Sobre mim ...

A minha foto
Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

sábado, 30 de agosto de 2008

Entre uma treva e outra

Entre uma treva e outra
Entre perdidos e achados
Entre a guerra basilar de pernas e de braços, meu amor, havemos de encontrar lugar a conjugar
a forma (im)perfeita de todos os verbos nus, cedidos em súplica ao corpo de um poema. Anáforas e metáforas, que usamos em lúdica esperança, de luz, à paisagem vagabunda.

Atreve-te,
revolve a terra seca onde se esconde o sol nascente, espreita a lua e avança no areal da praia antes que o vento desgaste pegadas difusas de páreas gaivotas.

Sabes, existe um vento disseminado, difundido - inanidade que me afaga a cara enxuta, que se acoita no pavilhão do meu ouvido -, que não teme em bordar nervuras no sal do meu olhar. E uma vela latina e uma saia de baile escondida ainda num baú do convés. E um velho violoncelo com cordas feitas com a baba de Neptuno em corpo de sereia…
No convés profundo existe de igual modo, um secular violoncelista, e, na proa dum vaso de guerra, voga um corpo de baile em contradanças d’encantar …


Entre uma treva e outra,
existe uma aurora sempre a crescer, um poema por escrever em que, uma pérola minhota, se acirra a deslizar de um colar, em pele, solta. Uma urbe serrana, uma sarça, uma fola … Ou faz de conta…


E existe,
em forma de uma carapaça d’ostra, uma montanha magnética à qual, barcos sem rumo se atraem, e se confundem, quando, uma a uma, todas as traves imoderadas, todas as tábuas sagradas, se soltam no desassossego de carácter, em fulgor de metal fundido…


Entre uma treva e outra,
sobressalta-se o actor em palco, no títere do gesto, no afago refreado em tempo indefinido.

[Balsâmica a solidão, meu amigo, quando os limos se colam aos pés descalços e se não sabe dos ritmos duma vindoura canção. Se, na jactância, piratas-barcos, em excessos extravagantes, se mordem e são, frutos de todos os perigos na fúria de todos os gestos (inex)pressivos .].

Entre perdidos e achados
opressivos bramidos contrastam com a serenidade os dias mansos. Estrépitos e vozes imoderadas se agigantam das furnas subterrâneas… ecoam na preia-mar. São loucas…

Não, meu amigo, não nos corrompe vaidades fátuas, nem louvores fora de tempo. Jubilamos com a voz do vento, com o risco assumido de nossa estrada. E, antegozamos a plenitude dos dias bons, em que somos tão só, modulações de fibra e de voz, de comum sangue,
correnteza nervosa da mesma pigmentação, embalados ao Jazz, à Bossa Nova.

Entre uma treva e outra
entre uma trova e um fado ou uma loa de luar, plantaremos manhãs de espuma na noite deste lugar.
E haveremos de sangrar a realidade!

Ou faz de conta…

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

... um olhar ausente. (parte II)

***
Neblinas provindas do mar, avançavam por sobre o seu leito até ai inalterado. O sol despenhava-se na superfície das dunas mais longínquas. Lentamente, um a um, os veraneantes recolhiam da tarja marítima os pertences, num zelo de coisa própria.
Espraiavam um último olhar por sobre o espaço que os acolhera nas últimas horas. Como que para reter em memória, uma a uma, todas as horas daquele dia, daquela tarde - as brincadeiras das crianças, os afectos e os namoros de verão, de ocasião, ou, porque não, aqueles que, tendo atravessado décadas, pareciam resistir ao desgaste, à erosão do tempo. Fiquei com o olhar parado num casal de sexagenários. Ele, atencioso, oferecia-lhe o braço para que se levantasse da cadeira. Ela, de estatura baixa e volumosa, sorria, alisava os cabelos ralos … Fechava a cadeira e entregava-lha. Depois, de mão dada, avançavam, em passos certos, de quem palmilhou a par a vida e, tal como os demais, tão diferentes e, porventura tão iguais, rumo às passadeiras de madeira, na sua maioria já danificadas …

Ouviam-se os motores dos carros e os piares incessantes das gaivotas, num rumor desigual. Era o fim de tarde a cair no ciclo da vida …Os cheiros intensificavam-se, num iodo baixo.

Irene deu sinal de que, esgotada, se iria erguer da cadeira. Chamei a empregada, a que estava afecta à esplanada. Fez menção de puxar pela carteira. Travei-lhe o movimento, rapidamente:
“não, de todo não … eu pago, Irene. Afinal estás na minha terra de adopção, logo tu é que és minha convidada e não o inverso …”
Sorriu. Não insistiu. Como se, na verdade lhe fosse indiferente pagar ou não dois gelados…

Paguei. Segurei-lhe o braço e desafiei-a:

“queres esticar as pernas? Andar um pouco … ou muito?...”
“não sei … estou esgotada …”
“anda dai … vai fazer-te bem. Gosto de andar por aqui, sabes? A areia é fina, como verás e, daqui ao Baleal são apenas cerca de 5Km… pelo nevoeiro…”
“… e pelo Sol? Não?...”

Rimos ambas. Irene, não obstante as vicissitudes da vida, da sua vida, mantinha o humor britânico que se esboçava já, tímido, na nossa juventude. Assaz mais sagaz, mais “crocitante” – de “corvo negro”. Mais “estridente” …

Caminhámos, lado a lado em silêncio durante algum tempo. O nevoeiro não me permitia vislumbrar sequer a Ilha.

Sempre gostara de por ali vaguear. Descalça, claro. Sempre descalça. De Inverno ou Verão. Ir da “minha praia” à Ilha, percorrê-la de lés-a-lés, circundando-a, beber um sumo num dos seus cafés, e, sem pressas regressar pelo areal, era, tantas e tantas vezes o meu amanhecer em tempo de férias ou, como naquele dia, o anoitecer. Em cada um destes tempos encontrava belezas raras. Inaugurar o areal, por exemplo, ser a primeira a pisá-lo e senti-lo virgem, dava-me energias redobradas … ser a última a sair da praia, “expulsa pelas gaivotas” e pelo declínio do sol poente, ou, pela chegada da lua, trazia-me uma fonte suprema de bem estar… de paz… uma comunhão orgânica que me apaziguavam. Dei por mim às voltas com as minhas próprias emoções, enquanto alternava a vaga e a areia molhada e já enrijecida …diferentes texturas que me massajavam a pele e que buscava a cada passo …

Avançávamos. Ao mesmo tempo que me aproximava tinha sempre aquela sensação antiga de que, por ali, algures num qualquer tempo, havia deixado memórias da minha própria vida … A Ilha ganhava forma, envolta no azul do mar … Todavia não naquele dia. Não na neblina. Estava submersa, escondida …

