Sobre mim ...

A minha foto
Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

terça-feira, 25 de novembro de 2008

"Maria Clara ou a Monalisa"

Um par de olhos pardos desfechou a porta. Tímida encarou quem chegava. Num sorriso entre o afável e o esquivo, franqueou-lhe passagem. Sabia ao que vinha, sabia quem era. Vencido o degrau descendente da soleira, a porta de ferro. Descobria-se a entrada, um espaço acanhado. Uma talvez marquise, um talvez pátio interior, uma talvez casinha de entrada, como é vulgar chamar-se na aldeia. Um misto territorial, um “sei lá” que dava acesso, à esquerda a uma casa de banho construída, concluiu, anos, muitos anos depois da casa propriamente dita. Seguia-se a cozinha. O poial à direita, ao centro a mesa de fórmica verde, pedra de mármore por cima, dois pares de bancos de pernas enferrujadas e assentos quadrangulares. Uma jarra com flores de plástico em vários tons desbotados compunha o espaço.

Sentiu-se invasiva. Estranha ao todo do habitat e, contudo, paradoxalmente confortável.

Os olhos pardos mediam-na de alto a baixo, menos tímidos, mais afáveis. Foi avançando. Mesclados, os cheiros, inundaram-lhe as narinas, oriundos da casa de banho “…desculpe, estava a fazer as minhas necessidades …”; da máquina de lavar roupa que rodava a custo o tambor e se adivinhava cheia, cheia demais. Das traseiras da mesma, donde subia contra os vidros semi-bolorentos uma fumarada de vapor. Trabalhava a mais de setenta graus “…tem de ser… para ficar desinfectado, não é assim?...”; das torradas esturricadas que espreitavam da torradeira de inox dúbio; “… ai valha-me Deus… queimou-se o meu rico pãozinho todo… e como está caro…, valha-me Deus …" e logo de seguida, como se o discurso fosse um contínuo lógico " ...custa-me tanto a obrar, é um martírio, nem com chá lá vai… demorei-me demais que a conta, foi o que foi …"

Dito isto, avançava para a torradeira, sacava duas fatias quase trespassadas de negro, raspava-as para um prato de bordas desbeiçadas numa tentativa inglória de lhes devolver a tez dourada , enquanto balbuciava … “valha-me a santa, valha-me a santa senhora D’Alcamé… hoje só bebo café ao dejejum, tá visto…nem lhe ofereço, claro, não está em condições …”.

Abanou a cabeça, agradeceu a compreensão com um sorriso. Adiantou assunto:
“...está lá dentro. Por aqui Senhora Doutora… o meu Fausto Humberto está lá ao fundo do corredor, pois onde devia de estar?... deitado, sempre deitado… se não se mexe. Só grita por mim todo o santo dia, faz-me a cabeça em água, ai, valha-me a Santa … será que aguento isto muito tempo, será que Deus nosso Senhor me dá forças para esta cruz?...”

Flávia seguia pelo corredor pouco iluminado dois passos atrás da sua interlocutora. À sua direita vários quartos, de luzes apagadas, deixavam escorrer a claridade vinda a nascente dos tapa-luzes semi abertos. Enquanto avançava, espraiava o olhar pelos espaços tentando medir o grau de dependência da família, o grau de conforto e de necessidade. A casa em si, de pinturas meio desvanecidas, parecia-lhe já ter vivido melhores dias. Sem luxos, tinha contudo sinais de que, talvez na década anterior, a família que ali morava vivera de forma desafogada. Mobílias simples, mas de boa madeira, alguns bibelôs de porcelana, rendas por sobre as cómodas e mesas…
“… claro que terá força, D. Cesaltina. Sei que é uma mulher de armas…”
Não a deixou continuar…
“… isso era dantes, Senhora Doutora. Dantes é que não me temia a canseiras nem a coisa nenhuma… antes dos desgostos da vida, dos desgostos dos filhos, do acidente do meu marido … dantes, quando depois de um dia inteiro na máquina de costura ainda vinha a correr fazer um manjar dos deuses para o Fausto, por via dele nunca me botar defeitos… um homem conquista-se pela boca, sabia? O meu Fausto sempre foi homem de comer bem. E modéstia à parte, cozinheira de mão cheia eu sempre fui. Fazia-lhe umas papas de milho como só eu sabia… com um segredo só meu. ...

