Sobre mim ...

A minha foto
Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

"I have a dream..."



"Todas as grandes personagens começaram por ser crianças
mas poucas se recordam disso."
Antoine de Saint-Exaupéry

Eu tenho o sonho ...
de que, neste 2011, todas as "grandes personagens" se recordem de que um dia foram crianças ... e que, a todas as crianças, seja dado sonhar e realizar o sonho de viver em paz.

A minha gratidão àqueles que dão colorido aos meus sonhos - a todos vós um enorme bem-hajam - e aqui, neste vídeo, especialmente, ao meu filho, artista/aluno do Chapitô, e a um seu amigo...

Feliz 2011!!!
Mel

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Chamei-te Salvador.

Que me importa?
Se as tardes purpurinas /E as auroras dali/
Não deram luz às diáfanas cortinas /Do leito onde eu nasci?...


Hoje é o primeiro dia de Inverno. Do Inverno de muitas vidas como a minha, aqui na casa. Da copa já se adivinham os cheiros da canela e da farinha. Chegam mestiços até mim. Resfriou, levantei-me cedo, não há televisão nos quartos, ouvi rádio. A temperatura vai continuar a descer, nevar, talvez, pensei , e, talvez por isso, em busca de um não sei o quê, um atavio, um laço, um espelho, uma memória minha – espécie de agasalho íntimo –, os meus braços agarraram o vazio, em redor do nada em que ficaram palavras por dizer estranguladas na garganta. Encubro os olhos, as mãos postas. Viajo: recordo um frio gélido que acompanhou a tua partida; os teus passos miúdos, adolescentes (a adolescência é um estado de alma, intemporal) no corredor das nossas vidas. Não te vi o rosto, não sei sequer quando fechaste a porta atrás de ti. Na solidão, tentei olhar o Sol de frente, pela fresta aberta da janela poente, a mesma janela por onde tantas vezes vimos juntos o entardecer.
Sustive a respiração e esperei que voltasses, ainda que por um breve instante, para resgatar do vento o abraço que era teu, o abraço que te prometera dar e nunca dera – um abraço para a vida, além da vida, quem sabe?
Mas não, não vieste... os segundos que passaram entre a tua partida e o meu regresso à realidade – uma realidade de onde quero agora partir também – os segundos, dizia, pareceram-me eternidades. Todo o meu ser em busca do teu ser e, entre nós, o mundo! “um mundo com mundos por dentro…”, um mundo em vésperas de ser Natal, um mundo em que as árvores esticavam galhos – ontem como hoje –, e aguardavam que nelas fossem dispostos sonhos e esperanças, sob a forma de bolas, fitas, guloseimas e luzes reluzentes.
Os meus braços, em forma de galhos, tombados há minutos (ou há mais de cem anos, que sei eu do tempo?...) erguem-se secos, pedúnculos hirtos, e aguardam, como naquele tempo, que neles deposites, igualmente, sonhos e esperanças, sob a forma de abraços, ternuras e afectos.
E os meus olhos, esses, côncavos e engelhados, feridos desta claridade opaca que nenhuma cortina filtra, e já sem brilho, deixam cair lágrimas atónitas, cadentes. Confesso, correm velozes e já são luzes, formam grinaldas, formam correntes,
e, logo, logo, se iluminam
com um brilho mágico de Natal. Dizem, até: D. Cilinha, pela senhora o tempo não passa, sempre risonha ... sabem lá!!!...
Iluminam-se de um brilho que a todos devolvo, em celebração de ti - porque, na árvore da minha vida, resplandecentes, brilhavam àquele tempo, mais de mil pontos, sempre aos pares, de várias cores, verdes, azuis, verde-jade, verde-escuros, verde-água, azuis marinhos, azuis mais claros, cinzas, castanhos-trigo, castanhos-terra, castanhos-barro, castanhos-oiro, ou talvez não…, e brilhavam, até há momentos (parece que foi há momentos, mas não te posso jurar há quantos séculos, meu amor ...) os teus, de um castanho-negrume profundo, de um negro triste e tão sentido, que, por instantes, todos os outros se desvaneciam para te deixar refulgir, uníssonos. Depois partiste. Estou em dizer que seria um dia como o de hoje, invernoso, atabalhoado, frio...
No tudo mais, que importa? Talvez a evidência lúcida de que a minha árvore de Natal, de mil brilhos, de mil bolas, está agora às escuras, sem o fulgor do teu olhar, sem a chama que alimentava a magia desse e de cada Natal,
sem néctar, sem seiva, sem terra, sem água, sem chão, sem vento... o vento sopra aqui dentro,
(doí-me esta casa de amar)
mil prendas por abrir, mil gestos por desenvolver, foi tudo o que restou junto da árvore apagada, sem brilho e sem calor. Guloseimas, doces de mel e de fel, nuvens e sonhos (tantos sonhos) de Natal - tudo o que desejei para a noite de todas as noites, perdido num só instante, gota a gota, e logo um lago, um rio, um mar, um Oceano, crescendo, desmesurado, sem controle, fronteira ou margem,
cobrindo tudo, num azul-verde de lágrimas e pranto, de perdas e solidão, foi tão-somente o que restou ...
Abro os olhos de levinho, de mansinho, agito os braços, de levinho, de mansinho, e logo, logo, como por magia, a árvore da vida – a Vida é um Dom – te trará de volta,
e os meus braços serão teus braços, os meus olhos serão teus olhos,
tu és a minha luz, o meu calor, tu és o meu chão, o meu ar, a seiva de que me alimento, tu, meu filho, meu pai, meu irmão, meu homem - somatizo tudo, todas as perdas
na palavra solidão ...
“És”... (ou sou eu)?... se tu, para que eu viva, de mim me és,
proximidade,
continuação? tão enorme o espelho da vida…
Não sei mais nada, sabendo que,
quando o Sol poente tombar na janela da minha banal existência, estejas onde estiveres, estarás lá, para me segurar as mãos, me amparar no caminho, nessa viagem onde hoje, mais do que nunca, sei que te encontrarei de novo, numa história interminável, nos tempos dos tempos.
Do tanto que nos une, o que nos separa? Não sei, nunca entendi, e, em boa verdade, acho que não desejo entender, envelheci, a pele enrugou, estou cansada.
Da copa vem mais forte o cheiro a fritos, a chá de menta, há vozes que me apelam,
sorrio a todos, dizem que é Inverno, que hoje foi o Solstício de Inverno. Eu não sei dessas coisas, nem de tantas outras - são liturgias confusas em estrelas de cinco pontas.
Abrevio, na essência: Celebro o teu nome – chamei-te Salvador - e aguardo a tua chegada: Uma estrela caída do mar do meu ventre… (1)

"...Se adormeço tranquilo no teu seio, E perfuma-se a flor /
Que Deus abriu no peito do Poeta, gotejante de amor?"
(Álvares de Azevedo)



(1) existe uma lenda antiga que nos diz que as estrelas do mar são estrelas caídas do firmamento, "filhas" de uma estrela primitiva - a estrela da anunciação...



sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Onde só o vento conseguia ter voz...