Mas que importava se conhecia cada espaço daquele trajecto, ao milímetro? Não havia surpresas. Ano após ano, nos últimos vinte e dois anos, voltava todos os verões, senão durante três meses, pelo menos durante um mês acrescido do máximo de fins-de-semana possível. Irene confiava pois que não a haveria de conduzir para o mar alto…

- “confio em ti, Mel… sei que tratarás esta minha história com a dignidade possível…Sabes, durante todos estes anos, não foi fácil a renúncia. Não me foi fácil aceitar que havia cometido um sem número de erros. Contínuos e continuados. A começar pelo facto de deixar que os outros e não eu, decidissem os timmings certos para esta ou aquela mudança em minha vida. Mas o que é facto é que, quando se vive numa pequena aldeia, quando somos vistos como um modelo de virtudes, como a filha de “X” e a neta de “Y”, temos como que a obrigação testamentária de prosseguirmos determinados padrões comportamentais. Ancestrais. Os das nossas mães, das nossas avós, das tias e das primas. Não, não digas que não… que podemos romper com tudo isto impunemente. Não é verdade. Desde que nascemos que nos é determinado um caminho. No meu caso, como sabes, o ter ido para a faculdade já foi um avanço não esperado no percurso. Sim, quando casei parei …. Ou melhor, parei antes de me casar. Afinal, para trabalhar como administrativa de uma imobiliária, tinha até “habilitações a mais…” . E acrescia a necessidade de trazer rendimentos ao lar. Pagar o que havia a pagar…. Tomar as rédeas do lar e dos filhos.

Minha amiga, voltando à minha história quero que saibas que, ao longo destas décadas, muitas foram as oportunidades para que, se estivesse em minha mente, trair o meu marido. Não duvidarás pela certa!...”

Anui com a cabeça. Claro que não duvidava. Acreditava. Irene era, à altura em que nos conhecemos na Faculdade (que ela abandonou no 1º ano do Curso de História), uma rapariga belíssima. De estatura média, meio roliça (campesina como alguns colegas da linha faziam questão de sublinhar), dotada de uma abundante cabeleira castanha com laivos cor de fogo, de uns expressivos olhos azuis turquesa, sardenta mas não em demasiado…

Vestia de forma clássica, algo exagerado para a sua idade, o que a fazia, irremediavelmente, parecer mais séria, mais velha, mais taciturna. A postura discreta. Respondia sempre com um sorriso afável o que, por si só, seria matéria suficiente para que se lhe augurasse melhor futuro. Chegava em regra, atrasada às aulas. Havia iniciado actividade profissional, e, segundo nos contava, o chefe não lhe concedia tréguas. Nunca a deixava usar as horas destinadas a trabalhador-estudante … Acabaria por ser esta uma das razões pela qual não dera continuidade ao seu sonho de formatura…

“não, Irene, claro que não …”
“pois, não duvides. Na verdade, pese embora nunca ter falado da minha vida íntima a ninguém, o que é facto é que, em várias ocasiões me vi literalmente assediada. Como se a minha insatisfação fosse transparente e, por isso, uns e outros achassem por bem que me haveriam de dar consolo…”
“mas?...”
“mas nada, minha amiga. Uma mulher só vai por onde quer ir. Nunca fez parte do meu imaginário a traição. Jamais me senti confortável perante a possibilidade de, hoje beijar um e amanhã dormir com outro… confesso-te que, em certos momentos, desejei ter dentro de mim esse modus operandus. Nota, Mel, não critico de forma alguma quem opte por esse caminho. Todavia, minha amiga, cada um de nós é, como é. Pelo que te acabei de contar, percebes que não me tenho em grande conta, que tudo isto me magoou em demasia, que, a anulação de mim e a “substituição” de um amor real pelo acto de me amar a mim mesma, não é, de todo, saudável. Sempre tive disto absoluta consciência. Desde o primeiro dia. Mas, minha amiga, foi a forma que encontrei para não morrer antes do tempo…”
“e se te tivesses apaixonado por alguém, Irene?...”
“apaixonar?... não sei, na verdade não sei. Sabes, a questão é que, por educação, por formação, por… sei lá, sempre coloquei tantos muros em meu redor que seria uma probabilidade remota. Direi, uma improbabilidade. Todos os que, de uma forma ou doutra se insinuaram, foram, um a um, repudiados. E fi-lo, acredita, de forma a que saíram magoados…”
“magoados?...”
“sim. Fi-los sempre sentir menores. Imbecis. Estúpidos. Porque, minha amiga, perante ataques evidentes, repetidos, te "fazeres" completamente despercebida, transforma qualquer Dom Juan num pateta…”
“fizeste isso, Irene?”...

Não reconhecia agora a minha amiga. O olhar toldava-se num misto de ódio e glória. Senti-lhe um tremor no corpo. Como se a neblina marítima se estivesse a misturar na sua corrente sanguínea. Como que todo o frio do mundo, num instante único se arvorasse em seu redor. O meu coração pululava em ânsias de saber que mais aquele fim de tarde me traria. Começava a desconfiar que não conhecia Irene. A sua história era um presente anódino e um passado magoado… e o futuro Irene???

Segurei-lhe firme o antebraço. Nem de forma remota desejava que se quedasse na história. Que, de alguma forma retrocedesse e não se revelasse… pudera eu ser ar e, juro, naquele instante iria insuflar-lhe os pulmões e as cordas vocais para que, de forma clara desse prossecução ao assunto.

“… fiz e faria tudo de novo. Fi-lo por duas razões objectivas. A primeira tem a ver com o facto de que, só desta forma me livraria de assédios … quem é que gosta de se ver “ridicularizado”, amiga?. Passei a ser vista como a "tipa do mau feitio, a "gaja que tem a mania que é boa"...A segunda, e não menos importante, porque, duma vez por todas, os homens tem que aprender que as mulheres não são só objectos sexuais. As mulheres têm vontade própria. Não é correcto que se achem no direito de entrar na vida de uma ou outra mulher, só porque a adivinham carente e, não serem depois responsáveis e responsabilizados pelos danos que, levianamente, na sua estrutura emocional possam vir a fazer… não nos podemos esquecer que somos sempre, tal como nos disse Antony Saint-Exupery… , “responsáveis pela nossa rosa…" ... ainda gostas de ler Saint-Exupery?

Respondi que sim. Que as suas sábias palavras eram como biblia em minha vida. Sempre presentes. Continuou.