Sorria. De pardos agora os olhos azuleciam num azul ternurento, algo matreiro … "...comia-me as papas nos miolos era o que era, que matreiro era ele. Matreiro e mulherengo, pois então… e isso ele não perdeu de mão, senhora doutora, naquele estado e não se cala… ai se soube-se, se a senhora soube-se da missa metade, haveria de ver que tenho razão. Dou em doida, ó se dou. É uma dor só. Ali, naquele estado e só fala nela….

Flávia não entendia a dimensão do que ouvia. Olhava agora Fausto deitado na sua cama de grades, sobre o colchão anti-escaras. Uma trombose colocara-o em dependência total. Sem controle de fezes e de urinas, sem controle de movimentos. Acamara. Totalmente dependente, nem sequer conseguia alimentar-se sozinho. Portador de Alzeimer, baralhava o discurso e os tempos, repetia-se ou ausentasse por horas a fio. E, quando voltava, não raras vezes lhe assolavam ventos de ternuras, doutros tempos, doutras viagens. Camionista de profissão vira muito alcatrão Europa fora. Bebera em muitas bicas de beira-estrada. Tomara muitos “porres” da vida, como se dizia por ali. Em casa nada faltava. Nem dinheiro, nem sequer atenção aos seus. À sua mulher. Não se gabava das conquistas, isso jamais. Mas que as tinha, tinha… “um homem não é de ferro, sabe, e elas gostavam de lhe dar trela …um belo homem, era o meu Fausto, sim senhor… fechei sempre os olhos, que as tivesse e lhe fizesse bom proveito, mas que nunca as nomeasse na minha presença e olhe, é isso que faz agora. É disso que mais me queixo. Mais do que estar aqui presa vinte e quatro horas por dia, mais do que não ser senhora de fazer nada fora de portas – tenho de o tratar, pois claro -, mais do que tudo, sabe, mais do que tudo, o que me custa, o que mói é esta lamuria dele sempre a chamar por ela … sempre. Chega a chorar por ela o meu Fausto.”

Ia anotando mentalmente o que via. O que ouvia. Tentava avaliar do estado psíquico daquela mulher. Até onde tudo aquilo não passaria de alucinação. Sabia que em certos casos o Alzeimer baralha, confunde. Mas também sabia que, se baralha o presente, o passado é o que se esquece mais tardiamente… por quem chamava então Fausto? Por quem delirava? Sentia agora frio. Um frio incómodo, como que uma mão de gelo sobre o sol da manhã. Temia a verdade. Que verdade?...

A resposta, como que predestinada, chegou naquele instante, pela voz do doente. O olhar ausente fixava-se num quadro com a Monalisa, uma estampa já descorada como todo o resto. De grandes dimensões, enfeitava a parede em frente à cabeceira do doente. Era ali que o seu olhar repousava… Duas lágrimas escorriam-lhe avultadas as faces magras.
“… Maria Clara, Maria Clara, meu amorzinho, vem cá. Vem dar beijinho ao teu Fausto, que chega tão cansado… Maria Clara, Maria Clara, onde estás? Estás a rir de mim, Maria Clara? E não sais dai? E não me abraças Maria Clara? Não me abraças? Tanto caminho que fiz até aqui só a pensar em ti… Maria Clara, sou eu, Maria Clara, pois tu não vês?, não me vês? … ai, Maria Clara, como me deixas triste. Olha para mim Maria Clara, meu amor, meu amorzinho… sou a Fausto, o teu namoradinho, bem sabes … ai, Maria Clara…”...

