ah's", a minha vida,  e, reconheço,  a vontade de ser qualquer coisa. qualquer coisa que fizesse sentido para eles. a não ser...
a não ser que 
pudesse ser cereja no tempo de cerejas. erva das primeiras chuvas,  melancia aguada com cheiro a verão e a lezíria. pão trigo acabado de cozer. ou bafo de forno em dias de inverno...disparates, portanto. 
daí a não ser nada do que não me lembrei de imaginar foi um passo de recém-nascido, um esticar lento de nervos e articulações, uma força merdosa,  amedrontada ao peso da gravidade, e, talvez por isso, me tenha enchido de "talvezes" tantas vezes ao longo da vida. 
mas que importa isso agora? nada, mesmo nada, é apenas o palanque donde começa a narrativa. 
chamo-me Selma, o meu nome tem importância e não têm. têm porque assim sempre podes dizer "a Selma" não têm carácter, não tem peso na engrenagem, porque a Selma é ninguém. 
sou a Selma, por conseguinte. cinco letrinhas apenas, um fraca figura, porte de gazela assustada, mosca morta, rata de biblioteca.  irrelevante no rumo da redacção ou de ti próprio. invisível. 
o  certo, contudo,  é que  tu me viste. ouviste a minha voz; ouviste, uma a uma, todas as palavras que dizia, e, porque quero, necessito veementemente acreditar sabendo da tua tão aguçada,  tão apregoada até, inteligência, intuíste, no mais intimo dos meus silêncios,  todas as outras que, não dizendo, os meus olhos te revelaram - conhecias, portanto, o enredo de toda a minha história - escuso-me de ta repetir agora, aqui, e no detalhe. poupo-te, em rigor,  a uma narrativa demorada e fastidiosa. ou ambas as coisas, no pior dos casos. 
poupo-te, aliás como sempre te poupei a tudo quanto, no meu entender, te pudesse alterar, incomodar, nem que,  para isso, tivesse de dar o meu corpo às balas aceitando morrer a prestações por bastas vezes (porque será que esta ideia de "morrer às prestações" me anda a entrar no texto? e logo eu, que sempre defendi o pronto pagamento, o principio de que haveria de viver sempre dentro das minhas possibilidade, reduzida à minha insignificância, sem gastos ou esforços desnecessários em maquilhagem de modos de vida...);  aceitei, portanto, para te  proteger ir morrendo a prestações. onde se morre primeiro, saber-me-ás dizer?, pouco importa, é de ti que falo e não de mim. de ti, que  como todos os outros, nesta redacção faminta de primeiras páginas, de novelas cor-de-rosa e parangonas concorrenciais (logo apelativas),  de ti, com quem me fui cruzando ao longo dos becos e dos caminhos, por vezes e vezes repetidas, nos elevadores e nos corredores, vulgo "arquivos sem argolas" de imagens desfocadas e casos mortos,  já mofados de sevícias e destratos,  de casos que,  por sem préstimo, foram abandonados,
de ti, que, vejo agora,  purgas postumamente na parede das minhas próprias carótidas e que não passavas de um ser sem consciência social,  de ti, que desejaste na forma burlesca e animal o toque da minha pele a escorrer veludo sobre a tua. não??
ah, se desejaste, confessa! (talvez não a minha, porque não me discernes de mulher alguma,  não me distingues,  na forma individual, sendo que, (como li recentemente), sou apenas parte de uma metamorfose colectiva, intercambiável, descartável, de  quem, em ultima instância, nem sequer a pele desejas...
de ti, que  como tantos mais, pintaste telas em que me fizeste musa de teus sonhos em colunas do teu jornal, que escreveste, gastando rios de tinta,  sobre a beleza feminina,  indistintamente genuína ou adquirida por plásticas e cosméticas sucessivas, ou, até da outra, daquela que na falta de coragem para o bisturi se socorre do rasca photoshop  (pouco conta, bem sei, o que te atrai é o resultado final), e, como ponto e contra-ponto, mediste, uma a uma, as que tinhas sobre o olhar, pela bitola alta em que me colocaste (deixa-me acreditar que foi assim,  deixa, por favor - sentir-me-ei menos medíocre, menos imbecil, menos ... não me confirmes, por favor, o que há muito sei -  para ti, como para tantos mais, em casos análogos, não passei, apesar de tudo, da executiva, de mais uma,  "coleccionável"). ainda que voasse – e nisso fazia toda a diferença. voava, v-o-a-v-a, e tu, porra, cobiçaste as minhas asas… "os anjos não perdoam que lhes cobicem as asas."(1)

recordas-te?, comecemos pelo início, estavas sentado no topo do teu pedestal, no gabinete do fundo. revias a lista interminável do teu dia. um time shequedule  complicadíssimo, na verdade, vejo daqui, agora, com este olhar adquirido nesse dia. repentinamente, a sirene estilhaçou-te os ouvidos. atropelaste os corredores, engoliste o eco de um grito que, vá lá saber-se porque, te pareceu tão familiar, focaste a lente - és repórter de imagem, claro está -, enquanto, numa fracção de segundo, todo o filme te passa. te passa ao lado. literalmente,
 queres que te relate como aconteceu?
foi simples, tão subliminarmente simples;  a linha que separa  a vida e a morte é de apenas uns segundos, 
atravessei a rua, subi a escada, subi em busca de um espaço onde o ar não se ramificasse, fosse raiz e caule.  procurava,  um lugar limpo, arejado, libertário. subi ao terraço, intentei subir além do beiral, e,  Ícaro, icei-me à parte mais alta da cobertura. foi quando senti o vento e a vontade de dobrar a aragem de mim própria,
e ela chegou; liminarmente chegou. como um pássaro fugindo da própria sombra. vinte e uma grama, dizem, pesa a alma. agora estou mais leve. ela (chamam-lhe desidrato de personalidade) ficou colada numa estrela algures;  que assim seja, Ámen. é-me confortável tal possibilidade. 
de resto, subiu em forma de pássaro azul; 

 ... agora  sou  matéria simplesmente e os meus olhos livres de se despirem dos desejos ocultos. a mim, finalmente,  cabe-me em direito a descida ao mar onde as ondas são igualmente livres na interpretação dos nadas... 

por isso morri. morri, porra, morri!!! porque vivia num lugar em que apenas, e por vezes, me era permitido escutar a voz do vento. se assobiava...
"Os olhos são os interpretes do coração, 
mas só os interessados entendem essa linguagem" - Blaise Pascal



(1) Graça Pires in A incidência da luz, 2011

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...