"acresce ainda uma terceira razão, a mais importante, minha boa amiga: nunca, sublinho, nunca, vi no olhar daqueles que de mim se aproximaram, uma verdadeira lealdade, uma verdadeira vontade em dar amor. Não falo sequer de fidelidade. Falo de lealdade. Alguém que, de um modo “leal” se interessa por nós, num todo e não exclusivamente tendo em vista a vertente sexual. Não vi!. Não, de todo não. Em regra, o que vislumbrei sempre foram formas difusas de, através de conquistas ocasionais, insuflarem os seus egos (carentes, isso sim) e, acredita, jurei a mim mesma que não faria parte, objectivamente, das suas listas… e, por tudo isto, preferi a solidão. Aquela e na forma de que te dei conta …”

A ilha estava agora à nossa frente. Surgira repentinamente, como o vértice de um iceberg. Atravessava a neblina, furando impiedosa, aquela teia cinza, nas suas casas pequenas e brancas… Um sol estranho dançava na cara pálida de Irene, nas lágrimas de Irene que, agora e só agora, deslizavam sem contenção…

Tinha tantas questões a colocar-lhe. Todavia, o seu semblante fechara-se num muro de mutismo … intransponível.

Irene era agora, à semelhança da Ilha, um iceberg de que eu apenas tivera oportunidade de conhecer o vértice … e percebi que não retomaria o assunto, nem naquele dia nem mais. Como uma concha, cerrou-se.

À nossa direita, das dunas, surgiram dois surfistas abraçados às suas pranchas … avançaram em corrida sincronizada à vaga....

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

telas imperfeitas

“…Não espero mais nada. Na verdade, em boa verdade, há muito que deixei de esperar, de me angustiar na espera do que, premonitoriamente sabia, desde o primeiro instante, que me não era devido, concedido e que, porque frágil, um dia haveria de vir, em que não teria mais.

A quietude impera-me nos sentidos, como que se estivessem invernados. Hibernados. Como se, aquietados na mansidão do tempo largo, aguardassem uma nova vida, uma nova era. Semente congelada em calotes pálidas ou, quem sabe, no umbigo da terra, por sobre a aridez desértica.

Não espero nada. E nada esperando, não desespero.

Deitada na areia da praia, fundo a curvatura das costas numa toalha antiga em tons de azul. Xadrez, azul e verde. É lato o horizonte, a linha de água, definida livre no encontro com o céu estanhado, que vejo, num esgar esboçado, num prolongamento natural do oiro, do areal, este, este em que me sereno e em que me deixo envolver num abraço maior. De Sol…

O olhar solta-se das linhas do livro que sempre me acompanha e, imigrado em longínquas terras, vagueia. É tamanha a beleza deste lugar, sabias? Dou comigo a pensar que ao poeta basta que se detenha na beleza da natureza, na grandiosidade incomparável dos seus quadros – pinturas de inultrapassável beleza - e que, dela e nela, fielmente se reproduza. Terá matéria mais que suficiente para a sua arte, nesta e noutras vidas. Cogito que basta que se deixe imbuir no quimérico e no orgânico de cada instante. Que ceda a si, num lento e profundo relaxamento muscular, num relevamento de alma… reconheço tudo isto e mais além e, contudo, deixo que uma nostalgia se me entranhe em mente. Estranhamente, agrada-me. A nostalgia agrada-me, sabias? Como a neblina deste lugar.

Sabes, quando te conheci, cresci. O facto de te saber, de te sentir, desamparado, fez com que, sem que disso me tivesse apercebido de imediato, me tivesse transformado para te acolher. Para te proteger. Talvez seja assim. A relação que se estabelece entre aqueles que estão predestinados a se encontrarem é, uma relação de atracção. Pólos opostos, como um baloiço, que se, de um lado sobe, do outro desce. Um baloiço de dois lugares, de frente a frente. Em poucos dias, a cada nova aproximação, sentia mais a tua estranha fragilidade e a minha força crescente. Só te poderia dar aquilo que tivesse em mim. E se o que necessitavas era que te amasse, que fosse uma mulher segura e determinada, seria. Seria...

Dou-me conta agora que me tornaste muito melhor pessoa. E, como te disse acima, sempre soube que estavas de passagem em minha vida, que eras apenas uma projecção do meu inconsciente … e, por isso, nunca esperei em demasia. E que não, e de não quero, cobrar-te passagem pelo meu porto…

Há vários dias que não tenho uma ideia luminosa, um arroubo poético, uma inflamação sensorial daquelas que me cataduptavam em turbilhões para o papel, para as telas, e que me impõem pinturas viscerais. Tais as que sentia quando ainda te conjecturava perto de mim. Há vários dias que não me sei, não te sabendo. Doem-me ausências e presenças ausentes. De uns e outros. Como as destes seres anacrónicos e desfasados do tempo que por aqui, nesta cidade, vagueiam. Talvez mais estas que as primeiras.

Doem-me as palavras que não digo e as que dizendo, oiço e não reconheço minhas.

Vem-me à mente um título de um livro de Inês Pedrosa: “Fazes-me falta”. É, na realidade, estas duas palavras resumem toda a turbulência que me vai em alma, que me assola o corpo em varejos de varas verdes sobre azeitona madura. Impiedosa, a vara vai e vem e bate e rasga e talha, do fruto ao ramo, à folha ao caule … jazem os bagos por sobre panos depostos em castanhos de chão. Assim a tua ausência. Fere, recorta e aguilhoa tudo o que resta de uma emoção…”

__

Estava a meu lado, na esplanada e escrevia freneticamente. Nunca a havia visto. Não era daquele lugar. Não era dos habitues da praia. Envergava um vestido de algodão branco, solto, longo. Duas rachas profundas descobriam-lhe a pele dourada e um par de pernas já com algumas marcas de cansaço. Tentei avaliar-lhe a idade. Rondaria os trinta e muitos anos, próximo dos quarenta. Tinha o cabelo solto em caracóis pouco definidos a atingir a cintura. Não estava pintada. Não era vulgar, mas também não era ostensiva. Nas mãos anéis multicores, alguns colares de contas e vidros e, nos pés, umas sandálias de couro.

Pediu um café. Bebeu-o dum só gole, decidida. Abriu o saco de pano. Deduzi que procuraria a carteira. Mas não. Buscou o telemóvel. Abriu-o. Olhou-o longamente … acariciou-o e, num destempero inimaginável, face à calma que até ai havia demonstrado, levantou-se da cadeira, correu ao mar… e, numa fúria visível, desfez-se daquele que acabava de acariciar. O pequeno objecto, como uma pedra, fundeou nas pequenas ondas, desaparecendo rapidamente. O seu semblante recortava-se no infinito como uma tela imperfeita ... tragicamente imperfeita.

Depois, com um sorriso maquiavélico, regressou à cadeira. Sentou-se. Retomou o caderno em que escrevia. Arrancou a folha, amarfanhou-a demoradamente entre as mãos. Era agora uma bola que passava de uma para a outra mão.

