“... Não necessariamente criar os carneiros, pentear a lã, tingi-la e marcá-la – mas prazerosamente apossar-se de tudo o que está pronto e, com esse tempo poupado, ir muito longe”.
Katherine Mansfield
senta-te comigo, Lígia, dizes, Sempre tão longe a abóbada celeste, o trigo amadurecido de fardos atados e os poentes enterreirados e prontos, como meadas lã retinta em fluxo-refluxo - tempo de inteligência terrena em que, algo inconsciente, me perco, e me elevo, num novelo dobado ao novo tempo, tomado a ti. é primavera, dizem os alfarrábios, os borda-água, sei lá … e, deste tempo, e sob a sua lâmina implacável descida sobre a nuca, o que nos chega (e abastarda), dementes e precários, e nos são rios rápidos da memória, linfa e lava, em torno do eixo contuso do nosso próprio imaginário. e, nele, hoje, como no antes, esta certeza fendida de que, em certos dias clareados me embriago de ti, do teu tejo, dos teus sonhos, das planícies-planuras do teu corpo de searas. sonho-as
de verde lavra incendiadas – expulsão de um paraíso; sulco uma barca de bruma em águas irradiantes
de vida e verbo, São rios apenas, Ou ilhas, tu sabes, Não, não são,
são olhos e miragem, como os teus, em meus olhos de argila e barro, e deles a liça desabrida de espelhos, dos sonhos e batalhas - fusão de núcleos ancestrais donde despertaram os vocábulos. como um jogo, uma pedra, um antídoto do que nos assombra (e nos ensombra) em espanto: nós de sete-léguas, a humanidade, e o mar deste país, que, marinheiro, se afoga na corrente das próprias lágrimas.
a salgar as lágrimas. a sugar as lágrimas em boca própria,
não te inquietes, princesa, é, porventura, princípio de nova vida
está sol e tu estás perto, quase te toco, quase te cheiro o calor ardência da tua pele macia. da tua derme, bainha do meu sabre. estancas as vagas do mar morto (que eu invento) desenhas trilhos em que aconteço a ladear-te na praia, escondes-me no teu sono, a cidade limpa e larga, desperta no teu colo e adormece apudorada quando me embalas teu num berço feito de graças, Senta-te comigo, avariei todos os mecanismos de todos os relógios do mundo. parei o tempo para que não se escoe como areia fina entre os teus dedos longos,
ouviremos
as quatro estações de Vivaldi, cingir-te-ei num abraço intemporal no instante exacto em que os teus lábios
vagarosos
forem pássaros cor de lima – a coisa nomeada – , a língua, a tua língua, tiver o travo a sal e menta e a saliva se adentrar na nossa garganta e me tomares na simplicidade terrestre de desfolhar primaveras na espuma de minha barba
e as claridades subirem alto
ao ver-nos de regresso ao inexequível espaço do começo...
senta-se aqui, minha amada, que a primavera chegou chuvosa no assario desta hora - tão velhas as palavras, como ângulos justapostos dos pátios mouriscos d'alfama encobertos de moliço e sargaço
sem luz,
quando não estás,
e um mar de ruídos me amordaça os tímpanos
e me fere os lábios de búzios aguilhoados, Sabes,
no meu corpo de dor, em certos dias, os dedos das fadas roxas gemem na ombreira das portas. e fazes-me falta... senta-te, pois, comigo, Lígia, que nos importa o frio, a chuva que se demora e se dilata a verdejar as searas, se, no sopé das colinas de papoilas despertadas se adivinham nossas as vontades e
e a força vitalícia
das palavras.
... recordas-te, Lígia, de como começou a nossa história?
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