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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Chamemos-lhe Paula.

Chamemos-lhe Paula. Sentei-me à sua frente na sala de refeições da Instituição. Hora de pequeno-almoço. Hora de “descanso do guerreiro”, hora para quem, tendo iniciado a jornada muitas horas antes, nas labutas caseiras em sua própria casa, a continuava ali, na prestação de cuidados formais a idosos.

Sentei-me à sua frente, não sem antes ter enchido, para mim própria, uma chávena de vidro de café e colocado dois mini-croissant, ainda mornos, num pires - dos mesmos que havia sido servido aos idosos, minutos antes. Estávamos sós.

Paula molhava o pão numa chávena de leite com café (mais leite que café, como me referiu … “não posso abusar do café”) . A falta de intimidade entre nós, “obrigou” a que se justificasse:
- Não me leve a mal comer assim … é como me sabe bem…
Sorria, num sorriso entre o desafio e a retracção. Decidi usar o tempo e o assunto para o diálogo – afinal a formação não se faz somente em sala e disso faço gala em ser peremptória. A formação é um contínuo entre o que nós, formadores, somos no dia a dia, o modus operandi como nos vamos revelando, como nos projectamos em espelho no quotidiano institucional, os conteúdos formais transmitidos em sala e, não menos importante, a formação que passa através dos diálogos informais, como aquele que ali nascia …
- De todo não, Paula. O modo como cada um aprecia a comida, desde que circunscrito às regras básicas de higiene, não me ofende, não me incomoda. Se gosta de molhar o pão no leite, sinta-se à vontade …

Olhou-me de frente. Olhou-me nos olhos, como que adivinhando que, se aquilo eu não questionava, alguma coisa lhe iria dizer. Não se enganou. Continuei.
- … na verdade, Paula, o que me incomoda são outro tipo de comportamentos (a Paula sabe do que falo), aqueles que, embora não os tenha feito por mal, não acrescentam bem estar aos que nos rodeiam …
- naquele dia estava enervada, Doutora, descontrolada. Mas já passou. Sou assim, o que tenho para dizer, digo. dito …
- não Paula, não pode ser, a Paula sabe disso. Existem momentos que são sagrados, aqui como ali, que é como quem diz, aqui nesta casa, como na sua casa, por exemplo. A hora das refeições, é disto exemplo, deve ser calma. Tem que ser calma. Isso não impede que possamos falar e, porventura, até não concordar… mas nunca devemos perder a noção de que, se estamos a trabalhar com pessoas – no caso idosos -, as nossas angústias passam para eles, e que estes, não sabendo a origem da discussão – como aquela entre si e a sua colega, no outro dia - e, não podendo intervir para apaziguar, ficam tensos e incomodados.
Afinal, Paula, todas vós sois a família de cada um deles. A que têm “mais à mão”. Aquela com quem convivem no dia a dia e, Paula, creia que se preocupam genuinamente connosco. Digo connosco porque os oiço a falar de mim: se me atraso na hora de saída e vou conduzir de noite, se, aos olhos deles, estou triste ou doente … tudo captam e tudo os preocupa. Dai que nos caiba a nós minimizar estas preocupações em suas vidas. Sublinho: somos a sua família afectiva, certo?...

Paula olhava-me com atenção. Sim, tinha razão, devíamos ter atenção ao modo como agiamos, mas essa de ser “família” é que não…
- Nunca colocaria os meus pais numa casa destas… e já disse aos meus filhos: - "se me colocarem num lar, mato-me". Um lar é o fim de tudo, de tudo … Jamais…

Desarmada com aquela súbita revelação tentei perceber o que me estava a ser dito. Então alguém que trabalhava com idosos, não desejava nem para si nem para os seus, a institucionalização, em caso algum? Não acreditava no processo? Não acreditava no quão de bom podem ser para alguém, o constante acompanhamento, os cuidados especializados? A medicamentação a horas, o asseio, o desvelo? Ou, no fundo da questão estavam valores ancestrais da família em que, o nascer e o morrer, eram actos íntimos e em que a cadeia de solidariedades começa e acaba umbilicalmente?...

Indaguei razões:
- Porquê Paula, que vê de mal numa casa como esta? Se aqui trabalha ...
- Trabalho e até gosto de aqui trabalhar... Tudo. Nem que não durma ou não coma todos os dias! A mim é que cabe cuidar de meus pais, como eles cuidaram de mim e eu cuido dos meus filhos. Sempre assim foi na sociedade, não foi Doutora? Isto são modernizes das gentes que só olham para o dinheiro, modernizes de sociedades consumistas, como dizem na televisão … só fui/vim trabalhar quando os meus filhos foram para a escola – trabalhava em casa; poupava o mais que podia. Não tinham três camisolas, tinham duas. Trocavam e eu lavava e andavam sempre limpos. A questão é que tinham a mãe por perto, tinham quem os tratasse quando adoeciam… a Doutora tratou os seus? E dos seus paizinhos, desculpe, tratou até ao fim? … Não pode, não é?... anda nesta corrida…? E isso, desculpe uma vez mais, traz-lhe felicidade? Mais felicidade? …

Paula sem saber tocava em todos os bastões dos meus sentimentos. Nas memórias mais recentes e noutras mais antigas de tempos em que, com lágrimas nos olhos, deixava meus filhos nos infantários e partia à luta … e quando voltava, tardiamente, os encontrava tantas vezes já só com uma auxiliar … Por quem corria? Por eles ou por mim? Que buscava em rigor? O bem-estar deles ou a minha realização pessoal?...

Paula continuava a molhar o pão no leite quase no fim. Quanto a mim, devorava o pequeno-almoço sem lhe tomar o gosto sequer. Em minha boca agora o travo amargo das incertezas.

Que sociedade é esta que nós, os técnicos, “defendemos” ou se não defendemos, não questionamos? Na verdade, há muito que se defende a permanência do idoso em meio familiar. Na verdade, qualquer um de nós sabe que, por melhor que seja uma Instituição (e tenho o prazer de estar a colaborar com uma em cuja a componente humana é muitíssimo valorizada), por melhor que seja, dizia, nunca será o ideal. O meio familiar, se possível, será, esse sim, o melhor espaço social e, porque não, emocional, para qualquer um de nós encontrar o dia derradeiro.

E, todavia, são as Paulas semi-analfabetas deste mundo que nos colocam perante cruas e amargas verdades e destas, a de que, em pleno século XXI, não nos educamos a nós mesmos no rigor dos valores. Na pirâmide dos valores ...

Destes, o primordial é sem dúvida, a constituição e manutenção de laços familiares sólidos, estruturantes, permanentes, assentes na disponibilidade, na busca da disponibilidade, para estarmos com os nossos filhos, para partilharmos afincadamente e dedicadamente o crescimento físico e intelectual de nossos filhos, de modo a que estes, uma vez adultos, não sintam eles mesmos dificuldades em nos acolherem o mais possível, dado que, interiorizada a mensagem, só em casos extremos equacionarão romper o tecido dos afectos….
Na verdade a institucionalização de um idoso é sempre a última das soluções. Há mesmo que modificar na base o que de errado encerra procurar fazer deste recurso o meio mais fácil…

Chamemos-lhe Paula. Por mim chamar-lhe-ei o sininho da minha consciência social …

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...