Levantou-se, dirigiu-se ao balcão. Pagou. Olhou em redor, os meus e os seus olhos cruzaram-se, quentes. Reconhecidos.

Discretamente, sem que os restantes entendessem o seu gesto, abriu a mão e depositou a bola na minha mesa… Sorriu-me, serena. Afastou-se em passos ritmados, polvilhados duma sensualidade segura. Fiquei ali, durante muitos minutos a vê-la afastar, como uma visão, como uma fantasia.

O Sol tombava já no bojo do mar. Na esplanada, um a um, todos os ocupantes das mesas vizinhas se iam levantando. A música continuava a tocar. Bob Marley ...

Restava eu, petrificada, dividida entre o som negro e a imagem nívea e difusa que se evaporava na orla marítima ...

Sem saber que fazer, abri lentamente o papel amarfanhado em jeito de granada que me havia sido confiado. Uma letra miudinha, sem sequer uma rasura revelou-se à minha frente.

“…Não espero mais nada.”…

sábado, 23 de agosto de 2008

... um olhar ausente. (parte I)

"despe-te de verdades
das grandes primeiro que das pequenas
das tuas antes de quaisquer outras
abre uma cova e enterra-as
a teu lado“.

Discurso ao príncipe de Epaminondas, mancebo de grande futuro, Mário Cesariny.


Assim fizera. Despira-se de todas as verdades. Das grandes e, depois, num ritual mímico, de gueixa em acto, das mais pequenas. Camada sobre camada, como as sete saias das nazarenas, assim Irene se foi desnudando, mostrando, revelando. Naquilo que lhe era mais secreto, mais seu, mais do seu íntimo desassossego.

Naquela manhã acordou com o rosto amarfanhado pelas rendas enlaçadas nos cantos da almofada. O pano branco, algodão comprado a metro nos anos setenta, à vendedeira que, numa periodicidade certa, montada lateral num jumento estafado de velho, percorria o povoado. O pano branco que, com a ajuda de sua mãe, marcara a fio tirado, cortara e alinhavara, para o enxoval. Depois as rendas, feitas em linha fina, nº sessenta, de cor crua. Depois os bordados, nas longas tardes em que se isolava numa estranha meditação e, os seus dedos, de unhas alongadas se esgrimiam num vai-e-vem frenético, perfurando tecido e pele, em muitos momentos. O bordado surgia, como que por magia. Crivos e abertos, ilhoses e pontos cadeia. Nesses tempos Irene não sabia de si. Perdia-se e voava num voo incontido e fragmentado, entre os sonhos e a realidade. Nesses tempos, só o relógio da torre a chamavam à realidade. E, a realidade era, invariavelmente, a solidão. Deslocava o corpo, em direcção à cozinha, preparava a refeição, os afazeres múltiplos daquela casa que, demasiado cedo lhe caíra em ombros. Tudo, ou quase tudo, era de sua responsabilidade. Das plantas aos animais, das limpezas diárias às semanais. A par com os livros, com os estudos, com as políticas de emancipação a que, por convicção aderira à revelia dos demais da casa. Irene era uma mescla, um recalque e um decalque de muitos palcos. Tantos que se esquecia ou nem sabia quem, em rigor, era ela mesma.

Viu-se casada. Sem dar conta como, via-se num jardim público, rodeado duma trupe estridente de convivas, a esboçar sorrisos à esquerda e à direita, para um fotógrafo de qualidade duvidosa. Posses repetidas, iguais a tantas outras nubentes de ocasião. Naquela noite, cumpriu sem emoção o ritual de entrega àquele com quem casou. Adormeceu, por fim, esgotada em alma e sem certezas de ter dado o passo certo. Acordou na manhã seguinte no meio de lençóis bordados, numa casa recém construída em que, se sentiu refém. Refém da mensalidade que teria que pagar, do emprego que entretanto havia empreendido e que, jamais estivera nos seus horizontes. Dum marido que havia aceite sem paixão, duma sociedade que a empurrara literalmente para a condição de mulher casada. E, acima de tudo de si mesma. Refém.

Maquinalmente, dirigiu-se ao banheiro, de dimensões generosas, e, maquinalmente deu por si a escovar os cabelos cor de fogo. Olhou o espelho que recobria parcialmente a parede por cima do lavatório cor de azeitona, última moda em loiças sanitárias. De lá, uma figura de mulher inacabada, reflectiu-se embaciada aos vapores do banho que, em golfadas compassadas, enchia a banheira ao lado.

Maquinalmente, deixou que a camisa índigo lhe caísse aos pés. Instintivamente acariciou o corpo, tocou-se nos seios e no sexo, imaginou-se amada, desejou-se longa e loucamente amada. Tal como sempre imaginara que seria numa noite de lua-de-mel. O corpo respondeu ao toque, inicialmente em espasmos tímidos e, depois, de forma selvagem e frenética. O espelho reflectia agora uma mulher adulta, vibrante, pulsante, determinada em se conhecer. De se saber. Continuou a tocar-se, a explorar cada prega do seu corpo, de si em si. Um misto de prazer e de raiva incendiavam-lhe o olhar, a pele. O suor apoderava-se de todo o corpo, escorria-lhe em fio pelas axilas até aos cotovelos. As lágrimas sulcavam-lhe a cara, grossas e cadentes. Sentia-se nojenta e, contudo gostava. Dúplice. Dual e antagónica.
Insaciável, penetrou a água, deixou-se decair por entre um mar de espuma e de fragrâncias de jasmim e menta. Recostou a cabeça na orla da banheira e retornou a si. Ao seu corpo, à necessidade incontrolável de se sentir e se dar prazer. A água possuía-a amplamente. Ao seu toque, o sexo explodia numa fome cada vez maior. Num cio animal. Ficou ali, até que a água se revelou fria, naquela manhã de Inverno. Lentamente, saiu da banheira, envolveu-se no toalhão espesso tombado por sobre o tampo da sanita, esfregou o corpo no vagar de quem tem a vida inteira pela frente, secou-se o melhor que conseguiu. Desembaraçou os cabelos, vestiu o roupão e, dolente, dirigiu-se ao quarto. Miguel dormia, convicto de que havia cumprido a sua função marital. Afinal, havia tomado a sua mulher assim que se viram a sós no quarto. Rápido é certo, mas, porra, estava cansado. Os vapores do álcool e os convivas dançantes também ajudaram a desfocar a imagem. Sonhou que era um garanhão tal como os que via no pasto. E ela, a fêmea passiva. Não longe da realidade…

Os primeiros raios da manhã invadiam o quarto. Aos rumores da sua esposa a deambular pelo quarto, acordou. Chamou-a. Irene acorreu. Viu-lhe uma centelha de satisfação no olhar. De fêmea saciada… intuiu.