Dava-se conta de que a vida inteira a esperara. Não que a tivesse definido na claridade madrugadora dos seus dias iniciais, ou que a tivesse adivinhado líquida nos cântaros de que bebia, mas porque, naquele lugar, em certos momentos tão deserto, onde apenas a voz do vento se fazia ouvir a par de Bach, construíra, profundo, em si, o espaço côncavo para que viesse - agora a aragem estava limpa, as roseiras dispostas aleatoriamente esperavam a poda, as laranjeiras, em carreiras lineares, carregadas de bolas de sol nascente, aguardavam a colheita das suas mãos esguias, o vinho amadurecia em silêncio aconchegado no ventre da casa, frutífero, concentrado, aromático - o seu vinho, com taninos bem marcados, subia suave, noite a dentro, inebriando-o de sonhos e sedas e brocados...
Lá fora, nas brumas do planalto, um mar de verde começava a cobrir os pés das cepas, agasalhando a terra, evitando que endurecessem, em definitivo, com as geadas.
Em certas noites de luar, um rosto de lua cheia pousava tímido na cancela. Depois subia, em espiral, a um lugar distante - a vida era, na verdade, uma espiral contínua. Acendia um cigarro, sentava-se rente à janela, na cadeira predilecta, à fala com os pirilampos, até que, exausto, adormecia. Despertavam-no o canto dos galos, os arrulhos dos pombos, o piar faminto das poedeiras. Sereno, erguia-se, olhava a cancela e, ainda lá, a lua cheia, retrato sépia, a elevar-se vagarosa. No ciclo dos dias,
dentro de si, havia o tempo inteiro. A promessa molhada de um Inverno. E o fogo. O todo. A dádiva. A certeza de que desejava sentir a leveza dos pássaros - os seus passos -, na tijoleira da entrada. Encontrar jarras floridas, o cheiro do amor plasmado nos lençóis a cada madrugada de mãos dadas com o café que ambos, aninhados como gatos, beberiam devagar. Os cães por perto. A comungar de si, sem mais.
Inquietava-se na espera. Uma inquietação de ave livre na liberdade de se acorrentar. Tardava.
Viu-a. Umas calças de ganga, uma camisola de lã. Um casaco, longo, traçado. As mãos despidas, os lábios num sorriso, o cheiro exalado das brumas de Outono - desculpe, estou ligeiramente atrasada...
Abraçou-a. Nunca antes. Nunca a tocara. De estômago a estremecer, olhou-a, lua plasmada no arco dos seus braços. Acolhia-se ao calor daquele abraço, mínima. Sentiu-a. Desejou-a sua, no movimento lento das marés, a acasalar o vento. Desejou-a, de fronte a si, na sua mesa, na sua sala, na sua cama. Desejou-a a reinar nas paredes da casa. Um mar subiu-lhe aos olhos, adolescente. Não tentou neutralizar o efeito, intuiu a causa.
Sem aviso, como se fosse a coisa mais simples, como se fosse convidá-la a sentar, disparou:
Venha viver comigo, as roseiras estão por podar ... são suas todas as rosas....


Imagem da net, retirada daqui

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

a última a morrer.

Não se recorda de mim, Doutora? Atrapalho alguma coisa?...
Apanhada assim, enquanto descia as escadas, por um número desconhecido, mentiu.
Mas que alternativas lhe restavam? Do outro lado a voz, familiar, desenhava a distância num sorriso alargado. Sentiu de imediato o carinho de alguém a quem devia, no mínimo, o reconhecimento do nome. Mas não. A memória, a sua, até então de excelente fisionomista, e não menor reconhecedora de timbres, começava a pregar-lhe repetidas partidas nos espaços brancos das tecnologias ...
Claro que sim, desculpe, estou a ouvi-la mal - respondeu a ganhar tempo.
A Caetana, a administrativa do Lar de "..." ; não me diga que não se lembra de mim, está melhor Doutora, já está de novo a trabalhar? ...estamos todos com saudades suas...
Detestou-se.
A Caetana, pois claro, como vai, minha amiga? e como estão todos, desculpe, na verdade estou a ouvi-la mal - agora melhor-, mas que bom ter ligado, que bom mesmo., Caetana, obrigada. É uma querida, obrigada. Também tenho saudades vossas, mas a vida não me tem permitido visitar-vos, agora o meu destino é o sentido inverso, o sul, mas prometo que, breve, breve, irei ai passar uma tarde convosco... Como estão os nossos idosos? Partiu algum?...
Temeu a resposta. Dizia sempre que a morte era um processo inevitável, que era, não mais que um continuar da vida, ainda que a sós, que...
e, a cada vez que formulava a pergunta, uma dor de parto antes da hora, maturava na língua e já lhe cortava as entranhas,
... pois, isso é que é pior... sim, Doutora, vários... recorda-se do Sr. Afonso, da D. Cândida, da D. Esperança?
a cada nome um rosto, uma história de vida, um sorriso, um registo
memórias suas e partilhadas, memórias que nenhuma nova história apaga.
Sr. Afonso, repetia...
Dª. Candinha ... ai, a D. Candinha ...
Dª. Esperança, a D. Esperança, quase cem anos...

... menina, sabe, fui cozinheira. E das boas. Não me negava ao aprender, do nada, que nada sabia, me fiz daquelas de detrás da orelha.
Fazia o gesto, o sorriso a acompanhar a fala, o corpo redondo cravado à cadeira de rodas, o rosto, expressivo, sem rugas, sem mácula. Os olhos um mar de bonomia.
A esperança de que um dia, num qualquer dia, alguém ainda voltasse a gabar-lhe as suas artes e ela sentisse que a vida tinha ainda um sentido. Além do sentido repetido, nos dias iguais e sucessivos.
Os seus pratos: o seu arroz de sarrabulho, o do dia da matança, o coelho à caçador, o borrego de meia-cria ao sabor da hortelã, as enguias de rio em cama de pimentos marrones, o arroz de tomate com sementes de pimentão, o arroz-doce de casamento, com flor de laranjeira, o doce de dióspiros com abóbora, o puré de castanhas,

... dou-lhe as receitas, quer?... noutros tempos não lhas daria, eram segredo meu... mas agora até lhas dou. anote ai, no seu caderninho: arroz de sarrabulho, escreva ...
fiz tantos banquetes de casamento, menina, os dos filhos dos meus senhores e os dos filhos doa amigos deles, quando me pediam de empréstimo aos senhores (umas santas almas que já lá estão, na terra de Jericó...) e eles, os meus senhores, me cediam por uma semana a fio. Tudo passava por estas mãos...
Mostrava-as, alvas como o trigo, generosas como ela. As palmas viradas aos olhos de quem as quisesse olhar...
... estas, que na água lavava, constante - o asseio é muito bonito, sabe?
Franzia o sobrolho, olhava em torno de si, media o interesse à prosa e, vendo na cabeça dos demais o menear constante, afirmativo, prosseguia:
... tudo passava por estas mãos. Estas que a terra um dia há-de comer...
Logo, num sorriso maior
... mas tem de esperar, a terra tem que esperar, menina. Tem de esperar, porque
a Esperança é a última a morrer...

...
Pela tarde adiante, nas muitas tardes partilhadas - uma adivinha, um adágio, uma cantoria-, por não raras vezes, se repetia. E todos riam salivando a vontade de provar os manjares da D. Esperança.
Se não os fizer aqui, vou fazê-los lá em cima. E sento-os todos comigo à mesa... E nem me diga, a menina Doutora que fazem mal ao Colistrroleee... Nem ao diabretes,
Diabetes, D. Esperança, corrigia, a Senhora sabe que tem que os controlar, senão sobem...
E eu desço-os. Com chá de São Roberto, ora... Ou de alho, que é bom também... enquanto há vida há esperança...
E ria, riamos todos,
Do chá, dos diabetes
... na esperança de que, a esperança fosse sempre, em cada um, a última a morrer...

Caetana, do outro lado, prosseguia: E há ainda o Senhor Maldonado, recorda-se, Doutora? Aquele senhor que sofria de gangrena a quem nós íamos fazer assistência domiciliária... É do seu tempo? ...
...
Esperança... Sempre.


Imagem da net

domingo, 19 de setembro de 2010

...e das sombras se fez luz!

 "durante a Primavera inteira aprendo 
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto 
correr do espaço - e penso que vou dizer algo cheio de razão, 
mas quando a sombra cai da curva sôfrega dos meus lábios, sinto que me faltam,

um girassol, uma pedra, uma ave - qualquer coisa extraordinária."... (Herberto Helder)
.


