Sobre mim ...

A minha foto
Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Além daquilo que [nos] faz chorar



Além daquilo que faz chorar os poetas, que faz com que 
os soldados se lancem para a frente e percam a vida 
à luz do sol: que será, Bill?

(Carl Sandburg)


Morriam lado a lado como peixes podres com os olhos esbugalhados ao ridículo da questão. Por vezes, quando o Inverno lavrava leivas desapegas na argila lisa, improperando os terrenos à caminhada, impondo tempos de pousio em vésperas de cultivo das novidades, quando o frio antecipava a morte e lhes impregnava a pele no mofo de pregas vincadas - "féleo jugo" de ser pó e ao pó voltar -, davam-se conta, ainda que de forma ténue e nunca verbalizada, de que, dia a dia, esmoreciam de vontades e de futuros em afasias e extemporaneidades. Aí os dedos aproximavam-se aos gestos.

Mas não havia liturgias nem salmos nem oráculos divinos. Tudo era, à luz negrejada pela noite lá fora (e dentro de cada um) uma espécie de função utilitária onde só os corpos fermentavam em leveduras requentadas; os olhares, de baços já não se nutriam de palavras e, dia a dia, morriam. No canto espúrio dos olhos dela, por vezes havia ainda uma luz, centelha fortíssima à força de pedra. Jade onde as lágrimas resilientes nascidas algures numa nascente de serra se retalhavam antes de tombarem largas a eviscerarem, iguais às chuvas torrenciais, o tecido do rosto. No canto espúrio dos olhos dele, no modo inverso, parecia já não haver espaço a manietações gravíticas, inquietações, desideratos sódios ou sequer projectos adocicados.

Em tangência virtual, vendiam-se ao tempo que passa, por dois reis de sobrevivência. Em litologias de anjos barrocos e olhares de peixes mortos.

Dela ainda a esperança de ser Fénix. Além do que fazia chorar os peixes. Vertebrados. 

terça-feira, 15 de junho de 2010

... que chegue rápida.



Na tarde dos olhos dela, os deles. Laços serenos entre
o inox do púcaro,
as bolachas
de água e sal e o guardanapo de papel. Amarelo, Sol …
Um  compromisso com os afectos, apenas.
Sobre a mesa, a espaços no colo, as mãos inquietas, sôfregas de dias novos - pensou. Ou talvez não…
Atirou a primeira acha, rezou que a fogueira pegasse, que as chispas colorissem desmedidas em arco-íris o cinza das paredes, desejou que, pelo menos, se não o profundo da dor, então o sal das lágrimas superficiais de suas vidas, se ustulasse, momentâneo.
Atirou o barro à parede,  assim como quem não quer a coisa. Artesã de lama e fogo,
queria construir um castelo - Almourol no Tejo de suas vidas- tinha medo das ameias, do óleo quente em tempo de guerra, dos fossos da distância (e do escuro) - tinha medo das perdas - onde
os leões, do que se recordava, não defendiam as princesas
“a menina dança???
mas haviam as crenças, as Ordens dos Templários. Divagava em fímbrias margens de aluvião - abraços de Zêzere, dela, vinda, de lá. 

Outras falas,
vozes que o infinito já consumira:
“traga-me uns panitos, umas toalhinhas de chá, umas linhas, uma farpa: faço-lhe as rendas…só quero estar entretida. Entediam-me os dias grandes…Saudades, menina, do meu poiso. Do poial da porta, da pedra  onde m' assentava a arrefecer as ancas achatadas das bilhas. Traga-me uns panitos, que lhos faço  de gosto."
O lugar vazio, memórias …