Deitou-se a seu lado. Miguel beijou-a bruscamente, abriu-lhe o roupão e, em escassos minutos fê-la de novo sua. Como se o mundo acabasse naquele instante. Seria assim por muitos e muitos anos.

___

Encontrei-a um dia deste. Já não tinha os cabelos cor de fogo. A prata da vida instalara-se definitivamente. Convidou-me a tomar um café. Sentámos-nos numa explanada, mandámos vir um gelado ao invés do tal café e, sem que suspeitasse, Irene irrompeu:
“olha lá, tenho lido as tuas escritas …”
“eh?”…
“gosto! Vou contar-te o que, por certo sabes do mundo íntimo das mulheres …”.

Contou. Contou como havia ultrapassado a solidão da sua vida. Como não morrera dentro de um corpo mal amado. Amara-se a ela própria, milhões de vezes, sempre que o desejara. Todavia, a cada final “de acto” se sentira mais sozinha, mais asfixiada em sua pele. Sentia que era tempo de se despir das suas verdades …das grandes e das pequenas, abrir uma cova e enterrar os seus fantasmas.

Irene deambulava os olhos magoados na mescla de cores do gelado à nossa frente. Vestia-se agora de um olhar ausente …

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

In memorium

"Do diário de Amaralis, 21 de Agosto de um ano qualquer …

In memorium


Julião,

Onde foi que me perdi de ti? Onde foi que a magia que nos envolveu se perdeu no medo de encarar de frente a realidade? Onde foi que encontrei veredas livres que me tomaram prisioneira, pária desta saudade?

Não me valem riquezas neste mundo se te sonho, se te desejo e me afogo num rio seco, retalhado a céu aberto no vale de minhas mágoas (que já nem choro… naufrago no mais hostil do meu silêncio).… se te sei de ti ausente? Bebo o profano e o sagrado num só cálice e não me reconheço mais. Não sei quem sou. Tropeço nas imagens desfocadas que o leito das águas me devolve. Esbarro com a silhueta recortada de um sol já morto nos confins de um horizonte. Fantasmas. Espectros duvidosos. Faunos e duendes já não me acodem. Nem sequer as ninfas das águas. Sequei por dentro. Como uma árvore, morrerei de pé. De mim, far-se-ão novas formas e, a vida terá novo propósito em ti. Folhas de papel, barcos que uma qualquer criança colocará a flutuar nas águas turquesa de minha ilha… aquela em que, num Inverno sem fim, te reconheci (e tu, no gelo dos antípodas, me reconheceste a mim).

Navego. Navego sempre, que o meu destino é ser mar, oceano e vaga por onde bolina a incerteza. Ou ser rio. Rio sem nome e sem margem. Rio de peixes dourados em formas de lua cheia. Ou ainda, porque não, lagos. Lagos repletos de nenúfares… seja.

Numa bola de cristal vejo aos rios… Tal como os que nos separam, estes já não tem mais pontes. O que o Inverno, uma a uma, todas derrubou… para sempre.

Olho ao espelho este corpo que não conheceu o teu. Vejo-o tão transitório, tão volátil. Tão pouco duradouro que me questiono até quando terei forças para encarar a luz do dia. Hoje mais um mês de ausência de ti. Contei todos os dias, Julião, todos os dias, sabes? Como se estivesse encarcerada e o carcereiro fosse eu própria. Leste bem. Eu própria. Porque nunca consegui esquecer-te (não, não me agradeças por te lembrar…). Agradece-te a ti… Sim, recordo nas ínfimas partículas da luz que resta em minha vida.

Julião … oiço agora um piano na falésia, encosto serena o corpo à vaga e vou…
Atravesso nenhures uma nova estrada. Um caracol fá-lo-ia mais rápido do que eu, acredita. Existe no meu trajecto a tua baba, que me impede de andar mais rápido. Como uma cola visceral, que, se por um lado me inibe a crescer, por outro, me faz acautelar a cada passo. O que me espera para além do risco branco que delimita o negro deste alcatrão?

Estou exausta, Julião. Conduzo … o carro guina desgovernado. Não sei se o conduzo ou ele a mim. Uma luz, Julião… uma luz. Lá em baixo o abismo …

Aqui.”

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

a amante da praia norte

Espraiava o olhar na vaga, na água que se quedava e escoava no areal a seus pés. Depois, numa lentidão de chumbo, elevava os olhos, prosseguía a neblina que, do Leste, invadia a espaços a praia despida em fim de tarde.

Uma lágrima teimava em toldar-lhe o olhar. Insistia em queimar-lhe a íris de igual cor. Do mar. Do céu. Da neblina da tarde. Indefinido.
Cabelos recobriam-lhe a boca salgada. Um vazio mordia-lhe as entranhas, afogava-lhe os pulmões num rumor de palavras trocadas nos dias últimos. Como esporões, retalhavam-na sem dó nem piedade. As memórias ecoavam no vazio das grutas calcárias a seus pés … iam e vinham. E não as entendia. Ora eloquentes, apaixonadas, ora desprovidas de sentido, angustiadas. Num movimento oscilatório sem cadência certa. Desconcertante.

Ao lado, pescadores de linha, acomodavam o fruto da sua jornada nos baldes plásticos. Aqui e além, uma gaivota, em voo picado, despenhava-se vinda de algures, por sobre a babugem das águas. Buscavam alimentos, restos de faina. Depois, subia no horizonte e voava, a perder de vista. Sulcava o céu longínquo.

Havia um “mau tempo no canal”. Havia fola que impedia a atracagem. O Cabo Avelar não se fizera sequer ao mar. Em terra, passageiros sazonais, ocasionais, tal como ela, não haviam tido outro remédio que não o da resignação. De bilhetes já em posse, ouviram do Mestre que a viagem não seria realizada, por más condições de amaragem e que o dinheiro seria devolvido.

Espalharam-se lentamente no cais, por entre redes rotas e transeuntes. Alguns aproveitaram e visitaram o Forte, as muralhas, a Igreja de S. Pedro, outros, a sua maioria, dirigiram-se à praia e por lá ficaram. Em grupos. Solitários.
Eduarda pegou calmamente no saco de ráfia, velho de séculos, e, sem saber que fazer ao tempo caminhou errante pela Península. Deambulou, do porto e cais de embarque, a Oeste, às falésias norte. Por entre ruelas desconhecidas. Por entre gentes. Tentou prender o pensamento que vogava livre e magoado.

Por fim, deu por si, na zona da Papoa. Arvorados à falésia, mais pescadores tentavam a sorte. Continuou a caminhar até atingir a ponta da península. As escarpas, as falésias. As falésias calcárias… O saco pesavam. Toneladas.