Poderia falar-te da extemporaneidade  dos afectos, do insolvente resíduo dos silicatos que me mofam os  olhos bolorentos. Poderia falar-te de poemas que invento para que, as palavras germinadas num lugar de mim, desabitada, não me subam como pássaros sem asas a garganta, e me corroam, sem mitigação de si, as silenciosas cordas vocais.
Poderia  ter apostado na afasia; na dialética sempre dúbia dos silêncios;
Poderia falar-te como lhe falei há pouco, da importância da pedra, da calçada portuguesa e, para que ninguém delapide o património cultural, da via romana em lages de terço,  que só eu sei onde, atravessa o horizontal chão que é meu assento. E de que faço residual a eternidade de um momento 
se, "numa eternidade se demorava a pele", do que me lembro...
Sabes, nos sons subtis do vento, nem as amoras moram já, nem a bruma se desvanece no caudal do verbo inconcludente - é sempre noite, na casa do verbo.
Poderia falar-te ainda desta tendinite aguda que, de tantas horas aqui em posição imprópria me faz exausta 
com ímpetos de, contra mim mesma, deferir golpes de espadachim em escarpa
             (e ser apenas lua plasmada nos campos de trigo  sem fazer, em rigor, nada.)

Por vezes adormeço; sonho que semeio girassol na enseada, outras que, entre frinchas de calçada; que me tomas pedra, que sou ave e subo vertical
até à nascente do teu magma, 
que solto infinitos siderais
que mergulhamos juntos as ogivas do silêncio 
e que um arco-íris perfura o tempo
e teço e cirzo 
pontas de laços entre 
o que não existe e que invento em silviculturas sagradas. E  a brida por sobre os ramos  se apascenta sereníssima nas colinas dos meus seios, e o andar da invernia vagueia-me  na curvatura das ancas, e tudo é equilíbrio momentâneo em ponta de faca...
Ou quase tudo,
que,  na hora que rebentam de meus olhos as marés e que o azul recobre o tecido moribundo da areia do Molhe Leste, inesperadamente, acordo.
                        E não sei mais falar de pontes nem destinos; não sei de dunas nem de levante de pássaros. Apenas sou processo reconstrutivo de várzeas   num gesto íngreme de quem do peito expele a mais líquida inocência. E deixo que as areias me enrolem e façam de mim -  pernas, coxas, clavículas, braços e tendões-,  redes utilitárias de pescadores,  quais as que vislumbro rotas e expostas  nos joelhos das varinas a que me junto no cais de embarque  para  que me ensinem a sublimar o vácuo 
na espera de que o sal transborde  e desagúes de  mim,  ritualizado, sabendo da fragilidade em definir o inaudito,  num turbilhão de ciclos sem marés de chegada.
 
                       Olhando a ilha que vejo agora, clara forma, quilha invertida nos mouchões do Mar da Palha, vejo uma flor que resiste. Antroposófica, chego-lhe à fala:  ela, a tal flor, assevera ser verídica a evidência; que nem duvida: jura  ver, no barco negro da tal quilha invertida, proficiência,  barca de alva, luminescência   

...e das sombras se faz luz! Um girassol na calçada e a vida, pé-ante-pé, ousa que passa.

 **
Foto da autora

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

"Querida, ... mudaram-nos a casa"


Vista de longe, a península menor, apensa à outra de que todos sabiam o nome, fervilhava no branco das caravanas tresmalhadas. Ovelhas de um qualquer rebanho em que o pastor adormecera, e, sedentas da maresia, não hesitaram em se pespegarem contra a flora rasteira de armárias que emoldurava a escarpa, abocanhando o horizonte, namorando à descarada o faroleiro que, quando a noite se acoitava para lá do horizonte, em miríades e promessas de luas novas,  se entretinha a enviar-lhes uma espécie de mensagem - código morse, quiçá -  com sinais de luzes estanhadas, contundentes, que as revelava lá. Ali, no dedo peninsular da península, a indicar a Constelação das Três Marias - Orion, o cinturão de Orion, que, segundo a Bíblia, apenas Deus ,e só ele, tem poder de desatar… Para os populares era sem dúvida a provocação. Um dedo a “apontar” Orion? E as verrugas? À falta delas, a comprovar a teoria, sazonais, elas, as tais ovelhas tresmalhadas de que vos fala o narrador.
Quando a nevoaça se anunciava na buza fanfarrónica e estridente,  quase que se evadiam, como se Sebastianinas se tornassem. Mas ela, aprendiza de alquimias e leituras celtas em tábuas de marés,  sabia-as lá, esconsas, dissimuladas, sempre sem data de chegada ou de partida. Sabia-as cortantes à linha de cabotagem quando, pela manhã madrugada, se abeirava da ombreira metálica da janela a farejar o vento,  determinada a enfrentar a nortada. 

Era assim todos os dias. Rosália  trocava o vale de lençóis pelas dunas, trocava a tepidez mansa do lar por um vai-e-vem de velas e cascos, pelos contornos  imaginados das vagas e das  dunas... 

Nómada, naquele dia, como em tantos,  veio-lhe à memória de quando, tal como eles, imaginara iludir a canga das horas marcadas pelos ponteiros rítmicos da cintura industrial, por dinâmicas de liberdade. Haveria um dia de ser livre, dar a volta ao mundo…
Sobre rotas, de casa às costas.
Tão distante o propósito e a mais distante a vontade. A viagem, essa, fazia-se no pleno, sendo outra, muito mais lata que a imaginara, inter-galáctica… Tudo estava, tudo começava e acabava, nela própria. Era “princípio e fim de todas as coisas”, acreditava. E, porque assim, se aventurava.

Naquele dia, como nos anteriores, não as viu de imediato. Mas sabia-as lá, brancas, luzidias, chibas de serranias, em conversas improváveis com corvos marinhos,
Parecia ouvi-las:
Não há quotidiano nem miragem, tudo se esfuma, tudo passa, tudo se esvai, nos ralos invictos da memória, se não se escreve, se não se tecem fios, se, nos dedos abertos, nas falanges e falangetas,  os bilros não rendilham teias, pastilhas, pontos finos - motricidades finas, diria Rosália -  e cadeias de afagos e afectos, e se, dos degraus da escarpa se não faz, a pulso, no cuspo das mãos - lenhadores antigos -  a tábua rasa. Se não se ousa o mergulho em apneia, se … diziam, 
              enquanto ela, Rosália, jurava ouvir  vozes de escárnio, despautérios inverosímeis de  dúvida e espanto, sobre a sanidade mental de quem se detinha, horas e horas  à escuta,  diálogos inolvidáveis de  búzios à conversa com gambuzinos…  Reorganizava a história
e,
                 assim, sem mais, de si a si,
contava:
Eram três, o Moisés, o Zé, o Albino… Todos alinhados como elas. A princípios e futuros e tácitas de quadrado.   Em comum a vontade de ser  o mundo, a sua casa… de fibra, de oleado, de pano fino? Pouco ou quase nada importava.  Uma casa com rodas ou levada em rodas....
O sonho, esse, faria do Verão de 1983 um ano de célebre memória. Na lembrança dos acautelados e dos afoitos. Vamos a factos: 
Achados os mapas, começaram preparativos. A partida anunciada de um qualquer ponto proximal de acesso ao Auto-estrada: A1, rumo ao Sudoeste,  à Costa Vicentina…
A1 ao Sul, ao mais Sul que possível fosse - dentro da pátria, que por cá há muita praia, ó camaradas, 
A1 ao Norte…. E neste último, Melgaço, Valença, Gerês,  praias e serras…  quinze dias a sós, eles,  os dois, ainda sem filhos (não lhes dera Deus tal ventura, não porque ele não se esforçasse...)
“....uma espécie de lua-de-mel  - dizia à boca cheia Albino, para quem o ouvir quisesse -  até a barraca abana, ó pessoal, aquilo é que vai ser, sem limalhas nos olhos e sem cheiro ferro na pele, a minha Ilda quando voltar há-de ir de joelhos pedir à Santa da Boa Viagem, lá em Peniche,  o milagre de repetir para o ano…”.

