não creias que a tarde finda apenas porque a
noite cai, extrema, nos teus braços. seria redutor pensar dessa
forma, bem sabes - em cada momento, o seu contrário, em latitudes inversas.
neste verão, dizem, chove. chove tempestades, algures, onde não faz
necessidade alguma; mas é assim. para os crentes, por obra da ordenação
divina e para mim, porque me convêm à narrativa - a chuva confere
sempre um quadro melancólico à coisa, um cenário lúgubre, um certo
misticismo de conteúdos e de formas, matiza de desconhecido,
afastando, o chilreio dos pássaros. em certos dias, são eles que, há
falta de tudo, me enchem as tardes, e, sabes, nem sequer tento
individualizar-lhes, verdadeiramente, os sons, os trinados, as
melodias fobocrónicas. e nem preciso. conheço-os de ginjeira, nos voos picados,
em estertores cadenciados. adivinho-lhes momentos a anteceder a própria morte,
a agonia, e fico daqui a pensar se gostam mais de morrer a prestações, ou se
não lhes seria mais vantajoso um golpe de vento certeiro, um golpe d'asa contra
um poste. às vezes resulta, sabes? ou morrem mortos ou despertam, aprendem com
os gatos o fôlego de viver sete vidas e vivem felizes. aconteceu assim comigo,
posso até contar-te, mais logo. mas agora não. digo-te de como os
oiço, e quando os oiço, e, o tanto me basta. silencio-me a observá-los,
tão fina quanto um fio de água que se esgrima contra o chão e acaba com as
noites de sombras na calçada.
nesses dias, confirmo-te, a praia é das
gaivotas e que eu sou aquilo que não me lembrei de imaginar. quando era pequena
e me perguntavam o que eu queria ser quando fosse grande. eu não sabia -
faltavam-me os referenciais, os modelos, exemplos grande de ordeiros ou
vilãs, faltavam-me os carismáticos que mais tarde encheram de "ah's",
a minha vida, e, reconheço, a vontade de ser qualquer coisa.
qualquer coisa que fizesse sentido para eles. a não ser...
a não ser que
pudesse ser cereja no tempo de cerejas. erva das
primeiras chuvas, melancia aguada com cheiro a verão e a lezíria. pão
trigo acabado de cozer. ou bafo de forno em dias de inverno...disparates,
portanto.
daí a não ser nada do que não me lembrei de
imaginar foi um passo de recém-nascido, um esticar lento de nervos e
articulações, uma força merdosa, amedrontada ao peso da gravidade, e,
talvez por isso, me tenha enchido de "talvezes" tantas vezes ao longo
da vida.
mas que importa isso agora? nada, mesmo nada, é
apenas o palanque donde começa a narrativa.
chamo-me Selma, o meu nome tem importância e não
têm. têm porque assim sempre podes dizer "a Selma" não têm carácter,
não tem peso na engrenagem, porque a Selma é ninguém.
sou a Selma, por conseguinte. cinco letrinhas
apenas, um fraca figura, porte de gazela assustada, mosca morta, rata de
biblioteca. irrelevante no rumo da redacção ou de ti próprio.
invisível.
o certo, contudo, é que tu
me viste. ouviste a minha voz; ouviste, uma a uma, todas as palavras que dizia,
e, porque quero, necessito veementemente acreditar sabendo da tua tão
aguçada, tão apregoada até, inteligência, intuíste, no mais intimo
dos meus silêncios, todas as outras que, não dizendo, os meus olhos te
revelaram - conhecias, portanto, o enredo de toda a minha história - escuso-me
de ta repetir agora, aqui, e no detalhe. poupo-te, em rigor, a uma
narrativa demorada e fastidiosa. ou ambas as coisas, no pior dos casos.