Lera algures, que aquelas falésias contavam uma história de milhões de anos de evolução geológica, situada no Jurássico inferior de Portugal. Lera e, via agora que, tal como em sua alma, também aquelas rochas tinham registos indeléveis em camadas sobrepostas. Profundas.

Estava agora no Sítio da Ponta do Trovão, na Costa Norte. Esbarrava na sua própria trovoada interior. Nas suas memórias. Na sua solidão. Na solidão que, por um tempo curto, Adriano parecera capaz de por um fim. Por um tempo, Adriano lhe pareceu o sol a brilhar, a navegar bolinas no pranto de seus olhos. Capaz de lhe dar a paz que tanto necessitava. De por fim à solidão que sempre sentira em sua vida. Por uns tempos …

E, não obstante, sentia-se naquele momento, muito, mas muito mais só. Terrivelmente só. Tudo não passara de uma ilusão. Uma miragem. Um devaneio. As palavras, o amparo que lhe oferecera era, sabia-o agora, ilusório.

Adriano, o “seu Adriano”, era um homem dividido entre o ser e o dever. O ser que o habitava, que lhe queimava a pele em turbilhões orgânicos e, o dever, o dever que a si mesmo impunha, se impunha, de ser o chefe de um clã que girava à sua volta. Que lhe retirava toda a energia. Adriano, um ser maravilhoso. Eduarda sentira-se honrada quando o sentiu a aproximar-se de si. O seu ego maravilhava-se com as ternuras com que a envolvia. Com as ousadias com que a conquistava. Como se fosse uma estrela, que desejava sua.

Eduarda fora uma estrela em sua vida. Talvez, sem que disso não tivesse consciência, fora punção mágica com que nutrira e alimentara, temporariamente a sua virilidade, a sua masculinidade. E, claro o seu ego.

Culta, independente. Duma beleza calma. Sabê-la ligada a ele, enchia-lhe o ego. Não que disso fizesse alarde – não era da sua natureza -, mas, intimamente. Não estava em sua mente apaixonar-se. Dela esperava “tudo e nada”. E, no dia em que intuiu a dimensão dos seus próprios sentimentos, optou por se afastar. Seria, em seu entender, o melhor para ambos. Sair de jogo, enquanto tempo. O seu tempo. Não o tempo de Eduarda. Eduarda regrava-se por outras ampulhetas. Estaria com ele para todo o sempre. Sem quaisquer condições que não a de sabê-lo perto. Mas ele decidira por ambos e partira. Num qualquer porto, hoje, amanhã, encontraria uma nova Eduarda,"amante da praia norte" que, à semelhança da que agora vadiava a falésia, a troco de uma palavras de esperança, lhe proporcionassem uma temporária ilusão de virilidade. E nada mais.
Eduarda…
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O olhar detalhava o horizonte. Um esporão trucidava-lhe a garganta. Sem rumo entrou pela água … uma neblina cobria toda a praia. A buza anunciava o mau tempo no Canal…

sábado, 9 de agosto de 2008

"A riqueza das Nações"

Quem se aventurou por algumas leituras sobre temas económicos, certamente conhece o título acima, “A riqueza das nações”, como a obra mais famosa de Adam Smith e não deixará de se recordar da metáfora a que está associada : “mão invisível”.

Extrapolando esta metáfora para um âmbito maior que o económico, tenho por quase certo que, em rigor, existe uma espécie de “mão invisível” que nos encaminha, nos direccionada, para esta ou para aquela vereda ou via aberta de uma estrada, a estrada da vida.

Quem me lê, saberá por certo que não sou dada a crónicas, talvez porque me falte alguma capacidade de síntese e as palavras se me embrulhem sempre em redundâncias “poéticas”. Todavia, existem momentos em que me dou conta duma espécie de necessidade estranha de partilhar o que me vai em mente. Para além do grupo dos que me rodeiam (famílias, amigos mais próximos). E este é um desses momentos.

A “Riqueza das Nações” que aqui vos deixo,  é pois, uma crónica de um dia real, de um tempo real.

**

Maggen chegou. Esperava-a no aeroporto sem estar certa de que a iria reconhecer. Vira-a apenas uma vez em Boston em Outubro passado quando visitei a minha filha. Estivera escassos minutos com ela, e, para além disso, vira algumas fotos. Da amizade que entre ela e a Rita, minha filha, nascera, numa convivência diária em partilha de casa no âmbito do estágio que ambas efectuavam no Instituto Oceanográfico de Boston, surgiu  então o convite para que nos visitasse no Verão. Os meandros da visita foram acordados entre ambas. A mim cabia-me a tarefa de tornar do ponto de vista logístico e afectivo a sua estada tão agradável quanto possível. Seriam dez dias repartidos entre a morada de família nos arredores de Lisboa e, a casa de praia, em Peniche.

Rita trabalhou o programa de visitas na cidade. A determinada momento vi-me incluída no programa. Se estava de férias, poderia acompanhá-las. Confesso que hesitei: o que faria uma mãe “cota” junto de duas jovens, perfeitamente autónomas, perfeitamente adultas, pela cidade?  Rita nem admitiu recusa: - Vais sim, mamã. Está decidido! Vais!

Fui. Desde o aeroporto, até ao dia de ontem, em que Maggen partiu de regresso a casa, desde que chegou, estabeleceu-se entre nós uma “química” de mãe/filha. Maggen adoptou-me, e vice-versa. Se, nalgum momento, as não acompanhava, Maggen queria saber porquê. Se me via mais calada, inquiria porquê. A dado momento, num dos dias em que a minha saúde não me deu paz, Maggen, disse uma frase que jamais vou esquecer: - “numa casa, quando a mãe não está feliz, não está bem, ninguém está bem…”. E, ela, Maggen, porque me viu mal, não estava bem… percebi. Maggen tinha genuíno interesse pelo que escrevia, queria ver os meus trabalhos, por exemplo.

Os dias corriam, voavam, sem ter a sensação de que tinha uma “estranha” em casa. Não era, desde o primeiro momento. Usava-se o pijama pela casa, andava-se descalça(s). Mostravam-se cabelos desgrenhados se fosse o caso. Não haviam figurinos nem “faz de conta”. Éramos tão só quem éramos: uma família normal, com um dia a dia normal. À noite e na noite, a Maggen não contava com a minha presença… era o tempo dos mais novos….