Na sua pacatez, Mestre José, Zézinho para amigos, começara a obra a que chamaria de “sua menina“, longe ia o tempo,  sem pedir meças a forças,  nem equacionar enganos admissíveis.
Começara então  a preparar “A Viagem” em 1973; certo é que o vinte cinco de Abril lhe alterou os planos. Os camaradas solicitavam os seus saberes, e ele, homem de poucas falas e de desmedidas capacidades, lá dia desenhando, montando e soldando, para uns e outros, atrelados e reboques, portões e portadas, e, da sua "casa de fibra, uma roulotte ao melhor estilo, um orgulho para a classe operária, camaradas”,  a data de se fazer à estrada era, por esta via, democrática adiada sine dia …"É para o ano… "
             ...só não dizia qual.
e, orgulhoso, arrematava,  "um homem não pode pôr-se de franquelos se faz falta a outro, e é o caso…  "

Pai de uma filha moçoila e casadoira, marido extremoso, a ambas prometia que, naquele ano - e nem um mais -, daria por terminada a obra e, os três, na santa graça de Deus, se fariam à estrada, para umas mui merecidas férias. E, claro, desta vez, a Manta Rota não os veria chegar no seu Carocha apenas. E muito menos os veria  armar a barraca de pano - tenda, bem entendido -, ruça de tanto sol, mais ruça que a mula da cooperativa … E, noite adiante, depois de partilhada a janta, ao serão, riam, entre si, antevendo a chegada apoteótica do Carocha com um rabinho de ferro, uma espécie de “pompom” - a bola de engate- , onde a sua obra, construída de raiz, peça a peça, por si, decorada pelas mãos de fada da sua esposa, reluzida nas tranças da filha de formas generosas, haveria de cruzar a Recepção do Parque.
...Vais pagar Parque, ó pá? A malta faz campismo selvagem …
Campismo selvagem? Ó camaradas, acham que sim? E eu deixaria a minha “menina” abandonada na beira da estrada e ia a banhos? Ora, isso está fora de propósito, nem tal me ocorre, sequer à Beatriz, minha esposa…

Por essa altura, Moisés, entre uma medida de tensão e uma pesagem, sempre ia avançando:
        “…bom preço, a minha auto-caravana. Uns amigos deram-me uns ingressos e fui à FIL, à Nauticampo.  Coisa fina, aquilo. Comprei e vou buscá-la de véspera ali a um representante no Campo Grande. Trago-a, e, dia 1 de Agosto, madrugada cedo, não me apanham mais por cá. Hei-de chegar ao Sudoeste ainda não cantaram galos e o belo de um pequeno almoço, esse, hei-de tomá-lo, eu, a mulher e os putos (já marquei encontro com o Mestre Zé), ali para os lados da Marateca, que nesse percurso os “tascos” abrem cedinho…”

" ...dia 1, dizias, camarada? Também sigo nesse dia, mas rumo a norte. Mas a sorte não me abençoa, queres saber da alhada em que se meteu a minha Ilda? Não é que contou à minha sogra que a tenda tem dois quartos e uma sala? E não é que a velha - é boa gente e gosto dela, mas porra, não fazia falta agora -, cismou-se de que, sendo assim, mal não haveria de se fazer  à boleia e acampar com a gente, ó Moisés, isto só daquela cabeça que enviuvou no outro século. Que não empaxa, que não nos há-de pesar, que até contribui com as despesas do “gás-oil“… e, das trepas à minha  Ilda Rosa,  que posso fazer? Ora a velha… E a filha? Que eu sou um depravado, que ando sempre a fisgar o assunto, que quinze dias passam depressa, que a mãezinha é uma santa,  rija como ferro…
Portanto, amigo Moisés, dia 1, seguimos os três, rumo a Melgaço, ao Gerês, a Caminha, mas antes pela costa, pelo litoral, que são paisagens sadias e o frio há-de resfriar-me os ímpetos e as vontades … ou não..."
Riram. 
"…Albino, ora acalma-te lá,  que assim não te posso medir a tensão e ainda te finas no norte e eu é que sou culpado -  afinal sou o enfermeiro da medicina do trabalho… mas não das férias, bem se vê, ai a responsabilidade é de quem as inventou…"
Riram de novo e  Moisés,  naquela tarde,  ainda haveria de, a muitos, entre  pesagens e testes auditivos e  etc's., ir arrolando, a bom grado, e de modo exacerbado,  a capacidade e a qualidade intrínseca da sua novíssima, ainda não estreada, mas já paga a pronto, como  manda a boa educação - antes pagar e depois usar -, auto-caravana,
           “hei-de colocá-la no engate, colocar dentro, de véspera, à noitinha, todas as tralhas . De manhãzinha, madrugada, é só lavar a modos as mãos e a cara  (e as partes, homem, bem se vê …) e dar à chave. Que fosse agora e já seria tarde… Não lhe vejo a hora; de férias a esticar espias e pano, ó camarada,  a malta está farta … fartinha!!! Uma auto-caravana, tem rodas, dá-se ao botão e a casa  salta, além do que, não se fica no chão, a cama é alta…”.

O cheiro da maresia a meias com a industria conserveira, ao lado direito, aguçava a lembrança. E o espanto dos planos, dos detalhes das viagens, contadas de boca em boca. Toda a maralha o sabia e, talvez por isso,

              "…Quebranto, a malta sofreu de quebranto, mau olhado, só isso acho  que lhe dizer, camarada Jordão. Então quer que lhe conte em detalhe  ou já lhe deram fé  de como foi? Línguas de trapo, não sabem guardar recato …
Não se canse, ó amigo Zé, todos sabemos que não foi descuido. Quem mal não faz, mal não cuida, e, acautelado é você, sempre o foi. Zeloso, trabalhador,
Sou, sou sim senhor. Levava pneu sobressalente para a minha “menina”. À Marateca ainda esperei o Moisés, mas ele não me apareceu por lá, para tomarmos o mata-bicho juntos… segui em frente. Amigo não empata amigo… mas fiquei desapontado,
Mas vossemecê não sabe, amigo Zé??? Se mal pergunto,
Não sei? Sei sim senhor, não honrou a palavra, ou adormeceu e saiu já sol alto,  ou perdeu-se do destino…
Não sabe!!! Mas logo lhe conto, avance com o que lhe aconteceu, com a sua versão dos factos…
E lá existe outra? Sou homem de duas palavras? Oiça, por favor,  e não me retenha. O que aconteceu foi que, no meio da Serra, do Caldeirão,  o pneu esquerdo da minha menina não suportou e a carga começou a dar de lado…. Por um pouco não íamos, família e Carocha, agarrados à “menina” pela garganta da serra abaixo. Parámos e, a muito custo, que o material de tanto tempo em espera estava calcinado, lá substituí o pneu. Seguimos viagem e,  cruzes canhoto, não é que numa curva apertada, fui à berma e lá, parecia que colocado a propósito, um ferro retorcido, se cravou como espora, na roda dianteira, desta vez do lado direito? E como resolver agora? A localidade mais próxima, a mais de vinte quilómetros… Discutimos o assunto. Ficariam as mulheres - filha, esposa e “menina”… e eu, claro, faria a estrada.
Mas logo a minha esposa:  - Zézinho, e se te demoras? E se nos molestam, aqui, mulheres  desamparadas? E se…
Decidimos.
Ficaria a “menina” e iríamos nós…mais seguro assim… Fomos, era Domingo e nem vivalma. Nem mecânico, nem oficina, naquela aldeia. Na próxima,  por fim, a roda arranjada. Voltámos à serra,  quase noite, neblina… nevoeiro a bordejar os vultos das figueiras, das amendoeiras…
Era aqui, juro que era aqui… não, era mais à frente, naquela curva… E mais outra, e o nevoeiro a descer…
Era aqui, Beatriz. Eu sei que sim… Vou parar.
E parámos…
No chão, visíveis, os rodados. Quatro rodas, mas uma de trilho desigual, e outros trilhos, talvez de um tractor… E ela, a menina dos meus olhos?
Sumida, qual  a voz de Beatriz,
               “querido, vamos embora… mudaram-nos a casa…” …

