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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

sábado, 24 de março de 2012

um diálogo improvável


“... Não necessariamente criar os carneiros, pentear a lã, tingi-la e marcá-la – mas prazerosamente apossar-se de tudo o que está pronto e, com esse tempo poupado, ir muito longe”.  
Katherine Mansfield 


senta-te comigo, Lígia,  dizes, Sempre tão longe a abóbada celeste, o trigo amadurecido de fardos atados e os poentes enterreirados e prontos, como meadas lã  retinta em  fluxo-refluxo -  tempo de inteligência terrena em que, algo inconsciente, me perco, e me elevo,   num  novelo dobado ao novo  tempo, tomado a ti. é primavera, dizem os alfarrábios, os borda-água, sei lá … e, deste tempo, e sob a sua lâmina implacável descida sobre a nuca,  o que  nos chega (e abastarda), dementes e precários,  e nos são rios rápidos da memória,  linfa e lava, em torno do eixo contuso do nosso próprio imaginário.  e, nele, hoje,  como no antes, esta certeza fendida de que,  em certos dias clareados me embriago de ti, do  teu tejo, dos teus sonhos,  das planícies-planuras do teu corpo de searas. sonho-as
de verde lavra incendiadas –  expulsão de um paraíso; sulco uma barca de bruma em águas irradiantes 
de vida e verbo,  São rios apenas, Ou ilhas,  tu sabes, Não, não são,
são olhos e miragem, como os teus, em meus olhos de argila e barro, e deles  a liça desabrida de espelhos, dos sonhos e batalhas -  fusão de núcleos ancestrais donde despertaram  os vocábulos. como um jogo, uma pedra, um antídoto do que nos assombra (e nos ensombra)  em espanto:  nós de sete-léguas, a humanidade,  e o mar deste país,  que, marinheiro, se afoga na corrente das próprias lágrimas.
 a salgar as lágrimas. a sugar as lágrimas em boca própria, 
não te inquietes, princesa, é, porventura, princípio de nova vida
está sol e tu estás perto, quase te toco, quase te cheiro o calor  ardência da  tua pele macia. da tua derme, bainha do meu sabre. estancas as vagas do mar morto (que eu invento) desenhas  trilhos em que aconteço a ladear-te na praia, escondes-me no teu sono, a cidade limpa e larga, desperta no teu colo  e adormece  apudorada  quando me embalas teu num berço feito de graças,  Senta-te comigo,  avariei todos os mecanismos de todos os relógios do mundo. parei o tempo para que não se escoe como areia fina entre os teus dedos longos,
ouviremos
as quatro estações de Vivaldi, cingir-te-ei num abraço intemporal no instante exacto em que  os teus lábios
vagarosos
forem pássaros  cor de lima –  a coisa nomeada – , a língua, a tua língua,   tiver o travo  a sal e menta e  a saliva se adentrar na nossa garganta  e me tomares na simplicidade terrestre de desfolhar primaveras na espuma de minha barba 
e as claridades subirem alto
ao ver-nos de regresso ao inexequível espaço do começo...
senta-se aqui, minha amada, que a primavera chegou  chuvosa no assario desta hora  -   tão velhas as palavras, como ângulos justapostos dos pátios mouriscos d'alfama  encobertos de moliço e sargaço
  sem luz, 
quando não estás,  
e um mar de  ruídos  me amordaça os tímpanos
e me fere os lábios de búzios aguilhoados, Sabes,
no meu corpo de dor, em certos dias, os dedos das fadas roxas gemem na ombreira das portas.  e fazes-me falta... senta-te,  pois, comigo, Lígia, que nos importa o frio, a chuva que se demora e se dilata a verdejar as searas,  se, no sopé das colinas de papoilas despertadas  se adivinham nossas as vontades e
e a força vitalícia 
das palavras.
 ... recordas-te, Lígia, de como começou a nossa história?   


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quinta-feira, 8 de março de 2012

Uma certa lentidão tão necessária


“ Vi as mulheres azuis do equinócio
voarem como pássaros cegos;
 e os seus corpos
sem asas afogarem-se, devagar, nos lagos vulcânicos.”  
 
