Sobre mim ...

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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

terça-feira, 15 de junho de 2010

... que chegue rápida.



Na tarde dos olhos dela, os deles. Laços serenos entre
o inox do púcaro,
as bolachas
de água e sal e o guardanapo de papel. Amarelo, Sol …
Um  compromisso com os afectos, apenas.
Sobre a mesa, a espaços no colo, as mãos inquietas, sôfregas de dias novos - pensou. Ou talvez não…
Atirou a primeira acha, rezou que a fogueira pegasse, que as chispas colorissem desmedidas em arco-íris o cinza das paredes, desejou que, pelo menos, se não o profundo da dor, então o sal das lágrimas superficiais de suas vidas, se ustulasse, momentâneo.
Atirou o barro à parede,  assim como quem não quer a coisa. Artesã de lama e fogo,
queria construir um castelo - Almourol no Tejo de suas vidas- tinha medo das ameias, do óleo quente em tempo de guerra, dos fossos da distância (e do escuro) - tinha medo das perdas - onde
os leões, do que se recordava, não defendiam as princesas
“a menina dança???
mas haviam as crenças, as Ordens dos Templários. Divagava em fímbrias margens de aluvião - abraços de Zêzere, dela, vinda, de lá. 

Outras falas,
vozes que o infinito já consumira:
“traga-me uns panitos, umas toalhinhas de chá, umas linhas, uma farpa: faço-lhe as rendas…só quero estar entretida. Entediam-me os dias grandes…Saudades, menina, do meu poiso. Do poial da porta, da pedra  onde m' assentava a arrefecer as ancas achatadas das bilhas. Traga-me uns panitos, que lhos faço  de gosto."
O lugar vazio, memórias …

Ou quando, ela, em desafinação, afinada no diapasão das emoções, se atrevia e lhe trauteava, na rama do olhar, entre a carne que cortava, e o babete que se escapulia no chão, por artes "mágicas", em resposta a um
"ao que um homem chega ... babetes..."
ah ... caiu .... azaretes, meu amigo (sorriam, jogo dúplice ...); fica sem ele ... e logo:
escute-me, veja lá se ganho o festival da canção:
Grilo, grilinho, bichicho da seda … bebemos água? … não tem sede? ... tem de ter … a água faz bem à pele … Grilo, grilinho…
E ele, sorrisos escancarado à lembrança - o seu nome “Grilo“, o seu espaço,
chegou a conhecer a minha horta, menina? Tinha lá de tudo, da batata ao feijão verde, não faltava nada… um mimo, um mimo. Nunca mais lá fui, ainda existe, o meu filho há-de ter deixado secar tudo… Existe, com viço, menina?
O olhar em súplica…
Que sim. Abanava a cabeça, afirmativa, mas não sabia, não tinha sequer pálida ideia … iludia a  viagem na viagem que, adivinhava, franca e breve…
    O sofá vazio, a bilha, a horta, as pontilhas de renda, as farpas na lembrança, o ancinho, a água por dentro dela a abrir caminho, 

Um gole de café e a acha, na fogueira da amizade partilhada, despojada de si, 
na prosa retomada,

...E se, assim de repente, eu fosse, digamos, por exemplo, mágica? uma fada, e vos pudesse realizar uma vontade antiga, um anseio, que me pediriam?
Inquinado nas mãos, o espanto, e estas - mãos enroladas, aos pares, contorcionistas em regressos impossíveis, uma sobre a outra  - tão trémulas, 