Ou quando, ela, em desafinação, afinada no diapasão das emoções, se atrevia e lhe trauteava, na rama do olhar, entre a carne que cortava, e o babete que se escapulia no chão, por artes "mágicas", em resposta a um
"ao que um homem chega ... babetes..."
ah ... caiu .... azaretes, meu amigo (sorriam, jogo dúplice ...); fica sem ele ... e logo:
escute-me, veja lá se ganho o festival da canção:
Grilo, grilinho, bichicho da seda … bebemos água? … não tem sede? ... tem de ter … a água faz bem à pele … Grilo, grilinho…
E ele, sorrisos escancarado à lembrança - o seu nome “Grilo“, o seu espaço,
chegou a conhecer a minha horta, menina? Tinha lá de tudo, da batata ao feijão verde, não faltava nada… um mimo, um mimo. Nunca mais lá fui, ainda existe, o meu filho há-de ter deixado secar tudo… Existe, com viço, menina?
O olhar em súplica…
Que sim. Abanava a cabeça, afirmativa, mas não sabia, não tinha sequer pálida ideia … iludia a  viagem na viagem que, adivinhava, franca e breve…
    O sofá vazio, a bilha, a horta, as pontilhas de renda, as farpas na lembrança, o ancinho, a água por dentro dela a abrir caminho, 

Um gole de café e a acha, na fogueira da amizade partilhada, despojada de si, 
na prosa retomada,

...E se, assim de repente, eu fosse, digamos, por exemplo, mágica? uma fada, e vos pudesse realizar uma vontade antiga, um anseio, que me pediriam?
Inquinado nas mãos, o espanto, e estas - mãos enroladas, aos pares, contorcionistas em regressos impossíveis, uma sobre a outra  - tão trémulas, 

Sem pausas, uma nova acha sem rodeios,  fogueira rosa pálida e  logo de todas as cores,
...Um só, um só desejo… vai uma bolachinha senhor Válter? Não? … pois faz mal, estaríamos todos - e não só eu, - numa "gulodice interminável". Estas são boas,  sabe,  não perturbam os "diabretes"... Não vai? Bem  assim  sou só eu de boca cheia… e, de boca cheia,  terão de ser os meus amigos a falar …
Coma menina que está magrinha… quase que nem a conheci quando entrou,
Ora, ora, Senhor Válter, nem menina, nem magrinha… temos de ir de novo ver a graduação dos óculos… devem estar desfocados, meu amigo, para além de que está a ser muito benevolente comigo, que menina? Já fui, sim, mas isso foi no século passado… há bués...
...parece a minha bisneta a falar... O riso na tarde dos seus olhos, iluminados na teia familiar, ausente e ela, na  canção que, por vezes, bisneta, neta, ou "nada",  amigos lhe trauteavam   
“A... dos olhos doces…gostava que fosses da cor do limão …”  
Premunição? Por certo.
Seria, no que da sua força dependesse, em mil cores: verde,  amarelo, arco-íris ...assim se desejava representada àqueles a quem se dava. Em sonhos de tardes partilhadas ungida
nas  lágrimas de Válter Saudade. Tardava a resposta. Voltou atrás, reformulou. Pegou nos sorrisos de antes e, subtilmente, insistiu,
...Imaginemos - é um jogo, não mais que isso  - quem dera eu fosse fada, ai é que haveriam de me ver de vassoura a viajar por  essa Lezíria; eu que nem gosto de conduzir,não teria tempo para respirar. Uma poupança só, viajante ecológica….
Risos francos, serenos… Válter repetia: De vassoura, a menina de vassoura …. ehhh, gostava de a ver...
Fernando anuía: A menina de vassoura, haveria de ter que ver, sim senhor, sim senhor; até o Diacho se ria...
Não me façam rir, amigos, que me engasgo … as bolachas são muito espessas para as minhas “goelas de passarinho” … 
E diz que não tenho razão: nem consegue comer, tal não vai a magreza, menina. Ora não será melhor uma açorda de unto? De unto basto! Para escorregar ...
Riam juntos. Ela retomava o ponto, o fio da meada:  - imaginemos então, juntos que, por artes mágicas,  posso realizar um sonho, um sonho antigo… ir ver um teatro, ir à revista, aos  toiros, às esperas do Colete Encarnado, à sardinha assada… andar na montanha russa, ir a uma coutada em Espanha, para uma porta (o meu pai delirava…)
Valha-me Deus, menina, com respeito da palavra, mas vocemessê variou? variou da tolinha? tenho lá pernas para tais caçadas e touradas? … daqui ninguém me tira, e vontades, confesso, só que ela chegue … e que venha depressa que se faz tarde…
Cruzes, credo, Senhor Válter. Bem vejo que faço aqui muita falta… então isso são conversas para nós? Eu aqui, e o senhor a falar-me que  quer que "ela "chegue? Vou ter ciúmes, meu amigo, então existe outra fada e eu não sabia? …
Um sorriso rasgado à renúncia da vida, um toque na mão que sustém o púcaro, um afago tímido no cabelo,
Benzá Deus, Benzá Deus  … só a menina para me fazer rir hoje. Estou desgostoso com a vida, menina,  é o que é, cansado,  quando a minha Micas se foi  havia  Deus me de ter levado – sem a companheira um homem coxeia, compreende? Deus podia ter trocado, levava-me adiante que eu alumiava-lhe o caminho e havia de estar lá para a receber como no dia em que a tomei ao pai, no sacramento do altar…Era tão linda a minha Micas…
...conhecia-a? Ainda chegou às falas com ela, menina?
Claro que sim, Senhor Válter, claro que sim. Conhecia a D. Micas, era uma senhora delicada, linda  …
Linda menina? Mas havia lá mulher mais linda que a minha Micas? Era a luz dos meus olhos, o calor do meu coração. Uma fada, menina? … uma fada, a minha Micas.
Por isso lhe digo: desejos? Só que ela chegue. E que venha depressa, que chegue rápida, as saudades são maiores a cada hora ..  Um homem não suporta …
Não estava mais. Os olhos além dos vidros, longínquos,  na proximidade dos dela…
Insistiu, ainda, baixinho
...mas aqui existe amizade, companhia, e, se me deixasse, poderia haver … magia...
Não não … não me apoquente com isso, beba o seu café que s’arrefenta…beba. Beba!

