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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Espessa madrugada.



Não tinha mapas enológicos mas sabia de cada cepa a sua uva. Conhecia-lhes a casta pelo olfacto anterior às parras e ao bagar dos  frutos. Do pedúnculo, sabia as farpas, que se enastravam na lenha do tronco. Quando por ali passava, não raras vezes, se entretinha em prosas estranhas. Com as cepas, bem se diga. Certa amanhã, uma delas confessou-lhe um segredo: desejava ir ver o mar. Dali de onde se plantara, só o rio serpenteava as margens. Prometeu-lhe que um dia a havia de levar. Não era mulher de faltar ao prometido.

No entretanto, futurou-se: do suco, adivinhava o mosto, a bica aberta, o doce que haveria de fazer quando em fermentação lhe botasse dentro nozes, frutas passas e avelãs.  Depois, não se pouparia a esforços, haveria de enovelar  o preparado à força de seus braços, lentamente, por horas a fio, até que ponto se desse por certo na ressonância borbulhada do carpo e da calda. O cheiro vitivinícola já lhe embargava a fala, só de o imaginar, tomando-lhe todos os seus espaços.

Em levitação de espera e nos últimos tempos, enquanto não era tempo das colheitas, tinha-se dedicado à arte estranha de porfiar silêncios, que cultivava. Tornara-se nómada, recordando  Leibnitz, mais alma que matéria, substanciando-se simples, campesina, impenetrável a quanto neste mundo existe de ostentatório e, de alguma forma, distante e  incorruptível. Dizia-lhe muitas vezes, quando a acompanhava,  que apenas  se sujeitava a evoluções, nem sempre satisfatórias, de desenvolvimento  intelectual…

Na sombra das videiras sem luz - como as palavras -, antes, quando alvorava, ainda o galo não cantava,  tomava-se de forças em tina enferrujada, água em que se desenxovalhava, e, como quem não quer a coisa, bebia o orgulho, comia a papa rançosa por onde, formiga de asa,   voara.
Acautelada em não acordar a própria sombra, abria a porta.

Não necessitava de o chamar. Ele aparecia. Sem palavras, olhavam-se cúmplices, partilhavam memórias. Roçava-lhe a orla da saia.  Farejava-lhe o corpo da noite.
Fingia não gostar.  Olhava-o com aquele olhar de vaga-mundo que a caracterizava,  soprava o tempo por uma cana semi-oca  para que fluísse lento, amparava-se de canastra  de vime ao  lenço antigo, seguia o instinto - teria de ir em busca do sustento.  No bolsa da bata, que sempre lhe cobria sobreposta a blusa alva e a saia de barra, a tesoura de podar.

No rigor das manhãs, descalça, Verónica subia ao monte; a madrugada subida recordava o frio da noite no focinho do cão, estalactite que pingava. Em estado de semi-condensação , tangente à linha de ascensão, o sangue das cepas em  vésperas de si, no tardar da estiva, descia-lhe em reincidência, igual a ontem. 

Subia a encosta, quando, nos socalcos da serra, olhou o rio - ia largo na neblina que se transmontava.  Imaginou-se mergulhada, retornada ao umbigo do Geia. Um sorriso iluminou-lhe o rosto. Um esgar entre o que era e o que gostava de ser - no espelho das águas viu-se luminosa. Lentamente, desabotoou a bata, depois, um a um, os punhos, um a um cada botão da carcela vertical da camisa, os seios em flor arrepiaram-se - a água era uma promessa. Sentiu uma espécie de orgasmo na morte antecipada -, o colchete da saia e esta aos pés… apenas um colote de renda antigo lhe cobria a nudez; desenhou no ar o gesto de despedida sobre o nariz que, pingando em bica,  farejava o perigo…

… acordou na outra margem. Aos poucos retomou a consciência. Tacteou o corpo. Fumegava. A pele era outra. Uma pelagem parda contra a madrugada.

***


“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...