
“ Vi as mulheres azuis do equinócio
voarem como pássaros cegos;
voarem como pássaros cegos;
e os seus corpos
sem asas afogarem-se, devagar, nos lagos vulcânicos.”
sem asas afogarem-se, devagar, nos lagos vulcânicos.”
Nuno Júdice
...
levanta a cabeça, Violeta, ordenou-lhe. levantou. um olhar cristalino encheu o ar, espalhou essências de baunilha e caramelo a céu aberto.
pese embora o facto de o julgamento do mestre lhe ser sempre algo desconfortável, o certo era que, havia de concordar: também ela se via assim - um ser de luz, de cor, de desenho irradiante, de antenas rectilíneas a culminarem na bola do mundo. enormes...
frágil, contudo.
- sem novidade te repito o que já te referi por bastas vezes: vejo-te como uma espécie de borboleta. tal as vejo, olho-te, e, por maior que te queiras aparentar, aos meus olhos, pressinto-te, como a elas, igual fascínio pelo fogo, do que decorre que, na ânsia de veres mais perto queimes (tantas e tantas vezes), dramaticamente, as asas - explicava o mestre à pequena feiticeira que o escutava atenta e cabisbaixa,
o mestre, sempre eloquente, continuava nas suas analogias impiedosas. se esses não fossem preditores bastantes para a identificar com aqueles seres do reino de Deus, outros haveria de engendrar, tão ou mais verosímeis que os primeiros, capazes de persuadir a sua discípula da importância de saberes e competências, mas também, sobre e a respeito de como o controle dos mesmos eram, na face do reino, tão ou mais importantes, que os primeiros.
prolixo, haveria de se socorrer doutras teorias irredutíveis face às quais, Violeta, na evidência, se "emendaria". a começar por fazer a sua pequena feiticeira entender, de uma vez por todas, a vital importância de reconstruir o passado para perspectivar o futuro. olhar-se em espelho, não naquele de aumentar defeitos da bruxa má, mas no mais fiel e fidedigno, que conseguisse encontrar - nos lagos ao redor dos olhos do amor, dissera-lhe um dia. entendes, Violeta? entendeu!...
prosseguia o mestre,
... a biologia classificou-as, como julgo saberás, na ordem das lepidópteras. dir-me-ás apressada, como é teu hábito, que tenho eu com isso? realmente, no imediato nada, mas tudo se liga, pequena Violeta, e, quando uma mariposa abana as asas aqui, algo acontece no reino da Dinamarca. assim sendo (não te distraias, vá lá, concentra-te), ...
a propósito… já te falei de resiliência? sim? ora bem… e de Newton? claro que sim. sabes porque conseguia o domínio das ideias? por ser inteligente? também sim, claro, mas, acima de tudo o mais, porque se concentrava, se focalizava, até à solução de um enigma, desfocando tudo ao redor. Violeta, tenta acompanhar o meu raciocínio…
a biologia classificou-as, repito, na ordem das lepidópteras, e se, no mesmo grupo (ordem) das primeiras, estão as traças, e se te imponho decisão rápida, diz-me: com qual das duas te aparentas mais? em ti deixo o livre arbítrio da escolha. fá-la no uso e em consciência da existência de dois instrumentos fulcrais: lógica e intuição. demonstra-te e descobre-te...
bebia o absurdo do diálogo. intuiu de imediato que, fosse qual fosse a resposta que viesse a dar, o efeito final seria, invariavelmente, o mesmo: uma espécie de dedo apontado a si, faca de dois gumes. não seria então a resposta o mais importante, mas sim a dialéctica, o argumento, a força de defender as convicções de escolha. esboçar o maior número de combinações possíveis, fazer sua a ciência da aula anterior, o tal palavrão que tanto lhe custara a memorizar: heurística, a arte especial de aprender a aprender para tirar conclusões. recordou-se, ainda, de que, quando apontamos um dedo na direcção de alguém, são quatro os que retornam a nós. assim pensando, concluiu que seria por ali que daria volta ao dilema da escolha.
mediu, uma a uma, as dimensões de ambas: borboleta e traça. o dia e a noite a que estavam, respectivamente, e por natureza, adaptadas. a metamorfose. visualizou-se. focalizou-se. foi quando se deteve: reconstruir o passado permite evoluir ... ela era uma borboleta, obviamente. a sua metamorfose não se dera dentro de um casulo mole mas sim segregada em crisália rígida que, a pulso, rompera. agora olhava-se em espelho e via-se, corpo fino e alongado, a voar livre pelos prados, a morrer no fogo de viver, vivendo,
foi quando, sabiamente, recordou ao mestre que o mais difícil da vida não era certamente crescer num corpo pronto a crescer, crescendo. o difícil, o mais difícil, mestre, disse-lhe, é aceitar o processo de transformação, a metamorfose. lenta e dolorosa,
difícil, na realidade, as sucessivas passagens de ovo a centopeia, desta a crisália, e, por fim, irrompendo o céu ao redor, o azul ambicionado,
conhecer a música do vento, a dança das folhas,
até à última nota,
e, insecto alado, voar sabendo que, uma vez liberta das asas das esperas, apenas e tão-só, (nos) sobra o tempo efémero de escassos dias...
assim dizendo Violeta abriu as asas, subtis asas, no feitiço de um fogo que era dela, era ela própria. voou, rasgando a tela. o fogo era um lugar ao lado…na casa do osso, na medula de um instante lento e vagaroso
a que se dada, íntima, serena...
o mestre havia desaparecido permitindo-se a si próprio o voo partilhado na temporalidade de um tempo dividido de transposição das vagas sobre a plenitude de si. repousou-lhe a aflorar-lhe os lábios numa certa lentidão tão necessária
e falou-lhe
pela sua boca.
Imagem da net.
Texto de 2009, Inédito.
Texto de 2009, Inédito.