    Irredutível. .... a chegada dela, quanto mais  breve, melhor.

Era Inverno. Outro o espaço, outro o tempo.Coalhadas de memória, em que se azedava por dentro... Realidades outras. Absolutas, realistas, 
        os passos apressados, miúdos, trémulos, a ecoar no silêncio de pós almoço. Pé-ante-pé, entre a sala e o quarto, invariavelmente trancado. Naquele dia, por um qualquer esquecimento, distracção, aberto. Um saco de plástico escondido algures e meia dúzia de pertences dentro.
A premunição de novo...
  
         Sem parte de um braço, com dificuldades acrescidas no exercício de rotinas triviais,  e não obstante, quando a companheira de mesa, no seu dizer, “cismou de não comer”, tomou sua a tarefa de a alimentar. Titubeante, oscilava a colher entre o coto e o peito, enquanto, num sorriso doce, rebuscado ao fosso dos leões, num bailado de garças em pontas,
    D. Eunice, tem de se alimentar, ora vamos lá a ver… eu ajudo. Outra, outra mais, minha senhora, abra a boca…
    Ela partiu. Modista de profissão foi fazer mantos para os anjos no céu ,e ele, que encomendara um vagão cheio de fardos de fazendas de primeira fiação, para que ela pudesse fazer o gosto ao dedo em recriação de figurinos franceses, que ele mesmo haveria de mandar vir pela mala-posta,  viu-se mais solitário que a própria solidão. Morrera? Também ela? Então não o ouvira? Tinha de ter comido, tinha que ter feito um esforço - era no lar a sua companhia, a amiga do seu peito - que por esta não esperava, 
       