Do Moisés? Quer contar-me agora? Adormeceu, foi isso? Ó gente fraca  …

Naquela manhã, a tal, Moisés levantou-se muito antes que o despertador tocasse e fez com que todos, esposa e crianças se levantassem num ápice. Banhos tomados de véspera, roupa aposta ao fundo das camas, um copo de leite aos meninos, que o Zézinho nos espera na Marateca para o mata-bicho, conferido o gás e a água, os estores corridos, e todos à porta da entrada do prédio recém construído, de que eram condóminos, com grossa hipoteca à Caixa… Viviam no R/C e ela, a “outra casa” a tal de rodas, ficara de focinho a cheirar-lhes a porta… “de lá de dentro, hei-de sentir-lhe o cheiro a nova, ó camaradas…”.
Saíram, pois. Um luar de Agosto iluminava claramente a Nacional 10, à beira da qual viviam… O prédio silencioso dormia o sono dos justos. Guilhermina de mãos dadas com o filho menor foi a primeira a sair a ombreira e foram dela as palavras
     “Querido…. mudaram-nos a casaaaaaaaaaa…. “

Um grito rasgou a noite. Uma a uma, todas as janelas se iluminaram emoldurando os rolos das mulheres e as cabeças desgrenhadas, carecas ou  com três pêlos, dos seus anafados maridos… Pitoresco o quadro, a  aguarela; Salvava-se o Policarpo que, Don Juan,  lutava desde novo contra a calvície  precoce ensopando o cabelo com restaurador Rolex,  mas a quem as bexigas doidas tinham feito do rosto uma montanha-russa … Salvava-se a custo, e salvavam-se eles, um casal jovem, a destoar dos demais…na beleza, mas não na "esperteza"...
 Durante dias e dias não se falou de outra coisa, fosse para onde quer que se fosse,
             “querido … mudaram-nos a casa”… O prejuízo, valha-nos Deus, coitados...
e mesmo assim, iam dizendo, entre-dentes:  “descobriram a careca do Moisés” ou seja, “falou de mais … e levaram-lhe a “casa”…
Coisa meditada, premeditada, estudada, não havia dúvida.
"... As paredes têm ouvidos, o calado vence tudo, o segredo a alma do negócio..."
Assim lhe contava Jordão. "Por ser verdade, camarada, por ser a mais pura verdade... não que o esteja a defender de lhe faltar ao encontro,
Zezinho coçava a cabeça, “Home’essa, Home’ssa…”
Irmanado na dor da perda, deixou, finalmente cair uma lágrima, “Home’essa …”

Por essa altura já Albino varrera o litoral nortenho e se adentrava à montanha. Por essa altura já engolira malgas de vinho quente na noite minhota para esquecer a promessa feita à esposa de que lhe daria, por fim, uma lua-de-mel. Afinal a culpa era dela, que, desbocada,  se fora exibir para a mãe dos cómodos que o seu Albino arranjara 
         “dois quartos, senhora minha mãe, uma sala… parece uma casa, já a vi aberta que o meu Albino a abriu na frente de nossa casa… E luz, senhora minha mãe? Parece que um girassol dorme lá dentro… e espaço? Minha mãe, cabem dois colchões de casal, pequenos bem se vê, mas cabem…” 
E o resultado o sabido: uma lua-de-mel a três, a “velha” ao lado, o desejo encolhido e os gemidos apressados quando, pela manhã, D. Gervásia ia fazer as suas necessidades. E nisso Albino era manhoso… Da casa de banho sempre distante o mais possível…
Por essa altura, nos diz o narrador, que o Gerês era “logo ali…” E, nas festas e romarias, D. Gervásia, não se negava a nada. 
Na Serra d'Arga, em Caminha, pediu  a S. João a cura para os quistos, para as verrugas, para a  infertilidade da filha … Pediu ainda, e disso não se confessou, um uma "ajudinha" para arranjar um novo casamento. Garbosos os homens do norte, Benzós Deus, pensava … Afinal ela ainda era nova, os setenta não lhe pesavam. Um pé de dança, bem comida e bem bebida, dormia que nem um anjo sem asas…

Naquela noite não foi assim. Entre vómitos e idas à, sempre longínqua, casa de banho, começou a perder forças… “não tenham cuidados, filhos, que estou bem…”.
Deitou-se. Deitaram-se, por fim. Gervásia impava, impava
      “estou bem, estou bem…
mãezinha, quer que chamemos alguém? por quem filha? Por Deus, passa… passa…Foi das rezas a S. João …, do esforço das rezas..."
O coração palpitava-lhe …
E passou. Deixaram de a ouvir. “a mãezinha sossegou…sossega também, querida… vira-te, meu anjo, vira-te para mim… não, não pode ser… chiu… filha, cansada como estava, a tua mãezinha dorme o sono dos justos… vira-te, amor…

O sol brilhava ténue …”mãezinha, mãezinha, como está a senhora, minha mãe?”…
D. Gervásia não podia responder. Direita como um fuso, com um sorriso maior que a boca, dormia  além da vida…
 Ilda assumou-se ao fecho do quarto da mãezinha. Espreitou, 
“não…, Albino, nãoooooooooo, nãooooooooo..."
Depois o silêncio, por fim, o inarrável veredicto,  
Querida, a mãezinha partiu e está feliz…
Que faremos agora? E logo ele : Levamos-la connosco, regressamos e damos-lhe o chão que é seu…
Como? Está hirta…
Ora, enrolamos-la na tenda, nos quartos, depois a mesa, as cadeiras, um volume só; …irá no tejadilho que dentro não cabe, tão-pouco.
Ela incrédula…E se chamássemos a polícia?
Pagar a um carro funerário?... Mulher e onde tens tu dinheiro?
E ela em lágrimas,
... Ilda, não faças barulho mulher…A mãezinha dorme o sono dos anjos ... Vê como sorri...

Em minutos e antes que o sol abrisse, saíram  tomaram a  A1 de regresso. Sem palavras, semblantes abatidos. O dia ia alto e o estômago não perdoava. Pararam na beira da estrada. Um olho no burro, outro no cigano, que era como quem diz, no carro e na bagagem preciosa. Encontraram no primeiro restaurante um lugar à janela… Nos "entretantos", camiões. A visibilidade do seu bem ocultada. Alimentaram-se o mais rápido que puderam, pagaram num fósforo e num fósforo chegaram ao estacionamento…
“Era aqui, Albino, era aqui… aqui onde está vazio……….nãooooooooooo... nãooooooooo"
A incredulidade, o espanto, o pasmo  desmesurado recortado nos rostos de ambos. O olhar ao redor, a busca. Nãoooooooooooo, não pode ser,
Sem reacção, e, por fim, realizando o sucedido,  ele, atónito,
           “...querida…valha-nos Deus… mudaram-nos a casa, o carro - e, baixo, muito baixo, para que nem o asfalto ouvisse, completou -  ...querida, acho que nos levaram também, a mãezinha …” 
...

                                   Vista de longe, a península menor, apensa à outra de que todos sabiam o nome, fervilhava no branco das caravanas tresmalhadas. Ovelhas de um qualquer rebanho em que o pastor adormecera … 
Fora o caso. O pastor adormecera em todos os destinos destas viagens…

            Senhor, porque não velas pelas tuas ovelhas? E logo Rosália julgou ouvir:
                                       
“o problema foram as rodas, Rosália… rodas são feitas para andar… ”. 

