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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

... um olhar ausente. (parte II)

***
Neblinas provindas do mar, avançavam por sobre o seu leito até ai inalterado. O sol despenhava-se na superfície das dunas mais longínquas. Lentamente, um a um, os veraneantes recolhiam da tarja marítima os pertences, num zelo de coisa própria.
Espraiavam um último olhar por sobre o espaço que os acolhera nas últimas horas. Como que para reter em memória, uma a uma, todas as horas daquele dia, daquela tarde - as brincadeiras das crianças, os afectos e os namoros de verão, de ocasião, ou, porque não, aqueles que, tendo atravessado décadas, pareciam resistir ao desgaste, à erosão do tempo. Fiquei com o olhar parado num casal de sexagenários. Ele, atencioso, oferecia-lhe o braço para que se levantasse da cadeira. Ela, de estatura baixa e volumosa, sorria, alisava os cabelos ralos … Fechava a cadeira e entregava-lha. Depois, de mão dada, avançavam, em passos certos, de quem palmilhou a par a vida e, tal como os demais, tão diferentes e, porventura tão iguais, rumo às passadeiras de madeira, na sua maioria já danificadas …

Ouviam-se os motores dos carros e os piares incessantes das gaivotas, num rumor desigual. Era o fim de tarde a cair no ciclo da vida …Os cheiros intensificavam-se, num iodo baixo.

Irene deu sinal de que, esgotada, se iria erguer da cadeira. Chamei a empregada, a que estava afecta à esplanada. Fez menção de puxar pela carteira. Travei-lhe o movimento, rapidamente:
“não, de todo não … eu pago, Irene. Afinal estás na minha terra de adopção, logo tu é que és minha convidada e não o inverso …”
Sorriu. Não insistiu. Como se, na verdade lhe fosse indiferente pagar ou não dois gelados…

Paguei. Segurei-lhe o braço e desafiei-a:

“queres esticar as pernas? Andar um pouco … ou muito?...”
“não sei … estou esgotada …”
“anda dai … vai fazer-te bem. Gosto de andar por aqui, sabes? A areia é fina, como verás e, daqui ao Baleal são apenas cerca de 5Km… pelo nevoeiro…”
“… e pelo Sol? Não?...”

Rimos ambas. Irene, não obstante as vicissitudes da vida, da sua vida, mantinha o humor britânico que se esboçava já, tímido, na nossa juventude. Assaz mais sagaz, mais “crocitante” – de “corvo negro”. Mais “estridente” …

Caminhámos, lado a lado em silêncio durante algum tempo. O nevoeiro não me permitia vislumbrar sequer a Ilha.

Sempre gostara de por ali vaguear. Descalça, claro. Sempre descalça. De Inverno ou Verão. Ir da “minha praia” à Ilha, percorrê-la de lés-a-lés, circundando-a, beber um sumo num dos seus cafés, e, sem pressas regressar pelo areal, era, tantas e tantas vezes o meu amanhecer em tempo de férias ou, como naquele dia, o anoitecer. Em cada um destes tempos encontrava belezas raras. Inaugurar o areal, por exemplo, ser a primeira a pisá-lo e senti-lo virgem, dava-me energias redobradas … ser a última a sair da praia, “expulsa pelas gaivotas” e pelo declínio do sol poente, ou, pela chegada da lua, trazia-me uma fonte suprema de bem estar… de paz… uma comunhão orgânica que me apaziguavam. Dei por mim às voltas com as minhas próprias emoções, enquanto alternava a vaga e a areia molhada e já enrijecida …diferentes texturas que me massajavam a pele e que buscava a cada passo …

Avançávamos. Ao mesmo tempo que me aproximava tinha sempre aquela sensação antiga de que, por ali, algures num qualquer tempo, havia deixado memórias da minha própria vida … A Ilha ganhava forma, envolta no azul do mar … Todavia não naquele dia. Não na neblina. Estava submersa, escondida …