Sem pausas, uma nova acha sem rodeios,  fogueira rosa pálida e  logo de todas as cores,
...Um só, um só desejo… vai uma bolachinha senhor Válter? Não? … pois faz mal, estaríamos todos - e não só eu, - numa "gulodice interminável". Estas são boas,  sabe,  não perturbam os "diabretes"... Não vai? Bem  assim  sou só eu de boca cheia… e, de boca cheia,  terão de ser os meus amigos a falar …
Coma menina que está magrinha… quase que nem a conheci quando entrou,
Ora, ora, Senhor Válter, nem menina, nem magrinha… temos de ir de novo ver a graduação dos óculos… devem estar desfocados, meu amigo, para além de que está a ser muito benevolente comigo, que menina? Já fui, sim, mas isso foi no século passado… há bués...
...parece a minha bisneta a falar... O riso na tarde dos seus olhos, iluminados na teia familiar, ausente e ela, na  canção que, por vezes, bisneta, neta, ou "nada",  amigos lhe trauteavam   
“A... dos olhos doces…gostava que fosses da cor do limão …”  
Premunição? Por certo.
Seria, no que da sua força dependesse, em mil cores: verde,  amarelo, arco-íris ...assim se desejava representada àqueles a quem se dava. Em sonhos de tardes partilhadas ungida
nas  lágrimas de Válter Saudade. Tardava a resposta. Voltou atrás, reformulou. Pegou nos sorrisos de antes e, subtilmente, insistiu,
...Imaginemos - é um jogo, não mais que isso  - quem dera eu fosse fada, ai é que haveriam de me ver de vassoura a viajar por  essa Lezíria; eu que nem gosto de conduzir,não teria tempo para respirar. Uma poupança só, viajante ecológica….
Risos francos, serenos… Válter repetia: De vassoura, a menina de vassoura …. ehhh, gostava de a ver...
Fernando anuía: A menina de vassoura, haveria de ter que ver, sim senhor, sim senhor; até o Diacho se ria...
Não me façam rir, amigos, que me engasgo … as bolachas são muito espessas para as minhas “goelas de passarinho” … 
E diz que não tenho razão: nem consegue comer, tal não vai a magreza, menina. Ora não será melhor uma açorda de unto? De unto basto! Para escorregar ...
Riam juntos. Ela retomava o ponto, o fio da meada:  - imaginemos então, juntos que, por artes mágicas,  posso realizar um sonho, um sonho antigo… ir ver um teatro, ir à revista, aos  toiros, às esperas do Colete Encarnado, à sardinha assada… andar na montanha russa, ir a uma coutada em Espanha, para uma porta (o meu pai delirava…)
Valha-me Deus, menina, com respeito da palavra, mas vocemessê variou? variou da tolinha? tenho lá pernas para tais caçadas e touradas? … daqui ninguém me tira, e vontades, confesso, só que ela chegue … e que venha depressa que se faz tarde…
Cruzes, credo, Senhor Válter. Bem vejo que faço aqui muita falta… então isso são conversas para nós? Eu aqui, e o senhor a falar-me que  quer que "ela "chegue? Vou ter ciúmes, meu amigo, então existe outra fada e eu não sabia? …
Um sorriso rasgado à renúncia da vida, um toque na mão que sustém o púcaro, um afago tímido no cabelo,
Benzá Deus, Benzá Deus  … só a menina para me fazer rir hoje. Estou desgostoso com a vida, menina,  é o que é, cansado,  quando a minha Micas se foi  havia  Deus me de ter levado – sem a companheira um homem coxeia, compreende? Deus podia ter trocado, levava-me adiante que eu alumiava-lhe o caminho e havia de estar lá para a receber como no dia em que a tomei ao pai, no sacramento do altar…Era tão linda a minha Micas…
...conhecia-a? Ainda chegou às falas com ela, menina?
Claro que sim, Senhor Válter, claro que sim. Conhecia a D. Micas, era uma senhora delicada, linda  …
Linda menina? Mas havia lá mulher mais linda que a minha Micas? Era a luz dos meus olhos, o calor do meu coração. Uma fada, menina? … uma fada, a minha Micas.
Por isso lhe digo: desejos? Só que ela chegue. E que venha depressa, que chegue rápida, as saudades são maiores a cada hora ..  Um homem não suporta …
Não estava mais. Os olhos além dos vidros, longínquos,  na proximidade dos dela…
Insistiu, ainda, baixinho
...mas aqui existe amizade, companhia, e, se me deixasse, poderia haver … magia...
Não não … não me apoquente com isso, beba o seu café que s’arrefenta…beba. Beba!

    Irredutível. .... a chegada dela, quanto mais  breve, melhor.

Era Inverno. Outro o espaço, outro o tempo.Coalhadas de memória, em que se azedava por dentro... Realidades outras. Absolutas, realistas, 
        os passos apressados, miúdos, trémulos, a ecoar no silêncio de pós almoço. Pé-ante-pé, entre a sala e o quarto, invariavelmente trancado. Naquele dia, por um qualquer esquecimento, distracção, aberto. Um saco de plástico escondido algures e meia dúzia de pertences dentro.
A premunição de novo...
  