poupo-te, aliás como sempre te poupei a tudo
quanto, no meu entender, te pudesse alterar, incomodar, nem que, para
isso, tivesse de dar o meu corpo às balas aceitando morrer a prestações por
bastas vezes (porque será que esta ideia de "morrer às prestações" me
anda a entrar no texto? e logo eu, que sempre defendi o pronto pagamento, o
principio de que haveria de viver sempre dentro das minhas possibilidade,
reduzida à minha insignificância, sem gastos ou esforços desnecessários em
maquilhagem de modos de vida...); aceitei, portanto, para te
proteger ir morrendo a prestações. onde se morre primeiro, saber-me-ás dizer?,
pouco importa, é de ti que falo e não de mim. de ti, que como todos os
outros, nesta redacção faminta de primeiras páginas, de novelas cor-de-rosa e parangonas
concorrenciais (logo apelativas), de ti, com quem me fui cruzando ao longo
dos becos e dos caminhos, por vezes e vezes repetidas, nos elevadores e nos
corredores, vulgo "arquivos sem argolas" de imagens desfocadas e
casos mortos, já mofados de sevícias e destratos, de casos que,
por sem préstimo, foram abandonados,
de ti, que, vejo agora,
purgas postumamente na parede das minhas próprias carótidas e
que não passavas de um ser sem consciência social, de ti, que desejaste na
forma burlesca e animal o toque da minha pele a escorrer veludo sobre a tua.
não??
ah, se desejaste, confessa! (talvez não a minha,
porque não me discernes de mulher alguma, não me distingues, na
forma individual, sendo que, (como li recentemente), sou apenas parte de uma
metamorfose colectiva, intercambiável, descartável, de quem, em ultima
instância, nem sequer a pele desejas...
de ti, que como tantos mais, pintaste telas
em que me fizeste musa de teus sonhos em colunas do teu jornal, que escreveste,
gastando rios de tinta, sobre a beleza feminina, indistintamente
genuína ou adquirida por plásticas e cosméticas sucessivas, ou, até da outra, daquela
que na falta de coragem para o bisturi se socorre do rasca photoshop
(pouco conta, bem sei, o que te atrai é o resultado final), e, como ponto e
contra-ponto, mediste, uma a uma, as que tinhas sobre o olhar, pela bitola alta
em que me colocaste (deixa-me acreditar que foi assim, deixa, por favor -
sentir-me-ei menos medíocre, menos imbecil, menos ... não me confirmes, por
favor, o que há muito sei - para ti, como para tantos mais, em casos
análogos, não passei, apesar de tudo, da executiva, de mais uma, "coleccionável").
ainda que voasse – e nisso fazia toda a diferença. voava, v-o-a-v-a, e
tu, porra, cobiçaste as minhas asas… "os anjos não perdoam que lhes
cobicem as asas."(1)
recordas-te?, comecemos pelo início, estavas
sentado no topo do teu pedestal, no gabinete do fundo. revias a lista
interminável do teu dia. um time shequedule complicadíssimo, na
verdade, vejo daqui, agora, com este olhar adquirido nesse dia. repentinamente,
a sirene estilhaçou-te os ouvidos. atropelaste os corredores, engoliste o eco
de um grito que, vá lá saber-se porque, te pareceu tão familiar, focaste a
lente - és repórter de imagem, claro está -, enquanto, numa fracção de segundo,
todo o filme te passa. te passa ao lado. literalmente,
queres que te relate como aconteceu?
foi simples, tão subliminarmente
simples; a linha que separa a vida e a morte é de
apenas uns segundos,
atravessei a rua, subi a escada, subi em busca de
um espaço onde o ar não se ramificasse, fosse raiz e caule.
procurava, um lugar limpo, arejado, libertário. subi ao terraço, intentei
subir além do beiral, e, Ícaro, icei-me à parte mais alta da cobertura.
foi quando senti o vento e a vontade de dobrar a aragem de mim própria,
e ela chegou; liminarmente chegou. como um pássaro
fugindo da própria sombra. vinte e uma grama, dizem, pesa a alma. agora estou mais leve. ela (chamam-lhe desidrato de
personalidade) ficou colada numa estrela algures; que assim
seja, Ámen. é-me confortável tal possibilidade.
de resto, subiu em forma
de pássaro azul;
... agora sou matéria simplesmente e os
meus olhos livres de se despirem dos desejos ocultos. a mim, finalmente,
cabe-me em direito a descida ao mar onde as ondas são igualmente livres
na interpretação dos nadas...
por isso morri. morri, porra, morri!!! porque vivia num lugar em que apenas, e por
vezes, me era permitido escutar a voz do vento. se assobiava...