Na dor da perda continuada debatia-se em busca de movimento num corpo que não lhe obedecia. Flávia olhava Cesaltina que chorava de mansinho. Abraçava-a, afagava-lhe o cabelo grisalho. Não encontrava palavras. Não sabia que dizer, em rigor.
“… D. Cesaltina, não valorize. O seu marido está a falar com um quadro, não com uma pessoa…”

“… não me diga nada, Doutora. Ele ainda a guarda, sabe? Do meu nome já quase esqueceu e do dela? Ela, a Maria Clara, ela (nem sei quem é), é que dorme com ele, é com ela que ele sonha. É com ela que morrerá, tenho um pressentimento … e, sabe, isso é que me doí. Afinal, que importa uma vida inteira de desvelos se para ele só existe um ser? Se nem me reconhece mais… chama por mim, sim, mas é para o tratar. Que para amar, para falar de amor, a chama e a chora a ela… e, sabe? Apesar disto tudo, gosto dela. Gosto, sim. Porque ela o mantém vivo para mim. Ele vive na ilusão que ela um dia sai do quadro e o abraça. E por isso não aceita a morte …”

Olhava agora os três daquele quarto. “Maria Clara” continuava enigmática a sorrir do alto do seu pedestal. Fausto, exausto pedia água. Cesaltina, molhava-lhe delicadamente os lábios com um algodão embebido “para não se engasgar, depois dou-lhe água… primeiro que se acalme…”. Tudo era silêncio. Tudo era branco e sombra. Sombra e branco...

Por fim, o tambor da máquina, num grande estrondo, entrou em centrifugação “aquela máquina um dia destes dá o berro, ó lá se dá, e ai é o cargo dos trabalhos…”.

Cesaltina fungava, limpava as lágrimas e o pingo do nariz à orla da bata de xadrez e avançava rumo à cozinha.
Enroscada em si, no casulo das suas emoções, Flávia procurava o fio da meada. Ao que viera? Já nem sabia…
“volto amanhã, posso, D. Cesaltina?”
“volte sempre … hoje não consigo falar com a senhora, talvez amanhã. Agora vou estender a roupa, que o sol está duvidoso… ainda chove e a roupa nem seca… volte amanhã, se faz favor …”
Saiu. Já na rua, procurava na paisagem vestígios de Maria Clara. Quem fora em rigor “Maria Clara”? Ao passar ao rés da janela do quarto julgou ouvir de novo os brados de Fausto:
“Maria Clara … Maria Clara, meu amorzinho … que saudades nossas, meu amor …”…

Voltou dias a fio. Falou com Cesaltina, entendeu Cesaltina... "ninguém é de ninguém, D. Cesaltina, sabe?...".
Sim sabia ... Mas ela só fora de Fausto. Só dele ...

***

Fausto foi a enterrar faz tempo. No fundo do cemitério diz quem viu, um vulto de mulher. Um sorriso enigmático. Um ramo de rosas chá. Dizem que Cesaltina num acesso de raiva apunhalou a Monalisa… Dizem! Diz-se tantas coisas …

sábado, 22 de novembro de 2008

Escolhera

Escolhera!

Escolhera não se deixar morrer como boneco empalhado, não se permitir falecer por dentro quando tudo em si falava a linguagem do desejo, da ardência e da volúpia. Quando, ao acordar sentia a tumescência do sexo hirto, e, ao lado, dormia um outro corpo, a sua companheira de uma vida inteira na placidez dos anjos eunucos, assexuados. Sentia na pele a necessidade absoluta de corporização dos seus instintos. Sentia necessidade da partilha, de comunhão de pele e sal. E, contudo, escolhera.

Escolhera …

Amava-a. Não duvidava disso. Não em qualquer instância, em qualquer capítulo da sua pródiga imaginação. Nem sequer ai, duvidava. Amava-a, com a mais inteira certeza, talvez agora como se amava uma criança, que, por indefesa, frágil, se deseja proteger até ao fim. Mas que, porque criança, amamos doutra maneira.

