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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

terça-feira, 25 de novembro de 2008

"Maria Clara ou a Monalisa"

Um par de olhos pardos desfechou a porta. Tímida encarou quem chegava. Num sorriso entre o afável e o esquivo, franqueou-lhe passagem. Sabia ao que vinha, sabia quem era. Vencido o degrau descendente da soleira, a porta de ferro. Descobria-se a entrada, um espaço acanhado. Uma talvez marquise, um talvez pátio interior, uma talvez casinha de entrada, como é vulgar chamar-se na aldeia. Um misto territorial, um “sei lá” que dava acesso, à esquerda a uma casa de banho construída, concluiu, anos, muitos anos depois da casa propriamente dita. Seguia-se a cozinha. O poial à direita, ao centro a mesa de fórmica verde, pedra de mármore por cima, dois pares de bancos de pernas enferrujadas e assentos quadrangulares. Uma jarra com flores de plástico em vários tons desbotados compunha o espaço.

Sentiu-se invasiva. Estranha ao todo do habitat e, contudo, paradoxalmente confortável.

Os olhos pardos mediam-na de alto a baixo, menos tímidos, mais afáveis. Foi avançando. Mesclados, os cheiros, inundaram-lhe as narinas, oriundos da casa de banho “…desculpe, estava a fazer as minhas necessidades …”; da máquina de lavar roupa que rodava a custo o tambor e se adivinhava cheia, cheia demais. Das traseiras da mesma, donde subia contra os vidros semi-bolorentos uma fumarada de vapor. Trabalhava a mais de setenta graus “…tem de ser… para ficar desinfectado, não é assim?...”; das torradas esturricadas que espreitavam da torradeira de inox dúbio; “… ai valha-me Deus… queimou-se o meu rico pãozinho todo… e como está caro…, valha-me Deus …" e logo de seguida, como se o discurso fosse um contínuo lógico " ...custa-me tanto a obrar, é um martírio, nem com chá lá vai… demorei-me demais que a conta, foi o que foi …"

Dito isto, avançava para a torradeira, sacava duas fatias quase trespassadas de negro, raspava-as para um prato de bordas desbeiçadas numa tentativa inglória de lhes devolver a tez dourada , enquanto balbuciava … “valha-me a santa, valha-me a santa senhora D’Alcamé… hoje só bebo café ao dejejum, tá visto…nem lhe ofereço, claro, não está em condições …”.

Abanou a cabeça, agradeceu a compreensão com um sorriso. Adiantou assunto:
“...está lá dentro. Por aqui Senhora Doutora… o meu Fausto Humberto está lá ao fundo do corredor, pois onde devia de estar?... deitado, sempre deitado… se não se mexe. Só grita por mim todo o santo dia, faz-me a cabeça em água, ai, valha-me a Santa … será que aguento isto muito tempo, será que Deus nosso Senhor me dá forças para esta cruz?...”

Flávia seguia pelo corredor pouco iluminado dois passos atrás da sua interlocutora. À sua direita vários quartos, de luzes apagadas, deixavam escorrer a claridade vinda a nascente dos tapa-luzes semi abertos. Enquanto avançava, espraiava o olhar pelos espaços tentando medir o grau de dependência da família, o grau de conforto e de necessidade. A casa em si, de pinturas meio desvanecidas, parecia-lhe já ter vivido melhores dias. Sem luxos, tinha contudo sinais de que, talvez na década anterior, a família que ali morava vivera de forma desafogada. Mobílias simples, mas de boa madeira, alguns bibelôs de porcelana, rendas por sobre as cómodas e mesas…
“… claro que terá força, D. Cesaltina. Sei que é uma mulher de armas…”
Não a deixou continuar…
“… isso era dantes, Senhora Doutora. Dantes é que não me temia a canseiras nem a coisa nenhuma… antes dos desgostos da vida, dos desgostos dos filhos, do acidente do meu marido … dantes, quando depois de um dia inteiro na máquina de costura ainda vinha a correr fazer um manjar dos deuses para o Fausto, por via dele nunca me botar defeitos… um homem conquista-se pela boca, sabia? O meu Fausto sempre foi homem de comer bem. E modéstia à parte, cozinheira de mão cheia eu sempre fui. Fazia-lhe umas papas de milho como só eu sabia… com um segredo só meu. ...

Sorria. De pardos agora os olhos azuleciam num azul ternurento, algo matreiro … "...comia-me as papas nos miolos era o que era, que matreiro era ele. Matreiro e mulherengo, pois então… e isso ele não perdeu de mão, senhora doutora, naquele estado e não se cala… ai se soube-se, se a senhora soube-se da missa metade, haveria de ver que tenho razão. Dou em doida, ó se dou. É uma dor só. Ali, naquele estado e só fala nela….

