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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Esteiros de rio

Ele sentado numa poltrona de tecido duvidoso. Ela em frente, num banco de plástico, daqueles que se usam em garagens e de fácil arrumo. O Natal ao fundo, a três dias de distância. O cheiro já, nas janelas e nas narinas. E nas vitrinas consumistas de todos os centros comerciais ao redor. E mais ao fundo, para além da ponte, do viaduto, o rio. O rio e os esteiros da sua memória. O cansaço na fala. A fala titubeante, nasalada: um acidente, que, por sorte não o emudecera para sempre. A fala até podia ter perdido, diz-lhe, mas não a capacidade pensante, a raiz do pensamento que essa “…não há machado que corte”. Nem tão pouco o sorriso, a tranquilidade de quem, da vida leva a vida apenas. E o olhar a contornar cada esquina em que os segundos se emudecem, cada minuto dispendido diariamente na hemodiálise. Depois, o cansaço e o Partido. Todos os dias. “... Ainda! Ainda e sempre, camarada … leio o Jornal, aconselho uns e outros e … estou presente. Enquanto possa...”.

E ela, a beber-lhe uma a uma cada palavra. A beber-lhe a alma que desejava perpetuar em si, na narrativa. E ela a suplicar que a memória (a dele) lhe devolvesse cada palavra daquele fim de tarde…

O olhar dele, as mão envoltas uma na outra, a manta sobre os joelhos… “...tanto a contar. Não, não leio muito. Não posso, canso-me. Tenho tantas obras lá em casa, tantas. Que pensei ler quando chegasse à reforma, que pensei “devorar” quando chegasse a esta fase. O quanto nos enganamos, menina. O quanto … "

Um sorriso triste a morder-lhe o rosto. O lamento de quem nunca se lamenta… e, contudo, claramente percebe o escoar dos dias nos ralos do tempo. E as fragilidades do corpo, daquele corpo que

“… nem imagina. A nossa pele - a minha e a dos meus camaradas -, era seda pura”.
Dizendo afaga as mãos, agora encarquilhadas e rugosas
“…seda pura… quando a jorna chegava ao fim, os corpos cansados, exigiam tréguas. O rio ali. Num ápice, escorregávamos os valados, os esteiros de rio, as lamas das margens. Nadávamos como loucos e a brincadeira terminava sempre na argila, na lama. E de novo o banho …seria por isso? Penso que si!… Era a nossa paródia, o momento em que nos esquecíamos de que o amanhã era um novo dia de canseiras e dores. Teria por essa altura os meus onze ou doze anos… a boca do forno esperava a cada dez minutos um braçado de lenha, e os tijolos a ferver esperavam as nossas costas … sim, menina, como pensa que era?… pé descalço em fila indiana, as palmas das mãos viradas para cima, um tijolo frio em cada uma e a espera, o carrego, o equilíbrio para que nada se quebrasse. De quando em vez as orelhas assavam como as dos porcos, era tudo uma questão de equilíbrio, se bem me entende …”

E de novo o olhar a revirar os tijolos do passado, o vermelho do tijolo, o vermelho do sangue. O rubro que lhe haveria de nortear a caminhada a vida inteira, por toda a vida… E de novo as memórias:

“… naquele tempo não havia grandes opções. Estava a cargo de uns tios, os meus pais eram do norte. Vim para estudar. Eles tinham algumas posses. O cargo dos trabalhos foi que sempre fui de espinha direita, daquela estirpe que não leva afronta para casa. O mestre escola só conhecia a lei da reguada, injusta em muitos casos. Um belo dia tocou-me a mim, ou melhor, tocou-lhe a ele. Ele deu as primeiras e eu, então com nove anos e a dias de ir fazer o exame da 4ª e a admissão, dei as seguintes… É como lhe conto. Virei-me a ele. Pontapé de “três em pipa”. E a minha escolaridade ficou por ali. O meu tio chamado à escola, eu quase a ir para uma casa de correcção … Sobrou o Telhal. O que Alhandra tinha para oferecer a quem, como eu, não aceitava as regras dos que as não conheciam: as do respeito e da dignidade da pessoa humana… Confesso que nunca pensei suportar a dureza do trabalho. Mas um homem suporta bem mais do que aquilo que se possa porventura imaginar. E, em especial, como no caso, quando é a sua dignidade, a verticalidade, que está em causa. Era uma rapazote, sim, mas esta massa já me estava nas temperas. E, se tinha de ser assim, assim seria. Cheguei a posto de chefia. Tinha capacidade, tinha audácia. E vontade de zelar pelos camaradas mais fracos… Depois a tropa. Foi ai que fiz a quarta classe. Na tropa… Aprendi uma profissão. Andei para ser preso…. O resto a menina já sabe. Diversas vezes me propuseram ser funcionário do Partido. Nunca aceitei. Fiz parte de tudo, ainda faço. Mas ser funcionário exigia o abandono do ofício e, isso, nunca desejei. No terreno se luta pelos nossos valores. É por dentro que a revolução se faz… Claro que tem de haver quem coordene do alto, mas esse não era o meu lugar. O meu lugar era e é, aqui. Na família - onde me vê -, na concelhia, na distrital … mas não em lugares de pódio. Sou um simples trabalhador das bases, menina …”

A noite a cair lá fora e eles, os dois, como se nada ao redor importasse… viajantes de um tempo de memórias, de lutas, de clandestinidades… do que os aproximava. Dos livros que ele pensara ler, dos que ela desejava um dia ler. Dos valores, das humanidades... Do sangue das papoilas, do vermelho das Lezírias vestidas nos tons de Agosto. E dos frios dias do Inverno da vida. E do Natal, a festa da família.

- Paizinho, está a arrefecer. Aqui tem esta mantinha, deixe que lha coloque nas pernas… quer que traga o aquecedor mais para perto?… Está bem, paizinho?..


Um sorriso rasgado. A gratidão do aconchego em e na família. A juventude dos netos e dos amigos dos netos ali reunidos em dia de aniversário. E alguém que o ouvia e que bebia de si cada palavra, cada verdade que, como um livro leve e interminável, desejava poder guardar…

- Sabe, o meu pai desde que começou com a hemodiálise passa mal. Tem dificuldade em manter o calor do corpo… Já lá vão quase dez anos, mas está óptimo não está? …

Ela a acenar a cabeça que sim... "... por muitos anos esteja, por muitos anos...".
As lágrimas a caldeirarem as palavras sem saltarem...
Esteiros de rio galgavam as distâncias do tempo… Ao fundo as Lezírias e o Natal ali!

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...