       Sem sentido, 

O que se passa, meu amigo? Onde vai com esse saco?... Venha comigo, por favor,… chove lá fora…
O soluço roto da garganta, a alma em sangue. A mentira piedosa. A porta de saída fechada à chave: daqui ninguém saí, uma grande responsabilidade.
Dias, meses, anos. Às vezes, escassas vezes,  ao jardim das traseiras – tem Alzeimer; não temos autorização. Dias  santos e feriados, Natais e Carnavais. Iguais como gotas de um lago inquinado. O sofá da sala – aquele e nenhum mais. O quarto, apenas aberto para a noite. O acesso vedado a tudo, agora até ao prato da sua companheira de missão. Esvaziado de propósitos, 
o lugar vazio. Até que chegue um novo residente…
                             Para mim chega!!!
Menina, por quem mais ama, deixe-me sair daqui … quero voltar à minha casa, apanho o táxi, o autocarro … se ligar para o meu estabelecimento o meu moço de recados vem cá a despacho.
Autocarros? …Não passa aqui nenhum, Senhor Vicente …
Passa sim, menina, na Estrada Principal. Não me minta… Deixe-me ir embora,  não quero ficar, um homem tem dignidade…
“Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.”

Conheço esse poema, Sr. Vicente… Álvaro de Campos…não sabia que gostava de poesia.
Fernando Pessoa, esclarece. Fernando Pessoa,
... e as senhoras sabem alguma coisa de mim? Diga lá...
O soluço recortado em dor,  incompreensão de quem, aprisionado, ainda sabe o cheiro das olaias em flor – era nas Olaias o meu armazém. Quem toma conta dele agora? Tenho de ir, menina, mandei vir as fazendas do Norte, chegam a Santa Apolónia por certo amanhã. De Lisboa, sou quem tem a melhor colecção …

Repetia,
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça...

O seu irmão toma conta, Senhor Vicente…
Não pode ser, menina, não lhe dei delegação … Deixe-me ir, pela luz dos meus olhos, lhe digo
      fui sempre um bom pai, um bom chefe de família, temente a Deus e um bom cidadão…
… porque me fizeram prisioneiro aqui?... porquê, porquê? Sinto que, daqui, só num caixão…Menina, menina, tenha compaixão de mim…
...
Senhor Vicente…Eu sei. Sei que é um homem de bem. Por quem é, não sofra assim, abrace-me, e deixe que o abrace... não tenha pejo. Chore se desejar, não se inquiete mais. Um homem também chora, chora porque é Homem.
peço-lhe, por favor, peço-lhe... faça-me um favor: fique comigo, Senhor Vicente; sei que não sou sua filha, mas podemos fazer de conta que sou… não tenho pai... faz-me companhia eu faço-lhe a  si…  vamos para a sala, estão lá os outros, a esta hora já inquietos com estas nossas falas, aqui, como dizem “prantados” a ganhar raízes no corredor… todos gostam de si. Eu gosto muito e sei que também gosta de mim, 

Abrupto, quase grito,

Não, não, não quero gostar… nem de si, nem de mais ninguém.… um dia vai embora. 
Não quero gostar de mais ninguém… quero só, 
quero apenas,
que chegue rápida… que chegue rápida… rápida....

     No junco dos destroços, a visão. Que chegue rápida.  Derradeira hora
 ...

Os lugares vazios, as memórias: 
               Uma mulher, uma técnica,  não chora ... Ou chora? ...

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Espessa madrugada.



Não tinha mapas enológicos mas sabia de cada cepa a sua uva. Conhecia-lhes a casta pelo olfacto anterior às parras e ao bagar dos  frutos. Do pedúnculo, sabia as farpas, que se enastravam na lenha do tronco. Quando por ali passava, não raras vezes, se entretinha em prosas estranhas. Com as cepas, bem se diga. Certa amanhã, uma delas confessou-lhe um segredo: desejava ir ver o mar. Dali de onde se plantara, só o rio serpenteava as margens. Prometeu-lhe que um dia a havia de levar. Não era mulher de faltar ao prometido.

No entretanto, futurou-se: do suco, adivinhava o mosto, a bica aberta, o doce que haveria de fazer quando em fermentação lhe botasse dentro nozes, frutas passas e avelãs.  Depois, não se pouparia a esforços, haveria de enovelar  o preparado à força de seus braços, lentamente, por horas a fio, até que ponto se desse por certo na ressonância borbulhada do carpo e da calda. O cheiro vitivinícola já lhe embargava a fala, só de o imaginar, tomando-lhe todos os seus espaços.