Flávia não entendia a dimensão do que ouvia. Olhava agora Fausto deitado na sua cama de grades, sobre o colchão anti-escaras. Uma trombose colocara-o em dependência total. Sem controle de fezes e de urinas, sem controle de movimentos. Acamara. Totalmente dependente, nem sequer conseguia alimentar-se sozinho. Portador de Alzeimer, baralhava o discurso e os tempos, repetia-se ou ausentasse por horas a fio. E, quando voltava, não raras vezes lhe assolavam ventos de ternuras, doutros tempos, doutras viagens. Camionista de profissão vira muito alcatrão Europa fora. Bebera em muitas bicas de beira-estrada. Tomara muitos “porres” da vida, como se dizia por ali. Em casa nada faltava. Nem dinheiro, nem sequer atenção aos seus. À sua mulher. Não se gabava das conquistas, isso jamais. Mas que as tinha, tinha… “um homem não é de ferro, sabe, e elas gostavam de lhe dar trela …um belo homem, era o meu Fausto, sim senhor… fechei sempre os olhos, que as tivesse e lhe fizesse bom proveito, mas que nunca as nomeasse na minha presença e olhe, é isso que faz agora. É disso que mais me queixo. Mais do que estar aqui presa vinte e quatro horas por dia, mais do que não ser senhora de fazer nada fora de portas – tenho de o tratar, pois claro -, mais do que tudo, sabe, mais do que tudo, o que me custa, o que mói é esta lamuria dele sempre a chamar por ela … sempre. Chega a chorar por ela o meu Fausto.”

Ia anotando mentalmente o que via. O que ouvia. Tentava avaliar do estado psíquico daquela mulher. Até onde tudo aquilo não passaria de alucinação. Sabia que em certos casos o Alzeimer baralha, confunde. Mas também sabia que, se baralha o presente, o passado é o que se esquece mais tardiamente… por quem chamava então Fausto? Por quem delirava? Sentia agora frio. Um frio incómodo, como que uma mão de gelo sobre o sol da manhã. Temia a verdade. Que verdade?...

A resposta, como que predestinada, chegou naquele instante, pela voz do doente. O olhar ausente fixava-se num quadro com a Monalisa, uma estampa já descorada como todo o resto. De grandes dimensões, enfeitava a parede em frente à cabeceira do doente. Era ali que o seu olhar repousava… Duas lágrimas escorriam-lhe avultadas as faces magras.
“… Maria Clara, Maria Clara, meu amorzinho, vem cá. Vem dar beijinho ao teu Fausto, que chega tão cansado… Maria Clara, Maria Clara, onde estás? Estás a rir de mim, Maria Clara? E não sais dai? E não me abraças Maria Clara? Não me abraças? Tanto caminho que fiz até aqui só a pensar em ti… Maria Clara, sou eu, Maria Clara, pois tu não vês?, não me vês? … ai, Maria Clara, como me deixas triste. Olha para mim Maria Clara, meu amor, meu amorzinho… sou a Fausto, o teu namoradinho, bem sabes … ai, Maria Clara…”...

Na dor da perda continuada debatia-se em busca de movimento num corpo que não lhe obedecia. Flávia olhava Cesaltina que chorava de mansinho. Abraçava-a, afagava-lhe o cabelo grisalho. Não encontrava palavras. Não sabia que dizer, em rigor.
“… D. Cesaltina, não valorize. O seu marido está a falar com um quadro, não com uma pessoa…”

“… não me diga nada, Doutora. Ele ainda a guarda, sabe? Do meu nome já quase esqueceu e do dela? Ela, a Maria Clara, ela (nem sei quem é), é que dorme com ele, é com ela que ele sonha. É com ela que morrerá, tenho um pressentimento … e, sabe, isso é que me doí. Afinal, que importa uma vida inteira de desvelos se para ele só existe um ser? Se nem me reconhece mais… chama por mim, sim, mas é para o tratar. Que para amar, para falar de amor, a chama e a chora a ela… e, sabe? Apesar disto tudo, gosto dela. Gosto, sim. Porque ela o mantém vivo para mim. Ele vive na ilusão que ela um dia sai do quadro e o abraça. E por isso não aceita a morte …”

Olhava agora os três daquele quarto. “Maria Clara” continuava enigmática a sorrir do alto do seu pedestal. Fausto, exausto pedia água. Cesaltina, molhava-lhe delicadamente os lábios com um algodão embebido “para não se engasgar, depois dou-lhe água… primeiro que se acalme…”. Tudo era silêncio. Tudo era branco e sombra. Sombra e branco...

Por fim, o tambor da máquina, num grande estrondo, entrou em centrifugação “aquela máquina um dia destes dá o berro, ó lá se dá, e ai é o cargo dos trabalhos…”.

Cesaltina fungava, limpava as lágrimas e o pingo do nariz à orla da bata de xadrez e avançava rumo à cozinha.
Enroscada em si, no casulo das suas emoções, Flávia procurava o fio da meada. Ao que viera? Já nem sabia…
“volto amanhã, posso, D. Cesaltina?”
“volte sempre … hoje não consigo falar com a senhora, talvez amanhã. Agora vou estender a roupa, que o sol está duvidoso… ainda chove e a roupa nem seca… volte amanhã, se faz favor …”
Saiu. Já na rua, procurava na paisagem vestígios de Maria Clara. Quem fora em rigor “Maria Clara”? Ao passar ao rés da janela do quarto julgou ouvir de novo os brados de Fausto:
“Maria Clara … Maria Clara, meu amorzinho … que saudades nossas, meu amor …”…

Voltou dias a fio. Falou com Cesaltina, entendeu Cesaltina... "ninguém é de ninguém, D. Cesaltina, sabe?...".
Sim sabia ... Mas ela só fora de Fausto. Só dele ...

***

Fausto foi a enterrar faz tempo. No fundo do cemitério diz quem viu, um vulto de mulher. Um sorriso enigmático. Um ramo de rosas chá. Dizem que Cesaltina num acesso de raiva apunhalou a Monalisa… Dizem! Diz-se tantas coisas …

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...