Estúpidos corvos marinhos que assim lhe respondiam …

domingo, 18 de julho de 2010

entrelinhas

Maria Felismina forjava o tempo por dentro dos bigodes da gata andaluza que lhe tinha chegado um dia ao colo vinda de uma vala sem água, por bondade divina.
Parida em pleno Inverno, quiçá fruto incestuoso entre
        uma nuvem carregada e um qualquer chuvisco ácido,
vira, com escassos dias, a vida por um fio. A atestar o risco, ficara-lhe o rabo prensado contra os entulhos que o mar, na maré-cheia, empurrava borda fora, junto com os moliços, ou como a  montante dali diziam,  no emaranho d’ enredos, teias de aranhiços e sargaço.

Ao mar o que era do mar, a terra o que era de terra. Ruvisca, assim se viria a chamar, era da terra. E,  por esta ordem de ideias, ao entulho das margens confinada - haveria  de ser sempre,  entre a chegada e a partida, um risco delgado acossado à  fímbria crua das miragens.

Viu-a. Tremelicava.  Olharam-se,  olhos nos olhos e, nesse preciso instante alcançaram que,  para bem de ambas, haveriam de ser, de hora em diante, ponteiros cartesianos nas deshoras que as habitava. Uma da outra, equação, metáfora, enigma ‘inda e sempre por resolver, mas que, pressentida, em comuns instintos, dava valor à vida - ambas paridas do ventre proceloso das águas, haveriam, juraram sem intitular,  de encontrar a direcção certa de medir vontades sem palavras, de se entregarem a estranhíssimas cumplicidades, para a primeira sempre improváveis, porque, dizia, detestava gatos - na memória celular, trazia de outro tempo, o mapa de quando, Jacomé Lencastre, herdeiro de graças, de títulos e de terras,  lhe aventou em cara o gato Malhaço, que,  sem como se esquivar, enrolado nas grades que a resguardava da queda, mas não do espaço, donde ele agora, coisa manhosa, lhe caia em colo, lhe demarcou,  no ímpeto  das garras a pele fina.
Genérica a memória e abstracta a distância cristalizada entre, o “tal genérico” e o “exacto-particular“: neste  havia o ponto, o azimute,  aquele que distinguia o assunto, límpido, sereno, dando razão ao que,  peremptoriamente, reafirmava:  não gostava de gatos. 
E não se desdizia, quando, aos sete-ventos tal afirmava ,e logo,  sem tirar um milímetro ao anterior, destacava em ênfase, sempre sorrindo:
Mas não de gata aquela, a que, por razões que a razão ignora, se roçava no seu olhar a cada noite madrugada, nessas vésperas tardias de retorno à inocência das coisas, ao sonho pontiagudo capaz de lhe coalhar as mágoas ainda  acesas, lanternas, candeias de  luz, ou, naquelas em que as pálpebras teimavam em gerar cloretos de sódios que, rapidamente, como as unhas emporcalhadas dos gaviões de outra história, voavam planuras sobre a canícula das Lezírias
e  feriam
e geravam,
no felpo manso da vida,  potássios. E ela, Ruvisca (e só ela) meigamente, lhe subia a cadeira, lhe trepava o ombro, lhe minorava o tempo já aguado, a acariciava como ninguém, e, como ninguém, aninhada em si, lhe respeitava a verborreia e os silêncios.

   - assim lhe contou, ditando, para que escrevesse -,

mas também de como, numa dessas noite, lhe jurou ter visto o modo inoperante, desavisado,  do burgesso que vivia a portas meias, adamado com Vitória… E do modo como vestia a pele de Jacomé Lencastre,

   - mentes, Ruvisca, não sabes nem um nico dessa história,

e a outra, de olhos turquesa, de novo roçando a pele na pele e o mar em baixo, lhe segredava de como havia visto, também, e  repetia,
o modo de Baltazar:  cuspia palavras entre dentes, enquanto palitava gengivas negras com as unhas de cotovia por nascer...
 
    - assim, lhe confidenciou, para que registasse -,

Mas também do modo como a olhava - à  Vitória, bem se vê -,  adestrada, fêmea pronta a montar, disponível à hora certa - comia-lhe as entranhas sem lhe sentir o veludo do olhar,  e de como ela se desacostumara, porque sim,  a pronunciar afectos. A bem dizer, da sua boca onde os dentes ainda eram pérolas de um colar completo, apenas lhe saíam, direccionadas à “preta” preciosidades de quilate terno - donde viera, que não se lembrava, mas que importância tinha? E de novo, impulsionava a voz, confidenciava e logo, peremptória, sublinhava para que se duvidas houvesse da sua seriedade: Só a  ela se afeiçoara. A quem? Ora…No mais, vestira o colete do recato de quem, a dar mimo, prefere o arranhado de felinos a texturas travestidas,  camaleão em posse …

Nas entrelinhas metálicas do dia que tombava apenas ele na hora certa -  redondo, metálico, na linha antiga  em desuso,  relógio de estação.  Uma gare de província, onde só passava, rápido, o vento…

Metálico também, abriu-o (vivia apaixonada pelo mecanismo). Tacteou as teclas. Uma bola mundo girava em convulsão; tacteou de novo. Nada a saber: o Sol, que não se regulava pelas suas emoções, era criança que, sentada ao lado – no lado esquerdo de si – teimava em não fazer chegar a merenda à paragem devida, qual aquela que, a descontento da jovem mãe, insistia em ocupar a espera com palavras a galope – a idade dos porquês… Castelos, príncipes e princesas em dorso de cavalos - estórias  a ponto-livre  por onde desembocava o que retivera de mais um dia num qualquer jardim improvável de proximidade. Diziam-lhe que era uma fábrica.
E ao lado, via-a,  uma espécie de fim de linha. De produtos descontinuados, sem préstimo. Insistia que a ser, seria, uma fábrica de fabricar afectos. Ou não?
Ela nem queria saber. Era um lugar de fazer o tempo correr, vazio. Entre a linha-férrea e o rio que a fascinava. Um dia, tão certo quanto o sol nascer a norte de si,  haveria de tomar assento no bucho da carruagem que, anunciada ao microfone, não parava nunca  ao ritmo reticulado de vontades – Inter-cidades, levava o sonho a outras paragens. E os sorrisos…

Maria Felismina, Ruvisca para os amigos - forjava o tempo por dentro do sorriso felino de mulher.



quarta-feira, 7 de julho de 2010

"eu ABRAÇO .... eles ABRAÇO" ... e você???

Em época de limpezas gerais nas nossas habitações, regra geral encontramos mil e uma "inutilidades", gavetas a abarrotar de "isto e mais aquilo" que, por sentimento de posse, e, convenhamos, algum comodismo, vamos encafuando para os fundos - longe dos olhos, longe do coração...

Bom, talvez seja a hora de, para além de nos expormos ao sol de verão, dar luz a quem dela, mais que nós, necessita. Falo de uma Campanha que conta com o total apoio dos CTT's . Este  apoio visa encaminhar, a custo zero,  os bens por nós recolhidos e que, se para nós são "inutilidades", para muitos são a luz ao fundo do túnel. São dezenas as Instituições que recebem e agradecem.  

A Lista está disponível em qualquer posto de CTT. A que me despertou mais atenção e à qual me associei de imediato, recolhendo em minha casa, no escritório (meu e de amigos), os chamados "cabos eléctricos disfuncionais"  de  impressoras, fax,  computadores, etc., etc... foi a ABRAÇO.


Por um cabo, abracei esta causa. E você? Sei que a abraçará também. Bem-haja.  

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Além daquilo que [nos] faz chorar



Além daquilo que faz chorar os poetas, que faz com que 
os soldados se lancem para a frente e percam a vida 
à luz do sol: que será, Bill?

(Carl Sandburg)


Morriam lado a lado como peixes podres com os olhos esbugalhados ao ridículo da questão. Por vezes, quando o Inverno lavrava leivas desapegas na argila lisa, improperando os terrenos à caminhada, impondo tempos de pousio em vésperas de cultivo das novidades, quando o frio antecipava a morte e lhes impregnava a pele no mofo de pregas vincadas - "féleo jugo" de ser pó e ao pó voltar -, davam-se conta, ainda que de forma ténue e nunca verbalizada, de que, dia a dia, esmoreciam de vontades e de futuros em afasias e extemporaneidades. Aí os dedos aproximavam-se aos gestos.