No penúltimo dia metade da família foi fazer mergulho subaquático na Berlenga, Maggen incluída. Quanto a mim, que tenho com o o mar um idílio contemplativo, atravessei a distância entre Peniche e as Berlengas na cabine de comandos do Cabo Avelar Pessoa, usufruindo da companhia do mestre, que conheço há vários anos e que,  a  par com a restante tripulação,  me proporciona sempre preciosos ensinamentos sobre os segredos da ilha, ventos e marés - uma espécie de biblioteca viva a que recorro, ano após ano… os saberes dos homens do mar.

Quem conhece as Berlengas saberá da exiguidade de espaços para toalhas e afins. Num Agosto no seu auge, com um tráfego de barcos constante a transportar pessoas, a paz, a beleza daquele santuário da natureza, são, em muito, devassadas.

Com apenas um restaurante e um pequeno bar, quem visita a ilha sem a devida informação, vê-se a braços com a escassez de sombras, com a escassez de água, de bens de consumo. Não existe sequer multibanco...
E, em oposição, filas intermináveis para adquirir uma garrafa de água que seja. Para beber um café...

Conhecedores de tudo isto, abastecemos-nos em terra, e lá vamos nós, de geleiras e chapéu de sol…

Éramos um grupo de mais de uma dúzia de pessoas, adultos e jovens adultos. Portugueses, todos e, claro, a Maggen. De viola em punho, o meu filho João alegrava o grupo, a Ana cantava, fazia “tererés” no cabelo dos amigos… enfim.

A determinado momento olhei e vi que, junto a mim, uns pés buscavam ávidos a sombra. Nem me tinha apercebido da sua chegada. Uma mãe (admiti) e dois filhos adolescentes. Dois rapazes. Olhei com mais atenção e percebi: ingleses, porventura. Brancos como leite, sob o sol escaldante do meio dia, no funil das falésias… Não resisti, aconselhei que usassem chapéus, t-shirt… Não tinham chapéus. Não tinham nada, percebi depois. Haviam chegado ao cais de embarque, viram da possibilidade de ir à ilha e, sem que tivessem a ideia de que a ida implicava permanecer das 11.00 da manhã às 4.30 da tarde, foram. A viagem que presumiram de uma hora, era afinal … de um dia.

Estabeleceu-se o diálogo. Juddy, a mãe, era oriunda da Escócia, a viver em Amesterdão. Visitara Portugal nos anos oitenta e voltava agora. Estava espantada com a mudança do país, com a mudança de mentalidades. Dizia que os Portugueses de oitenta eram fechados, sorumbáticos. Os de hoje, de rosto mais aberto, de trato fácil. Mais cultos, mais disponíveis. Questionou sobre Maggen… que se apresentou como “nossa filha americana”… Rimos todos.

O dia decorreu, entre mergulhos e partilha de empadas, de sumos e sandes diversas. Entre troca de experiências, de vivências e, por fim, troca de e-mails.

A determinada altura, disse-lhe: - "O mundo é mesmo muito pequeno… Rita irá brevemente para a Escócia, fazer o seu Doutoramento."

Riu. Na Universidade para onde Rita irá, lecciona um familiar de Juddy... “não há coincidências", pensei … a tal mão invisível a comandar quem cruza com quem nesta longa estrada da vida, verbalizei.
Juddy respondeu-me: - “se não bates à porta, não sabes se dentro está alguém morto ou vivo…”.

Claro, Juddy, tens toda a razão. A questão é que, tantas e tantas vezes, temos receio de abrir a porta, ou melhor, de bater sequer… e, por fim, dei comigo a pensar que a “riqueza das nações” são, indiscutivelmente, as pessoas. O seu recurso maior, o que marca e faz a diferença, o seu cartão de visita. Para além da beleza das coisas, da natureza, dos museus, a arte natural ou construída. São as pessoas o seu bem maior. O que os habita, a capacidade de se revelarem, de se darem aos outros…

Quando voltei a terra, no Cabo Avelar, revi os meus últimos dias, um a um. E achei-me mais rica. Indiscutivelmente mais rica. Tão mais rica. Não sendo crente num só Deus, mas na força cósmica, intimamente, agradeci ...

Maggen foi fazer umas compras de última hora. Quanto a mim, entretanto, preparei o jantar. O seu último jantar desta temporada. Desejava que fosse a seu gosto. A campainha tocou. Era Maggen, com um ramo de flores. Esticou-mas.
Olhei-a sem perceber…
“ flores?...”
“sim, para a minha mãe portuguesa …” . Abraçámo-nos, ambas já saudosas. Penso que Meggan interiorizou o conceito de "saudades"...

Volta Maggen. A casa é tua, a família é tua. A riqueza das nações, são pessoas como tu, como Juddy, como os filhos... pessoas que ousem partilhar afectos.

sábado, 2 de agosto de 2008

Marta

Duas grossas lágrimas deslizavam-lhe o rosto sem que nada fizesse para as deter. Sentada na sua cama, envolta na semi-penumbra da tarde mastigada pelos orifícios dos estores corridos - em oposição clara ao ímpio sol de Julho findo no dia de ontem, em antítese manifesta ao sol do sul para onde as portas amplas se abriam (as físicas e não as outras) -, Marta olhava o visor do seu telemóvel, uma e outra vez.

E uma outra vez fechava a tampa do Motorola 3ª geração.

Não, não iria responder. Não havia mais a fazer, mais a dizer ou que dizer e, contudo, aquela mensagem fora a que, durante tantos meses, desejara ler – um sinal que fosse de que a não havia esquecido, de que, e não obstante a ter deixado completamente desabrigada sem uma palavra de conforto, de carinho, sem uma explicação, sem a objectividade de dizer “não”, Samuel nutria sentimentos por ela, tal como sempre imaginara que fosse na realidade.

Mas não. Marta crescera. Crescera na dor do desamparo, nas tardes, em todas as tardes de muitos e muitos dias, talvez séculos, talvez eternidades, em que as suas mãos ávidas e saudosas teclaram o número que agora lhe falava. E que, numa dor de quem se mutila sem razão, as suas mãos o cancelaram. Crescera na mágoa de sentir que amara e que, talvez nunca tivesse sido amada. E não acreditava. E duvidava. E ouvia-lhe a voz forte e rouca a ecoar dentro dela, e ouvia uma a uma as palavras que haviam trocado, os afectos, os instantes partilhado e, não entendia como aquilo podia ter terminado assim. Questionava-se se fora o seu amor excessivo a razão de a ter abandonado como um trapo sem préstimo, uma rodilha; se fora a sua disponibilidade que o fizera não valorizar o que lhe dava. E de novo não entendia. Talvez nunca soubesse amar. Mas o que na verdade sentia é que o amor não podia ter regras outras que não as da entrega completa ao ser amado, a disponibilidade universal para ouvir e acompanhar, a partilha de coisas grandiosas ou das menores - “migalhas” como um dia ele lhe dissera:

“Marta, um passarito poisou na minha janela… achas que lhe dê umas migalhitas”?