Nuno Júdice 
...
levanta a cabeça, Violeta, ordenou-lhe. levantou.  um olhar cristalino encheu o ar, espalhou essências de baunilha e caramelo a céu aberto. 
 pese embora o facto de o julgamento do mestre lhe ser  sempre algo desconfortável, o certo era que, havia de concordar:  também ela se via assim  -  um ser de luz, de cor, de desenho irradiante, de antenas rectilíneas a culminarem na bola do mundo. enormes... 
frágil, contudo.
-  sem novidade te repito o que já te referi por bastas vezes:  vejo-te como uma espécie de borboleta. tal  as vejo,  olho-te,  e, por maior que te queiras aparentar, aos meus olhos, pressinto-te, como  a elas,  igual fascínio pelo fogo, do que decorre que, na ânsia de veres mais perto queimes (tantas e tantas vezes), dramaticamente, as asas - explicava o mestre à pequena feiticeira que o escutava atenta e cabisbaixa,
o  mestre, sempre eloquente, continuava nas suas analogias impiedosas. se esses  não fossem preditores bastantes para a identificar com aqueles seres do reino de Deus, outros haveria de engendrar, tão ou mais verosímeis que os primeiros,  capazes de persuadir a sua discípula da importância de saberes e competências, mas também,  sobre e a  respeito  de como o controle dos mesmos eram, na face do reino, tão ou mais importantes, que os primeiros. 
prolixo, haveria de se socorrer doutras teorias irredutíveis face às quais, Violeta, na evidência, se "emendaria". a começar por fazer a sua pequena feiticeira entender, de uma vez por todas, a vital importância de reconstruir o passado para perspectivar o futuro. olhar-se em espelho, não naquele de aumentar defeitos da bruxa má, mas no mais fiel e fidedigno,  que conseguisse encontrar  - nos lagos ao redor dos olhos do amor,  dissera-lhe um dia. entendes, Violeta? entendeu!...
prosseguia o  mestre,
... a biologia classificou-as, como julgo saberás, na ordem das lepidópteras.  dir-me-ás apressada, como é teu hábito, que tenho eu com isso? realmente, no imediato nada, mas tudo se liga, pequena Violeta, e, quando uma mariposa abana as asas aqui, algo acontece no reino da Dinamarca. assim sendo (não te distraias, vá lá,  concentra-te), ...
a propósito… já te falei de resiliência? sim? ora bem… e de Newton? claro que sim. sabes porque  conseguia o domínio das ideias? por ser  inteligente?  também sim,  claro, mas, acima de tudo o mais,  porque se concentrava, se focalizava,  até à solução de um enigma, desfocando tudo ao redor. Violeta, tenta acompanhar o meu raciocínio…
a biologia classificou-as, repito, na ordem das lepidópteras, e se, no mesmo grupo (ordem) das primeiras, estão as traças,  e se  te imponho decisão rápida,  diz-me: com qual das duas te aparentas mais? em ti deixo o livre arbítrio da escolha. fá-la  no uso e em consciência da existência  de dois instrumentos fulcrais:  lógica e intuição. demonstra-te e descobre-te...
bebia o absurdo do diálogo. intuiu de imediato que, fosse qual fosse a resposta que viesse a dar, o efeito final seria, invariavelmente,  o mesmo:  uma espécie de dedo apontado a si, faca de dois gumes. não seria então a resposta o mais importante,  mas sim a dialéctica, o argumento, a força de defender as convicções de escolha. esboçar o maior número de combinações possíveis,  fazer sua a ciência da aula anterior, o tal palavrão que tanto lhe custara a memorizar:  heurística, a arte especial de aprender a aprender para tirar conclusões.  recordou-se, ainda,  de que, quando apontamos um dedo na direcção de alguém, são quatro os que retornam a nós. assim pensando, concluiu  que seria por ali que daria volta ao dilema da escolha. 
mediu,  uma a uma,  as dimensões de ambas:  borboleta e traça. o dia e a noite a que estavam, respectivamente, e por natureza, adaptadas. a metamorfose. visualizou-se. focalizou-se. foi quando se deteve: reconstruir o passado permite evoluir ... ela era uma borboleta, obviamente. a sua metamorfose não se dera dentro de um casulo mole mas sim segregada em crisália rígida que, a pulso, rompera. agora olhava-se em espelho e via-se, corpo fino e alongado,   a voar livre pelos prados,  a morrer no fogo de viver, vivendo,
foi quando, sabiamente, recordou ao mestre que o mais difícil da vida não era certamente crescer num corpo pronto a crescer, crescendo. o difícil,  o mais difícil, mestre, disse-lhe, é aceitar o processo de transformação, a metamorfose. lenta e dolorosa,
difícil, na realidade,  as sucessivas passagens de ovo a centopeia, desta a crisália, e,  por fim, irrompendo o céu ao redor, o azul ambicionado,
conhecer a música do vento, a dança das folhas, 
até à última nota, 
e,   insecto alado,  voar  sabendo que, uma vez liberta das asas das esperas, apenas e tão-só,  (nos) sobra o tempo efémero de escassos dias...

assim dizendo Violeta abriu as asas, subtis asas,  no feitiço de um fogo que era delaera ela própria. voou, rasgando a tela. o fogo era um lugar ao lado…na casa do osso,  na medula de um instante lento e vagaroso 
a que se dada, íntima, serena...

o mestre havia desaparecido permitindo-se a si próprio o voo partilhado na temporalidade de um tempo dividido de transposição das vagas sobre a plenitude de si.  repousou-lhe a  aflorar-lhe os lábios numa certa lentidão tão necessária 
        e falou-lhe 
              pela sua boca. 

Imagem da net.
Texto de 2009, Inédito. 

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...