Em levitação de espera e nos últimos tempos, enquanto não era tempo das colheitas, tinha-se dedicado à arte estranha de porfiar silêncios, que cultivava. Tornara-se nómada, recordando  Leibnitz, mais alma que matéria, substanciando-se simples, campesina, impenetrável a quanto neste mundo existe de ostentatório e, de alguma forma, distante e  incorruptível. Dizia-lhe muitas vezes, quando a acompanhava,  que apenas  se sujeitava a evoluções, nem sempre satisfatórias, de desenvolvimento  intelectual…

Na sombra das videiras sem luz - como as palavras -, antes, quando alvorava, ainda o galo não cantava,  tomava-se de forças em tina enferrujada, água em que se desenxovalhava, e, como quem não quer a coisa, bebia o orgulho, comia a papa rançosa por onde, formiga de asa,   voara.
Acautelada em não acordar a própria sombra, abria a porta.

Não necessitava de o chamar. Ele aparecia. Sem palavras, olhavam-se cúmplices, partilhavam memórias. Roçava-lhe a orla da saia.  Farejava-lhe o corpo da noite.
Fingia não gostar.  Olhava-o com aquele olhar de vaga-mundo que a caracterizava,  soprava o tempo por uma cana semi-oca  para que fluísse lento, amparava-se de canastra  de vime ao  lenço antigo, seguia o instinto - teria de ir em busca do sustento.  No bolsa da bata, que sempre lhe cobria sobreposta a blusa alva e a saia de barra, a tesoura de podar.

No rigor das manhãs, descalça, Verónica subia ao monte; a madrugada subida recordava o frio da noite no focinho do cão, estalactite que pingava. Em estado de semi-condensação , tangente à linha de ascensão, o sangue das cepas em  vésperas de si, no tardar da estiva, descia-lhe em reincidência, igual a ontem. 

Subia a encosta, quando, nos socalcos da serra, olhou o rio - ia largo na neblina que se transmontava.  Imaginou-se mergulhada, retornada ao umbigo do Geia. Um sorriso iluminou-lhe o rosto. Um esgar entre o que era e o que gostava de ser - no espelho das águas viu-se luminosa. Lentamente, desabotoou a bata, depois, um a um, os punhos, um a um cada botão da carcela vertical da camisa, os seios em flor arrepiaram-se - a água era uma promessa. Sentiu uma espécie de orgasmo na morte antecipada -, o colchete da saia e esta aos pés… apenas um colote de renda antigo lhe cobria a nudez; desenhou no ar o gesto de despedida sobre o nariz que, pingando em bica,  farejava o perigo…

… acordou na outra margem. Aos poucos retomou a consciência. Tacteou o corpo. Fumegava. A pele era outra. Uma pelagem parda contra a madrugada.

***


sexta-feira, 4 de junho de 2010

os "stocks" de sócrates ...

numa destas tardes, e à conversa com um amigo, discutia o problema de dar ou não dar "nome aos bois" como por aqui, no Ribatejo, é usual ser dito. trocado por miúdos, a expressão quer tão-só dizer, não ter medo das palavras desde que, e sempre, no respeito que cada uma nos merece. 

a título de exemplo, dizia-lhe eu que, a expressão "portador de deficiência" sempre me incomodou, e desde logo porque, vidé dicionário, podemos ler:
portador (ô) -adj. s. m.,adj. s. m.
1. Que ou aquele que conduz ou leva alguma coisa.
2. Encarregado de apresentar algo a alguém.s. m.

tudo dito: aquele que conduz ou leva ... encarregado de apresentar... 
bom, como o SER não fosse mais importante que o que se transporta.

convicta disto, continuo a dizer que "A" ou "B" é deficiente, dando ao termo o valor que as gentes do povo dão quando chamam um idoso de velhote ou velho - no respeito e na dignidade pela pessoa humana. sem paninhos quentes.