Mas que importava se conhecia cada espaço daquele trajecto, ao milímetro? Não havia surpresas. Ano após ano, nos últimos vinte e dois anos, voltava todos os verões, senão durante três meses, pelo menos durante um mês acrescido do máximo de fins-de-semana possível. Irene confiava pois que não a haveria de conduzir para o mar alto…

- “confio em ti, Mel… sei que tratarás esta minha história com a dignidade possível…Sabes, durante todos estes anos, não foi fácil a renúncia. Não me foi fácil aceitar que havia cometido um sem número de erros. Contínuos e continuados. A começar pelo facto de deixar que os outros e não eu, decidissem os timmings certos para esta ou aquela mudança em minha vida. Mas o que é facto é que, quando se vive numa pequena aldeia, quando somos vistos como um modelo de virtudes, como a filha de “X” e a neta de “Y”, temos como que a obrigação testamentária de prosseguirmos determinados padrões comportamentais. Ancestrais. Os das nossas mães, das nossas avós, das tias e das primas. Não, não digas que não… que podemos romper com tudo isto impunemente. Não é verdade. Desde que nascemos que nos é determinado um caminho. No meu caso, como sabes, o ter ido para a faculdade já foi um avanço não esperado no percurso. Sim, quando casei parei …. Ou melhor, parei antes de me casar. Afinal, para trabalhar como administrativa de uma imobiliária, tinha até “habilitações a mais…” . E acrescia a necessidade de trazer rendimentos ao lar. Pagar o que havia a pagar…. Tomar as rédeas do lar e dos filhos.

Minha amiga, voltando à minha história quero que saibas que, ao longo destas décadas, muitas foram as oportunidades para que, se estivesse em minha mente, trair o meu marido. Não duvidarás pela certa!...”

Anui com a cabeça. Claro que não duvidava. Acreditava. Irene era, à altura em que nos conhecemos na Faculdade (que ela abandonou no 1º ano do Curso de História), uma rapariga belíssima. De estatura média, meio roliça (campesina como alguns colegas da linha faziam questão de sublinhar), dotada de uma abundante cabeleira castanha com laivos cor de fogo, de uns expressivos olhos azuis turquesa, sardenta mas não em demasiado…

Vestia de forma clássica, algo exagerado para a sua idade, o que a fazia, irremediavelmente, parecer mais séria, mais velha, mais taciturna. A postura discreta. Respondia sempre com um sorriso afável o que, por si só, seria matéria suficiente para que se lhe augurasse melhor futuro. Chegava em regra, atrasada às aulas. Havia iniciado actividade profissional, e, segundo nos contava, o chefe não lhe concedia tréguas. Nunca a deixava usar as horas destinadas a trabalhador-estudante … Acabaria por ser esta uma das razões pela qual não dera continuidade ao seu sonho de formatura…

“não, Irene, claro que não …”
“pois, não duvides. Na verdade, pese embora nunca ter falado da minha vida íntima a ninguém, o que é facto é que, em várias ocasiões me vi literalmente assediada. Como se a minha insatisfação fosse transparente e, por isso, uns e outros achassem por bem que me haveriam de dar consolo…”
“mas?...”
“mas nada, minha amiga. Uma mulher só vai por onde quer ir. Nunca fez parte do meu imaginário a traição. Jamais me senti confortável perante a possibilidade de, hoje beijar um e amanhã dormir com outro… confesso-te que, em certos momentos, desejei ter dentro de mim esse modus operandus. Nota, Mel, não critico de forma alguma quem opte por esse caminho. Todavia, minha amiga, cada um de nós é, como é. Pelo que te acabei de contar, percebes que não me tenho em grande conta, que tudo isto me magoou em demasia, que, a anulação de mim e a “substituição” de um amor real pelo acto de me amar a mim mesma, não é, de todo, saudável. Sempre tive disto absoluta consciência. Desde o primeiro dia. Mas, minha amiga, foi a forma que encontrei para não morrer antes do tempo…”
“e se te tivesses apaixonado por alguém, Irene?...”
“apaixonar?... não sei, na verdade não sei. Sabes, a questão é que, por educação, por formação, por… sei lá, sempre coloquei tantos muros em meu redor que seria uma probabilidade remota. Direi, uma improbabilidade. Todos os que, de uma forma ou doutra se insinuaram, foram, um a um, repudiados. E fi-lo, acredita, de forma a que saíram magoados…”
“magoados?...”
“sim. Fi-los sempre sentir menores. Imbecis. Estúpidos. Porque, minha amiga, perante ataques evidentes, repetidos, te "fazeres" completamente despercebida, transforma qualquer Dom Juan num pateta…”
“fizeste isso, Irene?”...