Claro que não fora sempre assim, tempos houvera em que os seus corpos se fundiram na voz da carne, na voz do cio, do gozo e do sobressalto. Tempos em que as noite eram pasto incandescente de loucura e, as manhãs os acordavam sem sequer terem adormecido… Mas isso fora há tanto tempo… tanto tempo… Aos poucos, a rotina do dia a dia, como erva daninha, havia minado os caminhos, o coração já não falava a voz da boca e vice-versa. E o corpo, esse, esqueceu-se de como era amar a carne daquele corpo em braseiros incandescentes. A febre passou. Tudo passa. A paixão passara…

O casamento, lera em algum lado, era uma canga. Um contrato… um contrato social e socialmente necessário. Todavia, os afectos, esses, sabia largamente, não se regulavam por decretos … a lei era outra, era a da química, da matéria pulsante, iónica e ionizante … a propagação das ondas, como a que sentira na noite anterior, quando falara com Marisa, enquanto Constança dormia placidamente na sala ao lado … naquela noite, como em tantas outras, em que a televisão exercia sobre ela o poder de um berço… e o deixava abraços com uma solidão cada vez maior. Física, psicológica, emocional…

Vitoriano olhava agora o tecto e, a luz difusa da realidade, da crua realidade do momento, projectava-lhe o filme da própria vida. Da sua vida. Tão cheia e tão vazia… Sentia o estômago embrulhado no orgânico das suas próprias emoções. Cena a cena, o filme passava, lento.

Outros corpos, outras camas… outras mulheres que amara e que guardava, eram já memórias difusas. Chamas que lhe afagavam a pele ainda. E que a incendiavam no rubro da amência. Amantes …

Em certas alturas, confundia-lhes os gestos, os afectos, mistura-lhes os atributos, as formas, os modos de e como amara, a cada uma. E como fora amado. Noutras, não tinha absoluta certeza se as possuíra de facto ou efectivamente, as possuíra só em sua mente. Acolhia-as, de qualquer forma, no mais secreto de si. E, desta espécie híbrida, biblioteca babilónica de memórias, alimentava o seu presente.

Escolhera. Escolhera permanecer com Constança, a esposa que um dia aceitara em altar, com quem gerara filhos. Com quem dividira uma vida. E, contudo, a escolha era uma espécie de pau de dois bicos. Por um lado, a estabilidade, o sossego, o calor de um lar, de uma família, a garantia de uma companhia a cada final de tarde e, por outro, em especial agora que a aposentadoria chegara, uma canga, uma prisão sem grades, que o impediam de dar um passo sem que dele tivesse de dar contas. Sentia-se algemado dentro de um corpo que exigia, ferozmente, liberdade. Um corpo que, porque livre, não aceitava sequer o BI da sua idade… E uma mente demasiado lúcida para se deixar aprisionar sem rebeldia. O conflito era eminente. Fustigava-lhe a carne, em chicotadas ferozes.

Agora não havia reuniões de negócios, não havia almoços com empresários, não havia as mil razões com que sempre havia justificado as suas ausências, os atrasos. Agora todos os tempos eram tempos de Constança. Do nascer ao fim do dia. De Constança eram também os olhares que o vigiam afincadamente. Do teclado ao telefone… Constança era uma mulher dependente de si. Ao seu absoluto cuidado… (era esse, pressentia, o seu “truque” para o manter cativo. Declarar-se dependente. E, porque a amava, era seu “escravo”… do supermercado ao cabeleireiro... seu motorista, seu acompanhante).

O coração batia-lhe desenfreadamente… A noite de lua cheia trouxera-lhe a voz dos lobos de alcateia. O desejo, a fome de um corpo febril de uma mulher. O enroscar-se nas coxas de uma mulher… o suspiro saciado de um mulher, em orgasmos de si. De ambos. O adormecer no após o acto, de corpos suados e extinguidos. E voar de novo, nas asas do desejo desperto a meio da noite…

Vitoriano queria amar de novo, sonhar de novo, e novamente. Esculpir-se labareda em fogo nos braços duma mulher … Não de uma mulher qualquer… não de uma mulher paga para o “amor”, de todo não, mas daquela por quem agora o adolescente ser que o habitava se sentia perdidamente atraído.

Não, não se diria apaixonado… não diria que a amava (ou talvez sim…), mas, indiscutivelmente, a cada esquina do seu dia, a sua imagem, o seu olhar, a boca e, até o balançar de ancas que nunca vira, eram devaneio, tentação, arrepio de pele, suor frio… calafrio em tibiezas de pernas, de joelhos.