vem isto a propósito de que hoje todos os meus sentidos se arrepelaram, todas as minhas fibras de "povo", "excedentária", "descartável" e etc., se rebelaram. 

e, enquanto socióloga do trabalho, com caminho feito junto daqueles que, licenciados (também mestres e até doutores), não encontraram um primeiro emprego - desempregados de inserção -  dos outros que, por razões várias foram conduzidos para o desemprego - muitos deles de longa, eterna-duração -  dos que, continuando desempregados, porque não subsidiados, deixaram de contar para a estatística,  tendo óbvia noção de como as estatísticas do desemprego são trabalhadas, tendo conhecimento de como os apoios sociais são importantes,  estruturantes, imprescindíveis,  no sentido de não conduzir de modo irreversível  cada um deste indivíduos para ciclos de pobreza, muita dela, como sabemos, camuflada por vergonha dos próprios, não consegui ficar indiferente a uma expressão do nosso primeiro ministro, sr. eng. José Sócrates que, no parlamento, no debate quinzenal  e em resposta aos deputados quando confrontado com o facto do governo, do seu governo, não ter honrado a palavra dada por ele próprio nesta matéria e ter suprimido oito medidas importantíssimas de apoio aos desempregados e suas famílias,  argumentou, com, pasme-se, 

                       os stocks dos desempregados inscritos nos centros de emprego estarem a diminuir

stocks, meus senhores...
veja-se:
stock
(palavra inglesa),s. m.
Existência de géneros para venda em depósito, em armazém; fornecimento; sortido. (vidé priberam)
fiquei sem palavras. 

que até agora nos viam como números, sem novidade. que, de ora avante, somos "stocks", excede em muito a minha capacidade de "encaixe".  o eu-político revoltou-se!!!

e, em maior desconforto fiquei por perceber que, de norte a sul das bancadas, em todo o hemiciclo, à esquerda e à direita, esta "inocente expressão" não causou nem "rumores nem murmúrios"...  e lá seguiram para "bingo", um após outro, com as perguntas e respostas semi-estruturadas. fizeram todos o bonito da retórica.

a expressão, vale o que vale. quanto a mim, valeu o registo aqui, como reflexão. e a constatação clara  de que, nem doirar a pílula já importa. 
                                             somos "stock", portanto ... 



Foto: da net

quarta-feira, 2 de junho de 2010

reboca_dores



O que mudara?

Despertara neblina. Apenas os topos das pontes - uma em cada mão, no norte e no sul - esfarrapavam horizontes. As linhas, os postes, a energia transportada.

Olhava o rio, as suas margens, por entre as fímbrias da memória - o verde das searas, o matiz do corte, o gado apascentado; retomava a roupa que pendurava mecanicamente, peça a peça, sempre na lógica descendente, volumétrica, consistente, em gradientes de cores, tamanhos e formas, numa harmonia que mais ninguém via,
que não se utilitava.

Sem utilidade,
retornava ao rio, às margens largas - quase mar dali -, aos braços enredados nos mouchões, ao debulhe do arroz, ao sal subido das marinas, piramidais, às máquinas que, não vendo nítidas, no desfulgor dos olhos que o verbo truculento esvaecia, sabia serem, de forma empírica, dedicadas a
extracção de areia, espaço onde o rio se caudalava, caudilho em baixios. Por vezes engolia avieiros incautos, e, às outras, transporta_dores, aquelas que dias antes, desciam langorosas, pesadas, rio a baixo, derribadas sob resíduos de um paredão antigo,

Quebrado
o rio avançava as margens no canto uníssono dos pardais, dos melros e de demais aves de que desconhecia a identidade. Embalava-se ao rotineiro das tarefas,

retomava o cais, a industria moribunda - gruas paradas na ferrugem dos tempos de águas conspurcadas, lodosas, movediças. Na cor da política e das rosas

Sequer homens
punhos erguidos, palavras de ordem - barcos sem regresso, sem retoma, os estaleiros navais - Argibay, ali ao lado, na sua frente e a máxima iterativa, imperativa, de defesa das costas, preservação dos Oceanos, origem da vida.