Não reconhecia agora a minha amiga. O olhar toldava-se num misto de ódio e glória. Senti-lhe um tremor no corpo. Como se a neblina marítima se estivesse a misturar na sua corrente sanguínea. Como que todo o frio do mundo, num instante único se arvorasse em seu redor. O meu coração pululava em ânsias de saber que mais aquele fim de tarde me traria. Começava a desconfiar que não conhecia Irene. A sua história era um presente anódino e um passado magoado… e o futuro Irene???

Segurei-lhe firme o antebraço. Nem de forma remota desejava que se quedasse na história. Que, de alguma forma retrocedesse e não se revelasse… pudera eu ser ar e, juro, naquele instante iria insuflar-lhe os pulmões e as cordas vocais para que, de forma clara desse prossecução ao assunto.

“… fiz e faria tudo de novo. Fi-lo por duas razões objectivas. A primeira tem a ver com o facto de que, só desta forma me livraria de assédios … quem é que gosta de se ver “ridicularizado”, amiga?. Passei a ser vista como a "tipa do mau feitio, a "gaja que tem a mania que é boa"...A segunda, e não menos importante, porque, duma vez por todas, os homens tem que aprender que as mulheres não são só objectos sexuais. As mulheres têm vontade própria. Não é correcto que se achem no direito de entrar na vida de uma ou outra mulher, só porque a adivinham carente e, não serem depois responsáveis e responsabilizados pelos danos que, levianamente, na sua estrutura emocional possam vir a fazer… não nos podemos esquecer que somos sempre, tal como nos disse Antony Saint-Exupery… , “responsáveis pela nossa rosa…" ... ainda gostas de ler Saint-Exupery?

Respondi que sim. Que as suas sábias palavras eram como biblia em minha vida. Sempre presentes. Continuou.

"acresce ainda uma terceira razão, a mais importante, minha boa amiga: nunca, sublinho, nunca, vi no olhar daqueles que de mim se aproximaram, uma verdadeira lealdade, uma verdadeira vontade em dar amor. Não falo sequer de fidelidade. Falo de lealdade. Alguém que, de um modo “leal” se interessa por nós, num todo e não exclusivamente tendo em vista a vertente sexual. Não vi!. Não, de todo não. Em regra, o que vislumbrei sempre foram formas difusas de, através de conquistas ocasionais, insuflarem os seus egos (carentes, isso sim) e, acredita, jurei a mim mesma que não faria parte, objectivamente, das suas listas… e, por tudo isto, preferi a solidão. Aquela e na forma de que te dei conta …”

A ilha estava agora à nossa frente. Surgira repentinamente, como o vértice de um iceberg. Atravessava a neblina, furando impiedosa, aquela teia cinza, nas suas casas pequenas e brancas… Um sol estranho dançava na cara pálida de Irene, nas lágrimas de Irene que, agora e só agora, deslizavam sem contenção…

Tinha tantas questões a colocar-lhe. Todavia, o seu semblante fechara-se num muro de mutismo … intransponível.

Irene era agora, à semelhança da Ilha, um iceberg de que eu apenas tivera oportunidade de conhecer o vértice … e percebi que não retomaria o assunto, nem naquele dia nem mais. Como uma concha, cerrou-se.

À nossa direita, das dunas, surgiram dois surfistas abraçados às suas pranchas … avançaram em corrida sincronizada à vaga....

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...