O sexo explodia-lhe agora por sob o pijama de verão. Vitoriano sentia uma lágrima a percorrer-lhe a face… e via-a: a sua infanta … tão mulher e tão criança. Os quase vinte anos de diferença não se constituíam obstáculo. Recordava um livro que lera em tempos em que, tal como entre eles, de idades diferentes, o amante chinês ensinara a sua amada a amar … Vitoriano intuirá desde o primeiro instante que Marisa não sabia amar. Que, por detrás daquela imagem de mulher bem sucedida se escondiam fraquezas e fragilidade de afectos. Fossem quais fossem. Haveria de as descobrir, de as desvendar. E, se lhe fosse dada a ventura de a tomar sua…ensiná-la-ia. E reaprenderia ele mesmo tudo de novo.

Cobiçava-a, desejava-a, desde o primeiro dia em que ouvira a sua voz do outro lado da linha. Uma conversa de circunstância, em resultado de um assunto técnico e rotineiro. Fora a cavilha que detonara a bomba. Nele (e queria acreditar que nela, de igual modo).
Desde então, procurava todas as razões para lhe ligar… falavam amiúde, sempre que lhe era possível.

Com a sua aposentação recente, as coisas haviam-se complicado drasticamente. Todavia a semente já estava lançada e, ambos, para além das questões técnicas, encontraram razões para manter contactos … eram amigos, afinal… íntimos já!

Fantasiava cada momento em que a via, em que a tomava, e, num ímpeto de loucura e de paixão, indiferentes à conjuntura, se escorreriam na voz andaluza dos corpos alagados, em lutas de titãs, de espadachins e de cruzados …num corpo a corpo, abraçados. Em que as suas bocas, ávidas, se fundiriam, reconhecidas, em beijos insaciados. Em que as salivas, misturadas, seriam alimento das suas insípidas vidas… as de ambos.

Nesses instantes, incontido, marcava o número da sua “amada” e, como um miúdo enamorado, enviava-lhe mensagens, ora ternurentas, ora mais audazes… e rezava ao senhor dos “naufragados” para não lhe causar problemas. Depois, sorria, reconfortado. Sabia que um dia, num qualquer dia, de que não via a hora, na demora, aquela mulher que escolhera, aquela mulher que ainda nem sequer conhecia, ficaria tatuada na sua pele. Pressentia, que para sempre. Para sempre! Era a sua escolha! Marisa era escolha sua.

De novo lhe vinha a memória cada palavra trocada, cada ternura incendiada no não dito, no sugerido, não proscrito e proibido. Marisa era uma mulher casada. E, tal como ele, vivia uma relação esmaecida. Desbotada em fímbrias de tempo ausente. Todavia, nunca até então passara em sua mente ver-se de novo enamorada… amada, ainda que de uma forma diferente. Marisa não fugira. Aos seus "ataques", não fugira. Ficara. Ficara suspensa da sua voz pausada, da sua sabedoria arrecada ao longo duma vida inteira. Assustada, contudo. Sabia-o senhor de muitas viagens e, porque o sabia …assustava-se. Mas, a cada momento, a cada frugal instante em que as suas vozes se abraçavam em ondas hertzianas, mais se sentia intimamente ligada a um ser que desconhecia. E, ansiava, e esperava expectante, um novo toque, um novo momento. E a espera era-lhe cada dia mais difícil de suportar. Não se entendia. Não se conhecia nem reconhecia a actriz em que se estava a tornar. Num palco da sua própria vida.

Introspectivamente, admitia o enlevo, o fascínio que sentia. E, estranhamente, não se coibia de o sentir. Como se não houvessem razões, normativas ou sociais, que a pudessem julgar. Apenas respondia ao seu coração e, esse, desejava dar a Vitoriano ternura, afecto e, acima de tudo, paixão … a paixão que sentia no calor de sua voz. E da qual, ele lhe falava sem pudor. Sim, desejava-a. Amava-a, dizia-lhe, vezes sem fim …

Marisa sorria, desmistificava, tentava que não se envolver, não o envolver. Colocava ponderadores nas palavras...Tentava, a algum custo, colocar água numa fogueira que, cada dia mais, ameaçava incendiar os astros mais distantes … Da terra ao cume do universo.