Havia-o dito a brincar, em clara alusão à sua fragilidade. Marta nunca esquecera, porém. Sempre tivera a noção de que, aos olhos dele, era frágil, dependente, tal qual “passarito” a quem se dá, da vida, umas migalhitas sobrantes. E, não obstante, aceitara, na ilusão de que, com o decorrer do tempo, a visse como ela era, na verdade. Mas como era ela, em rigor? Para todos os que a rodeavam, uma mulher de sucesso, com carreira e obra feita. Senhora de uma beleza terna, suave, exótica. Inteligente, perspicaz. Mãe dedicada e boa cidadã …

Se assim era, porque deixara que a visse de outra forma? Não sabia. Como não sabia como fora possível cultivar em si tamanha ternura e tamanho afecto por alguém como Samuel, um ser que a negava a cada instante. E, contudo, amara-o. Amara-o sem peso e sem medida…

Olhava de novo o visor do telemóvel

“…. Gosto de ti. Beijos.”.

As lágrimas corriam-lhe em fio, agora. Deixou o telemóvel no quarto, não sem antes ter apagado a mensagem.

Cambaleante, encaminhou-se para o escritório, igualmente envolto em penumbra. Abriu o gmail, e encontrou a mensagem que começara há muitos e muitos anos atrás (seriam anos? séculos? ou apenas meses? Não sabia, de igual modo …)

Leu:

“passou tanto tempo, que já nem me lembro porque estamos separados. Só me lembro do quanto és importante na minha vida e do quanto a tua ausência me fere.

Hoje contabilizo mais um dia sem ti. Como te disse tantas vezes, a tua a amizade (acima de todas as coisas) era/é um pilar para mim. De que fugimos, Samuel? Nunca te pedi nada, nada mesmo! Nem que viesses, nem que me desses fosse o que fosse. Dediquei-me a ti e não lamento. Apenas me entristece saber que não soubemos gerir os nossos sentimentos. Que nos magoámos sem qualquer sentido.

Comecei mil vezes este mail e de todas apaguei. Comecei mil vezes mensagens no telemóvel e todas apaguei. Fugi de tudo quanto me lembrasse que existias. De todos os espaços onde sabia que ias ... voltei aos pouco a alguns e sempre em sofrimento (eram de amigos, devia-lhes uma atenção). Nada foi suficiente! Nunca será, posso afirmá-lo volvido este tempo.

Não sou perfeita (erro tanto). Também não és! Somos apenas e tão só humanos. Não guardo qualquer mágoa de ti. Mas guardo todos os momentos de carinho que partilhámos (e foram tantos, Samuel, tantos), ao longo do tempo em estivemos juntos...

Penso menos, quase já não sonho. Anulo-me menos, já não estou parada – avancei por mim e para mim. Encarei novos projectos, alguns dos quais me parceciam improváveis de desejar fazer. Sofro e choro, isso sim, em boa verdade, mas é algo que surge de forma cada vez mais espaçada, casual e conciliável com uma vida "regularizada". Se choro não soluço, se sofro já acontece várias vezes que não choro – as lágrimas gotejam os olhos mas acabam por não cair. Apenas deixam uma cortina acetinada sobre o mundo ... Uma cortina, Samuel...

Gostava de poder dizer que te esqueci. Que nem me lembro do teu nome. Mentiria. Terrivelmente. Estás presente a cada segundo, em todos os segundos do meu dia. Nas alegrias que gostava de te contar, quando a doença me atropela e me fragiliza (É cíclica, com crises, como sabes). Por detrás do texto que escrevo (ou no que, escrevendo, escondo). Nos propósitos, nas vontades. Nos menos, nos mais ...

Tentei acreditar que eras um "monstro", que te detestava, que... (era-me mais fácil esquecer). E conclui que me torturava e que é a ti que também torturas, mais do que a qualquer outra pessoa, quando me negas (na amizade, que seja), quando "assobias" e segues em frente como se nada fosse contigo. Quando finges que a minha vida te não interessa; Quando te "distraís" olhando a paisagem... sem te deteres na árvore.

Faz deste mail o que desejares: apaga, ignora ou reflecte. Considera-o de uma louca, destrata-me, ofende-me. Fico à tua mercê. Engoli todo o meu orgulho e mostro-me absolutamente nua em alma. A tua amizade (a que te guardo) é-me sagrada. Para sempre!

Nunca ouvirás de mim uma palavra de acusação. Repito, não sou perfeita e por imperfeita, não tenho o direito de te julgar, seja qual forem as tuas atitudes. Ainda que me magoem!

Se um dia (hoje, agora, amanhã, daqui a 10, a 20 anos ...) entenderes ligar-me não te desligarei o telefone. Não te fecharei a janela. Não te bloquearei qualquer acesso.

Não te negarei o que é teu para sempre: o meu afecto, o meu mimo, o meu colo. Falar-te-ei como da 1ª vez, que sem saber quase nada ti, te acolhi de coração aberto...

Talvez tivesse de ser assim. Doloroso! Enorme.... Donde viemos Samuel? Quem fomos/quem somos na vida um do outro? ... Um nada? Um tudo?

Talvez devesse nunca escrever este mail. Mas, e tal qual te disse tantas vezes, do que me arrependo é do que não fiz. Do que faço nunca. E antes que a vida não nos dê tempo a dizer o que desejamos, digo. E repito! E assumo que digo. E luto por aquilo em que acredito. E acredito! Sempre acreditei!

Dedicadamente

Marta

***

A luz enfraquecia agora, lá fora. Marta estava tombada por sobre o ecran. Num gesto de “não mais” apagou o mail, definitivamente. Agora todo o corpo se agitava, numa convulsão de dor. Um grito ecoou por muito tempo no vazio da casa… como se uma espada a tivesse varado de lés a lés. Eram de sangue as lágrimas que lhe banhavam o peito que lhe molhavam o vestido de talhe recto. Um vestido de linho rosa.

Não se recordaria nos dias seguintes de quanto tempo ficara ali caída sobre si, em posição fetal. Sentia as dores de um parto, as ancas a abrirem-se, os ossos a rangerem … por fim, mariposas saiam-lhe em turbilhão pela "boca do corpo", como diziam as velhas da sua aldeia. Sentia-se vazia. Oca.

Marta sabia, claramente, que acabara de parir, ou melhor, de abortar um sonho. Esgotada, dirigiu-se para a cama recoberta com um sem número de almofadas, e, pesadamente sem vontade e sem capacidade para fosse o que quer que fosse, devolveu-se ao conforto do mundo, do seu mundo, aquele que levara uma vida inteira a construir.

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...