Mas não havia liturgias nem salmos nem oráculos divinos. Tudo era, à luz negrejada pela noite lá fora (e dentro de cada um) uma espécie de função utilitária onde só os corpos fermentavam em leveduras requentadas; os olhares, de baços já não se nutriam de palavras e, dia a dia, morriam. No canto espúrio dos olhos dela, por vezes havia ainda uma luz, centelha fortíssima à força de pedra. Jade onde as lágrimas resilientes nascidas algures numa nascente de serra se retalhavam antes de tombarem largas a eviscerarem, iguais às chuvas torrenciais, o tecido do rosto. No canto espúrio dos olhos dele, no modo inverso, parecia já não haver espaço a manietações gravíticas, inquietações, desideratos sódios ou sequer projectos adocicados.

Em tangência virtual, vendiam-se ao tempo que passa, por dois reis de sobrevivência. Em litologias de anjos barrocos e olhares de peixes mortos.

Dela ainda a esperança de ser Fénix. Além do que fazia chorar os peixes. Vertebrados. 

terça-feira, 15 de junho de 2010

... que chegue rápida.



Na tarde dos olhos dela, os deles. Laços serenos entre
o inox do púcaro,
as bolachas
de água e sal e o guardanapo de papel. Amarelo, Sol …
Um  compromisso com os afectos, apenas.
Sobre a mesa, a espaços no colo, as mãos inquietas, sôfregas de dias novos - pensou. Ou talvez não…
Atirou a primeira acha, rezou que a fogueira pegasse, que as chispas colorissem desmedidas em arco-íris o cinza das paredes, desejou que, pelo menos, se não o profundo da dor, então o sal das lágrimas superficiais de suas vidas, se ustulasse, momentâneo.
Atirou o barro à parede,  assim como quem não quer a coisa. Artesã de lama e fogo,
queria construir um castelo - Almourol no Tejo de suas vidas- tinha medo das ameias, do óleo quente em tempo de guerra, dos fossos da distância (e do escuro) - tinha medo das perdas - onde
os leões, do que se recordava, não defendiam as princesas
“a menina dança???
mas haviam as crenças, as Ordens dos Templários. Divagava em fímbrias margens de aluvião - abraços de Zêzere, dela, vinda, de lá. 

Outras falas,
vozes que o infinito já consumira:
“traga-me uns panitos, umas toalhinhas de chá, umas linhas, uma farpa: faço-lhe as rendas…só quero estar entretida. Entediam-me os dias grandes…Saudades, menina, do meu poiso. Do poial da porta, da pedra  onde m' assentava a arrefecer as ancas achatadas das bilhas. Traga-me uns panitos, que lhos faço  de gosto."
O lugar vazio, memórias …

Ou quando, ela, em desafinação, afinada no diapasão das emoções, se atrevia e lhe trauteava, na rama do olhar, entre a carne que cortava, e o babete que se escapulia no chão, por artes "mágicas", em resposta a um
"ao que um homem chega ... babetes..."
ah ... caiu .... azaretes, meu amigo (sorriam, jogo dúplice ...); fica sem ele ... e logo:
escute-me, veja lá se ganho o festival da canção:
Grilo, grilinho, bichicho da seda … bebemos água? … não tem sede? ... tem de ter … a água faz bem à pele … Grilo, grilinho…
E ele, sorrisos escancarado à lembrança - o seu nome “Grilo“, o seu espaço,
chegou a conhecer a minha horta, menina? Tinha lá de tudo, da batata ao feijão verde, não faltava nada… um mimo, um mimo. Nunca mais lá fui, ainda existe, o meu filho há-de ter deixado secar tudo… Existe, com viço, menina?
O olhar em súplica…
Que sim. Abanava a cabeça, afirmativa, mas não sabia, não tinha sequer pálida ideia … iludia a  viagem na viagem que, adivinhava, franca e breve…
    O sofá vazio, a bilha, a horta, as pontilhas de renda, as farpas na lembrança, o ancinho, a água por dentro dela a abrir caminho, 

Um gole de café e a acha, na fogueira da amizade partilhada, despojada de si, 
na prosa retomada,

...E se, assim de repente, eu fosse, digamos, por exemplo, mágica? uma fada, e vos pudesse realizar uma vontade antiga, um anseio, que me pediriam?
Inquinado nas mãos, o espanto, e estas - mãos enroladas, aos pares, contorcionistas em regressos impossíveis, uma sobre a outra  - tão trémulas, 

Sem pausas, uma nova acha sem rodeios,  fogueira rosa pálida e  logo de todas as cores,
...Um só, um só desejo… vai uma bolachinha senhor Válter? Não? … pois faz mal, estaríamos todos - e não só eu, - numa "gulodice interminável". Estas são boas,  sabe,  não perturbam os "diabretes"... Não vai? Bem  assim  sou só eu de boca cheia… e, de boca cheia,  terão de ser os meus amigos a falar …
Coma menina que está magrinha… quase que nem a conheci quando entrou,
Ora, ora, Senhor Válter, nem menina, nem magrinha… temos de ir de novo ver a graduação dos óculos… devem estar desfocados, meu amigo, para além de que está a ser muito benevolente comigo, que menina? Já fui, sim, mas isso foi no século passado… há bués...
...parece a minha bisneta a falar... O riso na tarde dos seus olhos, iluminados na teia familiar, ausente e ela, na  canção que, por vezes, bisneta, neta, ou "nada",  amigos lhe trauteavam   
“A... dos olhos doces…gostava que fosses da cor do limão …”  
Premunição? Por certo.
Seria, no que da sua força dependesse, em mil cores: verde,  amarelo, arco-íris ...assim se desejava representada àqueles a quem se dava. Em sonhos de tardes partilhadas ungida
nas  lágrimas de Válter Saudade. Tardava a resposta. Voltou atrás, reformulou. Pegou nos sorrisos de antes e, subtilmente, insistiu,
...Imaginemos - é um jogo, não mais que isso  - quem dera eu fosse fada, ai é que haveriam de me ver de vassoura a viajar por  essa Lezíria; eu que nem gosto de conduzir,não teria tempo para respirar. Uma poupança só, viajante ecológica….
Risos francos, serenos… Válter repetia: De vassoura, a menina de vassoura …. ehhh, gostava de a ver...
Fernando anuía: A menina de vassoura, haveria de ter que ver, sim senhor, sim senhor; até o Diacho se ria...
Não me façam rir, amigos, que me engasgo … as bolachas são muito espessas para as minhas “goelas de passarinho” … 
E diz que não tenho razão: nem consegue comer, tal não vai a magreza, menina. Ora não será melhor uma açorda de unto? De unto basto! Para escorregar ...
Riam juntos. Ela retomava o ponto, o fio da meada:  - imaginemos então, juntos que, por artes mágicas,  posso realizar um sonho, um sonho antigo… ir ver um teatro, ir à revista, aos  toiros, às esperas do Colete Encarnado, à sardinha assada… andar na montanha russa, ir a uma coutada em Espanha, para uma porta (o meu pai delirava…)
Valha-me Deus, menina, com respeito da palavra, mas vocemessê variou? variou da tolinha? tenho lá pernas para tais caçadas e touradas? … daqui ninguém me tira, e vontades, confesso, só que ela chegue … e que venha depressa que se faz tarde…
Cruzes, credo, Senhor Válter. Bem vejo que faço aqui muita falta… então isso são conversas para nós? Eu aqui, e o senhor a falar-me que  quer que "ela "chegue? Vou ter ciúmes, meu amigo, então existe outra fada e eu não sabia? …
Um sorriso rasgado à renúncia da vida, um toque na mão que sustém o púcaro, um afago tímido no cabelo,
Benzá Deus, Benzá Deus  … só a menina para me fazer rir hoje. Estou desgostoso com a vida, menina,  é o que é, cansado,  quando a minha Micas se foi  havia  Deus me de ter levado – sem a companheira um homem coxeia, compreende? Deus podia ter trocado, levava-me adiante que eu alumiava-lhe o caminho e havia de estar lá para a receber como no dia em que a tomei ao pai, no sacramento do altar…Era tão linda a minha Micas…
...conhecia-a? Ainda chegou às falas com ela, menina?
Claro que sim, Senhor Válter, claro que sim. Conhecia a D. Micas, era uma senhora delicada, linda  …
Linda menina? Mas havia lá mulher mais linda que a minha Micas? Era a luz dos meus olhos, o calor do meu coração. Uma fada, menina? … uma fada, a minha Micas.
Por isso lhe digo: desejos? Só que ela chegue. E que venha depressa, que chegue rápida, as saudades são maiores a cada hora ..  Um homem não suporta …
Não estava mais. Os olhos além dos vidros, longínquos,  na proximidade dos dela…
Insistiu, ainda, baixinho
...mas aqui existe amizade, companhia, e, se me deixasse, poderia haver … magia...
Não não … não me apoquente com isso, beba o seu café que s’arrefenta…beba. Beba!