Temia sofrer, mas, particularmente, temia que Vitoriano sofresse. E, não obstante, sentia que, também ela o escolhera. Escolhera-o para que ele, e só ele, a conduzisse a ela mesma. Ao que não sabia de si, ao que nem sequer suspeitava … e, a passinhos cautelosos, sentia-se guiada. E ousava. Desafiava o destino e era leve em suas mãos… fosse o que fosse que o vocábulo "destino" significasse.

No canto do cisne, como ele mesmo lhe dizia, dar-lhe-ia de si, o melhor presente - dar-lhe ia o mar, o mar que o inundava em vagas de desejo, dar-lhe-ia a serra, a serra donde um dia viera, dar-lhe-ia a criança que ainda guardava dentro de si, na pureza de um coração que se não aquietava... dar-lhe-ia o sonho... - e ela, na sua ingenuidade, acreditava que, ele, o “sarraceno infiel”, a amaria (e)ternamente …

Escolhera.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Chamemos-lhe Paula.

Chamemos-lhe Paula. Sentei-me à sua frente na sala de refeições da Instituição. Hora de pequeno-almoço. Hora de “descanso do guerreiro”, hora para quem, tendo iniciado a jornada muitas horas antes, nas labutas caseiras em sua própria casa, a continuava ali, na prestação de cuidados formais a idosos.

Sentei-me à sua frente, não sem antes ter enchido, para mim própria, uma chávena de vidro de café e colocado dois mini-croissant, ainda mornos, num pires - dos mesmos que havia sido servido aos idosos, minutos antes. Estávamos sós.

Paula molhava o pão numa chávena de leite com café (mais leite que café, como me referiu … “não posso abusar do café”) . A falta de intimidade entre nós, “obrigou” a que se justificasse:
- Não me leve a mal comer assim … é como me sabe bem…
Sorria, num sorriso entre o desafio e a retracção. Decidi usar o tempo e o assunto para o diálogo – afinal a formação não se faz somente em sala e disso faço gala em ser peremptória. A formação é um contínuo entre o que nós, formadores, somos no dia a dia, o modus operandi como nos vamos revelando, como nos projectamos em espelho no quotidiano institucional, os conteúdos formais transmitidos em sala e, não menos importante, a formação que passa através dos diálogos informais, como aquele que ali nascia …
- De todo não, Paula. O modo como cada um aprecia a comida, desde que circunscrito às regras básicas de higiene, não me ofende, não me incomoda. Se gosta de molhar o pão no leite, sinta-se à vontade …

Olhou-me de frente. Olhou-me nos olhos, como que adivinhando que, se aquilo eu não questionava, alguma coisa lhe iria dizer. Não se enganou. Continuei.
- … na verdade, Paula, o que me incomoda são outro tipo de comportamentos (a Paula sabe do que falo), aqueles que, embora não os tenha feito por mal, não acrescentam bem estar aos que nos rodeiam …
- naquele dia estava enervada, Doutora, descontrolada. Mas já passou. Sou assim, o que tenho para dizer, digo. dito …
- não Paula, não pode ser, a Paula sabe disso. Existem momentos que são sagrados, aqui como ali, que é como quem diz, aqui nesta casa, como na sua casa, por exemplo. A hora das refeições, é disto exemplo, deve ser calma. Tem que ser calma. Isso não impede que possamos falar e, porventura, até não concordar… mas nunca devemos perder a noção de que, se estamos a trabalhar com pessoas – no caso idosos -, as nossas angústias passam para eles, e que estes, não sabendo a origem da discussão – como aquela entre si e a sua colega, no outro dia - e, não podendo intervir para apaziguar, ficam tensos e incomodados.
Afinal, Paula, todas vós sois a família de cada um deles. A que têm “mais à mão”. Aquela com quem convivem no dia a dia e, Paula, creia que se preocupam genuinamente connosco. Digo connosco porque os oiço a falar de mim: se me atraso na hora de saída e vou conduzir de noite, se, aos olhos deles, estou triste ou doente … tudo captam e tudo os preocupa. Dai que nos caiba a nós minimizar estas preocupações em suas vidas. Sublinho: somos a sua família afectiva, certo?...