         Sem parte de um braço, com dificuldades acrescidas no exercício de rotinas triviais,  e não obstante, quando a companheira de mesa, no seu dizer, “cismou de não comer”, tomou sua a tarefa de a alimentar. Titubeante, oscilava a colher entre o coto e o peito, enquanto, num sorriso doce, rebuscado ao fosso dos leões, num bailado de garças em pontas,
    D. Eunice, tem de se alimentar, ora vamos lá a ver… eu ajudo. Outra, outra mais, minha senhora, abra a boca…
    Ela partiu. Modista de profissão foi fazer mantos para os anjos no céu ,e ele, que encomendara um vagão cheio de fardos de fazendas de primeira fiação, para que ela pudesse fazer o gosto ao dedo em recriação de figurinos franceses, que ele mesmo haveria de mandar vir pela mala-posta,  viu-se mais solitário que a própria solidão. Morrera? Também ela? Então não o ouvira? Tinha de ter comido, tinha que ter feito um esforço - era no lar a sua companhia, a amiga do seu peito - que por esta não esperava, 
       
       Sem sentido, 

O que se passa, meu amigo? Onde vai com esse saco?... Venha comigo, por favor,… chove lá fora…
O soluço roto da garganta, a alma em sangue. A mentira piedosa. A porta de saída fechada à chave: daqui ninguém saí, uma grande responsabilidade.
Dias, meses, anos. Às vezes, escassas vezes,  ao jardim das traseiras – tem Alzeimer; não temos autorização. Dias  santos e feriados, Natais e Carnavais. Iguais como gotas de um lago inquinado. O sofá da sala – aquele e nenhum mais. O quarto, apenas aberto para a noite. O acesso vedado a tudo, agora até ao prato da sua companheira de missão. Esvaziado de propósitos, 
o lugar vazio. Até que chegue um novo residente…
                             Para mim chega!!!
Menina, por quem mais ama, deixe-me sair daqui … quero voltar à minha casa, apanho o táxi, o autocarro … se ligar para o meu estabelecimento o meu moço de recados vem cá a despacho.
Autocarros? …Não passa aqui nenhum, Senhor Vicente …
Passa sim, menina, na Estrada Principal. Não me minta… Deixe-me ir embora,  não quero ficar, um homem tem dignidade…
“Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.”

Conheço esse poema, Sr. Vicente… Álvaro de Campos…não sabia que gostava de poesia.
Fernando Pessoa, esclarece. Fernando Pessoa,
... e as senhoras sabem alguma coisa de mim? Diga lá...
O soluço recortado em dor,  incompreensão de quem, aprisionado, ainda sabe o cheiro das olaias em flor – era nas Olaias o meu armazém. Quem toma conta dele agora? Tenho de ir, menina, mandei vir as fazendas do Norte, chegam a Santa Apolónia por certo amanhã. De Lisboa, sou quem tem a melhor colecção …

Repetia,
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça...

O seu irmão toma conta, Senhor Vicente…
Não pode ser, menina, não lhe dei delegação … Deixe-me ir, pela luz dos meus olhos, lhe digo
      fui sempre um bom pai, um bom chefe de família, temente a Deus e um bom cidadão…
… porque me fizeram prisioneiro aqui?... porquê, porquê? Sinto que, daqui, só num caixão…Menina, menina, tenha compaixão de mim…
...
Senhor Vicente…Eu sei. Sei que é um homem de bem. Por quem é, não sofra assim, abrace-me, e deixe que o abrace... não tenha pejo. Chore se desejar, não se inquiete mais. Um homem também chora, chora porque é Homem.
peço-lhe, por favor, peço-lhe... faça-me um favor: fique comigo, Senhor Vicente; sei que não sou sua filha, mas podemos fazer de conta que sou… não tenho pai... faz-me companhia eu faço-lhe a  si…  vamos para a sala, estão lá os outros, a esta hora já inquietos com estas nossas falas, aqui, como dizem “prantados” a ganhar raízes no corredor… todos gostam de si. Eu gosto muito e sei que também gosta de mim, 

Abrupto, quase grito,

Não, não, não quero gostar… nem de si, nem de mais ninguém.… um dia vai embora. 
Não quero gostar de mais ninguém… quero só, 
quero apenas,
que chegue rápida… que chegue rápida… rápida....

     No junco dos destroços, a visão. Que chegue rápida.  Derradeira hora
 ...

Os lugares vazios, as memórias: 
               Uma mulher, uma técnica,  não chora ... Ou chora? ...

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...