Uma nova mola, um trapo, o rolar das roldanas, histriónicas,

a orla de mar, a fauna marinha, a necessidade que sentia de que a inanidade marítima lhe debulhasse o tempo - por vezes era tão pesado respirar - numa respiração compassada a sal e sol, e o fogo da forja, projectado, vitral mal iluminado, espaço - contraforte, marinheiro d'embaraço

à proa de um navio sem casco, fora da barra, à mercê de um tempo ventoso. Posteriormente, ali, a desenrolar a adriça... Ulissess e Golias nos cavalos da potência regressiva. Na energia que, com tanto sol, o país importava, não produzia. Paradoxos.

O Tejo na Rota do Desemprego, de novo e outra vez, de lés-a-lés, envelhecido.

Regressava às imagens dos reboca_dores. Tudo se rebocava. A reboque da memória, ia. Requestada.
Reboca-se e nada se leva porque nada se tem a levar… Nem propósitos nem vontade. O povo e ela, na inércia. E a consciência de que por dentro da água se muda a história. Corsária já no alto-mar, em navegação avessa à regra, a bandeira içada, na negação do principio de que, no desatracar, se impõe seja arriada, não ostensiva… todavia nunca partira, estava colada ao lugar…

O que mudara?
De novo as peças - uma após outra -, a buza, a hora certa, todos de azul, na ganga e na promessa de mar ao sul - as férias, o alvoroço, a troca temporária e programada por uma casa de pano, num até já camarada,

O que mudara?
Inclinava-se ao varandim, suspensa nas molas que sabia existirem no umbigo do tempo,- estertor impiedoso, máquina medieval de tortura -, que repuxava a vida até ao limite elástico de cada um, em casos extremos, até que o corpo desagregado fosse apenas e tão-só um amontoado apático de ossos e de pele, no pior dos casos, consciente de si, incapaz de decidir fosse o que fosse, em corre_dor de morte;

Chamava-se Gabriel, tinha nome de anjo, e de arcanjo, Rafael, residente de si, a prazo, na metade sobrante que o estretor lhe deixou,

Havia o sorriso, a comida seringada, as fezes em saco, as pernas que a gangrena minou. Depois o corte. As escaras de decúbito maiores que mãos, o osso revelado, e, nos lábios secos, finas linhas serenas, o pedido do afago. Afagava-o, tinha medo de usurpar o espaço, a consciência, o abandono. Uma gota salgada descida na garganta, funil transitado até ao fim de si, afagava, “e que quem sou?… ah sou?, sim, o sou a (…) , que bom que hoje está sol, não acha?…abro a janela, Sr. Rafael? uma nesguinha só, e uma gotinha de água, vai? Só uma, vá lá… posso?" a seringa a apossar-se da boca, as mãos, em procura de forma, tacteadas…
humidificado, nos lábios o sorriso, a bonança e a vontade de humana presença. Além do branco das paredes. Em que pensava? talvez nas marinhas salgadas ou na safra das searas, nos carregos de uma vida suspensa - não sabia...,
"Até já, volto, quer-me aqui mais logo…? Eu venho..., "a cabeça meneante, afirmativa, a lágrima teimosa,
Tudo tem um fim. até quandoooooo?... Paz à sua alma. Uma lágrima, meu amigo...

De novo as molas e elas -  glicínias, asarinas, bignonias ricasolianas, jasmins, e um sem mais -, enredadas na fio horizontal por onde se escorre o vento - de infinito verde, azul, a linha - chamavam-lhe cabo de aço revestido. Tanto faz. De novo a dobra do rio, o emaranhado das industrias sem telhado, as heras invasivas, as silvas a encher o espaço, os cheiros do corte, das limalhas, do ferro fundido - a caldeira, a caldeiraria pesada, os tubos mergulhadas nas tinas de decapagem. A espuma a concorrer com o mar, o rio em espera, o olhar de uma menina,

ou mulher?

O que mudara? Reboca_dores, ao largo. Imenso o oceano. E a vontade dos homens.

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...