Paula olhava-me com atenção. Sim, tinha razão, devíamos ter atenção ao modo como agiamos, mas essa de ser “família” é que não…
- Nunca colocaria os meus pais numa casa destas… e já disse aos meus filhos: - "se me colocarem num lar, mato-me". Um lar é o fim de tudo, de tudo … Jamais…

Desarmada com aquela súbita revelação tentei perceber o que me estava a ser dito. Então alguém que trabalhava com idosos, não desejava nem para si nem para os seus, a institucionalização, em caso algum? Não acreditava no processo? Não acreditava no quão de bom podem ser para alguém, o constante acompanhamento, os cuidados especializados? A medicamentação a horas, o asseio, o desvelo? Ou, no fundo da questão estavam valores ancestrais da família em que, o nascer e o morrer, eram actos íntimos e em que a cadeia de solidariedades começa e acaba umbilicalmente?...

Indaguei razões:
- Porquê Paula, que vê de mal numa casa como esta? Se aqui trabalha ...
- Trabalho e até gosto de aqui trabalhar... Tudo. Nem que não durma ou não coma todos os dias! A mim é que cabe cuidar de meus pais, como eles cuidaram de mim e eu cuido dos meus filhos. Sempre assim foi na sociedade, não foi Doutora? Isto são modernizes das gentes que só olham para o dinheiro, modernizes de sociedades consumistas, como dizem na televisão … só fui/vim trabalhar quando os meus filhos foram para a escola – trabalhava em casa; poupava o mais que podia. Não tinham três camisolas, tinham duas. Trocavam e eu lavava e andavam sempre limpos. A questão é que tinham a mãe por perto, tinham quem os tratasse quando adoeciam… a Doutora tratou os seus? E dos seus paizinhos, desculpe, tratou até ao fim? … Não pode, não é?... anda nesta corrida…? E isso, desculpe uma vez mais, traz-lhe felicidade? Mais felicidade? …

Paula sem saber tocava em todos os bastões dos meus sentimentos. Nas memórias mais recentes e noutras mais antigas de tempos em que, com lágrimas nos olhos, deixava meus filhos nos infantários e partia à luta … e quando voltava, tardiamente, os encontrava tantas vezes já só com uma auxiliar … Por quem corria? Por eles ou por mim? Que buscava em rigor? O bem-estar deles ou a minha realização pessoal?...

Paula continuava a molhar o pão no leite quase no fim. Quanto a mim, devorava o pequeno-almoço sem lhe tomar o gosto sequer. Em minha boca agora o travo amargo das incertezas.

Que sociedade é esta que nós, os técnicos, “defendemos” ou se não defendemos, não questionamos? Na verdade, há muito que se defende a permanência do idoso em meio familiar. Na verdade, qualquer um de nós sabe que, por melhor que seja uma Instituição (e tenho o prazer de estar a colaborar com uma em cuja a componente humana é muitíssimo valorizada), por melhor que seja, dizia, nunca será o ideal. O meio familiar, se possível, será, esse sim, o melhor espaço social e, porque não, emocional, para qualquer um de nós encontrar o dia derradeiro.

E, todavia, são as Paulas semi-analfabetas deste mundo que nos colocam perante cruas e amargas verdades e destas, a de que, em pleno século XXI, não nos educamos a nós mesmos no rigor dos valores. Na pirâmide dos valores ...

Destes, o primordial é sem dúvida, a constituição e manutenção de laços familiares sólidos, estruturantes, permanentes, assentes na disponibilidade, na busca da disponibilidade, para estarmos com os nossos filhos, para partilharmos afincadamente e dedicadamente o crescimento físico e intelectual de nossos filhos, de modo a que estes, uma vez adultos, não sintam eles mesmos dificuldades em nos acolherem o mais possível, dado que, interiorizada a mensagem, só em casos extremos equacionarão romper o tecido dos afectos….
Na verdade a institucionalização de um idoso é sempre a última das soluções. Há mesmo que modificar na base o que de errado encerra procurar fazer deste recurso o meio mais fácil…

Chamemos-lhe Paula. Por mim chamar-lhe-ei o sininho da minha consciência social …

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Lançamento de "No Princípio era o Sol"



___
A todos os amigos que de alguma forma se associaram a este evento (e tantos foram) e que, aqui e ali, divulgam o meu trabalho, um enorme bem-hajam...

Todos nós, os que escrevemos e publicamos gostamos de ser lidos. E, pese embora, muitas e muitas vezes optarmos por quando visitamos um blog não deixar qualquer comentário, o certo é que, se optei por dar este 2º passo no mundo da escrita, a todos vós o devo: As estatísticas, dos vários locais por onde vou passando, são indicadores do vosso carinho.

A mim cabe-me, a cada dia, tentar proporcionar a quem me visita, aqui e ali, momentos de descontracção e de bem estar. De emoções? Sim, claro. De reflexão? Sim, claro ...

Mas afinal não é de tudo isto que se faz o mundo?

Mel

domingo, 9 de novembro de 2008

Do lançamento ... agradecendo



Venho reconhecida agradecer a todos quantos me acompanharam no lançamento do meu livro. A todos quantos me dispensaram o seu tempo e o seu carinho no envio de mensagens, na divulgação do lançamento, etc.

Todavia, meus leitores, meus amigos, tal como me disse Xavier Zarco, poeta que me previligia com a sua amizade,

" editar um livro não se esgota na sessão de lançamento.É algo que se alonga no tempo, porque possui vida própria que vai muito além da editora ou do autor", e, existe uma razão de fundo que me faz desejar que a deste em especial, seja longa e muito intensa. Que este Sol se transmute em (Sol)idariedade.
Quem me conhece de mais perto sabe que desde sempre repito o seguinte pensamento, de autor anónimo "se não podes fazer coisas grandes, então fá-las de uma grande maneira". E, a grande maneira que conheço para se estar na vida é não ignorar, não fechar os olhos, é não avançar como se nada fosse.
"Vemos, ouvimos e lemos ... não podemos ignorar".
Porque existe quem de nós necessite, porque sendo pouco (tão pouco, imensamente pouco) pode fazer toda a diferença, porque desejo e luto por uma sociedade inclusa, vos peço ajuda para poder ajudar quem ajuda ...
"Ao adquirir este livro esta a contribuir com 10% do valor de capa para a AIPNE - ASSOCIAÇÃO PARA A A INTEGRAÇÃO DE PESSOAS COM NECESSIDADES ESPECIAIS".
Preço de capa: 12 euros.
Local de Venda: Aqui
Grata.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

"No princípio era o Sol",8 de Nov., Sábado próximo...


Local: Salão Nobre do Paço do Sobralinho
Hora: 16H
Editora: Edium Editores
Com o apoio institucional da CMVFXira e JFSobralinho

Como chegar: A1, sentido Norte, sair em Alverca, tomar a Nacional 10, 1ª localidade à esquerda, sentido Norte (SOBRALINHO).
ou Nacional 10, sentido Norte, entre Alverca e Alhandra/Vila Franca de Xira, 1ª localidade à esquerda (SOBRALINHO).]
***

Meus amigos, aproxima-se o dia em que o meu novo livro nascerá.

Razões maiores me afastaram nas últimas semanas do vosso convívio. A vida, pese embora as perdas - irreparáveis no caso -, segue o seu curso. E eu, como os demais, não tenho mais que fazer que não dar continuidade ao traçado dum percurso. E porque dalguma forma sempre acreditei que o destino nos coloca em ombros a carga que podemos suportar, projecto agora o olhar no dia 08 de Nov. , conforme estava anunciado, na Sessão de Lançamento de "No princípio era o Sol" com a chancela da Edium Editores e que conta com o apoio institucional da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira e da Junta de Freguesia do Sobralinho, como poderão ler em Comunicado de sua Excelência o Senhor Presidente de Junta, e com várias contribuições de amigos afectos a outras artes (dança, canto, declamação ..., etc.)

Sintam-se uma vez mais convidados. A vossa presença é-me muito importante. Afinal, quem escreve gosta de ser lido, tal como quem pinta gosta de ser visto, como um actor gosta de olhar a plateia repleta de gente. Se assim não fosse, a arte, seja qual fosse, não se exporia, ficaria nas catacumbas da escuridão.

Grata pelas manifestações de carinho, pela vossa presença em minha vida. Até breve.

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...