    Irredutível. .... a chegada dela, quanto mais  breve, melhor.

Era Inverno. Outro o espaço, outro o tempo.Coalhadas de memória, em que se azedava por dentro... Realidades outras. Absolutas, realistas, 
        os passos apressados, miúdos, trémulos, a ecoar no silêncio de pós almoço. Pé-ante-pé, entre a sala e o quarto, invariavelmente trancado. Naquele dia, por um qualquer esquecimento, distracção, aberto. Um saco de plástico escondido algures e meia dúzia de pertences dentro.
A premunição de novo...
  
         Sem parte de um braço, com dificuldades acrescidas no exercício de rotinas triviais,  e não obstante, quando a companheira de mesa, no seu dizer, “cismou de não comer”, tomou sua a tarefa de a alimentar. Titubeante, oscilava a colher entre o coto e o peito, enquanto, num sorriso doce, rebuscado ao fosso dos leões, num bailado de garças em pontas,
    D. Eunice, tem de se alimentar, ora vamos lá a ver… eu ajudo. Outra, outra mais, minha senhora, abra a boca…
    Ela partiu. Modista de profissão foi fazer mantos para os anjos no céu ,e ele, que encomendara um vagão cheio de fardos de fazendas de primeira fiação, para que ela pudesse fazer o gosto ao dedo em recriação de figurinos franceses, que ele mesmo haveria de mandar vir pela mala-posta,  viu-se mais solitário que a própria solidão. Morrera? Também ela? Então não o ouvira? Tinha de ter comido, tinha que ter feito um esforço - era no lar a sua companhia, a amiga do seu peito - que por esta não esperava, 
       
       Sem sentido, 

O que se passa, meu amigo? Onde vai com esse saco?... Venha comigo, por favor,… chove lá fora…
O soluço roto da garganta, a alma em sangue. A mentira piedosa. A porta de saída fechada à chave: daqui ninguém saí, uma grande responsabilidade.
Dias, meses, anos. Às vezes, escassas vezes,  ao jardim das traseiras – tem Alzeimer; não temos autorização. Dias  santos e feriados, Natais e Carnavais. Iguais como gotas de um lago inquinado. O sofá da sala – aquele e nenhum mais. O quarto, apenas aberto para a noite. O acesso vedado a tudo, agora até ao prato da sua companheira de missão. Esvaziado de propósitos, 
o lugar vazio. Até que chegue um novo residente…
                             Para mim chega!!!
Menina, por quem mais ama, deixe-me sair daqui … quero voltar à minha casa, apanho o táxi, o autocarro … se ligar para o meu estabelecimento o meu moço de recados vem cá a despacho.
Autocarros? …Não passa aqui nenhum, Senhor Vicente …
Passa sim, menina, na Estrada Principal. Não me minta… Deixe-me ir embora,  não quero ficar, um homem tem dignidade…
“Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.”

Conheço esse poema, Sr. Vicente… Álvaro de Campos…não sabia que gostava de poesia.
Fernando Pessoa, esclarece. Fernando Pessoa,
... e as senhoras sabem alguma coisa de mim? Diga lá...
O soluço recortado em dor,  incompreensão de quem, aprisionado, ainda sabe o cheiro das olaias em flor – era nas Olaias o meu armazém. Quem toma conta dele agora? Tenho de ir, menina, mandei vir as fazendas do Norte, chegam a Santa Apolónia por certo amanhã. De Lisboa, sou quem tem a melhor colecção …

Repetia,
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça...

O seu irmão toma conta, Senhor Vicente…
Não pode ser, menina, não lhe dei delegação … Deixe-me ir, pela luz dos meus olhos, lhe digo
      fui sempre um bom pai, um bom chefe de família, temente a Deus e um bom cidadão…
… porque me fizeram prisioneiro aqui?... porquê, porquê? Sinto que, daqui, só num caixão…Menina, menina, tenha compaixão de mim…
...
Senhor Vicente…Eu sei. Sei que é um homem de bem. Por quem é, não sofra assim, abrace-me, e deixe que o abrace... não tenha pejo. Chore se desejar, não se inquiete mais. Um homem também chora, chora porque é Homem.
peço-lhe, por favor, peço-lhe... faça-me um favor: fique comigo, Senhor Vicente; sei que não sou sua filha, mas podemos fazer de conta que sou… não tenho pai... faz-me companhia eu faço-lhe a  si…  vamos para a sala, estão lá os outros, a esta hora já inquietos com estas nossas falas, aqui, como dizem “prantados” a ganhar raízes no corredor… todos gostam de si. Eu gosto muito e sei que também gosta de mim, 

Abrupto, quase grito,

Não, não, não quero gostar… nem de si, nem de mais ninguém.… um dia vai embora. 
Não quero gostar de mais ninguém… quero só, 
quero apenas,
que chegue rápida… que chegue rápida… rápida....

     No junco dos destroços, a visão. Que chegue rápida.  Derradeira hora
 ...

Os lugares vazios, as memórias: 
               Uma mulher, uma técnica,  não chora ... Ou chora? ...

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Espessa madrugada.



Não tinha mapas enológicos mas sabia de cada cepa a sua uva. Conhecia-lhes a casta pelo olfacto anterior às parras e ao bagar dos  frutos. Do pedúnculo, sabia as farpas, que se enastravam na lenha do tronco. Quando por ali passava, não raras vezes, se entretinha em prosas estranhas. Com as cepas, bem se diga. Certa amanhã, uma delas confessou-lhe um segredo: desejava ir ver o mar. Dali de onde se plantara, só o rio serpenteava as margens. Prometeu-lhe que um dia a havia de levar. Não era mulher de faltar ao prometido.

No entretanto, futurou-se: do suco, adivinhava o mosto, a bica aberta, o doce que haveria de fazer quando em fermentação lhe botasse dentro nozes, frutas passas e avelãs.  Depois, não se pouparia a esforços, haveria de enovelar  o preparado à força de seus braços, lentamente, por horas a fio, até que ponto se desse por certo na ressonância borbulhada do carpo e da calda. O cheiro vitivinícola já lhe embargava a fala, só de o imaginar, tomando-lhe todos os seus espaços.

Em levitação de espera e nos últimos tempos, enquanto não era tempo das colheitas, tinha-se dedicado à arte estranha de porfiar silêncios, que cultivava. Tornara-se nómada, recordando  Leibnitz, mais alma que matéria, substanciando-se simples, campesina, impenetrável a quanto neste mundo existe de ostentatório e, de alguma forma, distante e  incorruptível. Dizia-lhe muitas vezes, quando a acompanhava,  que apenas  se sujeitava a evoluções, nem sempre satisfatórias, de desenvolvimento  intelectual…

Na sombra das videiras sem luz - como as palavras -, antes, quando alvorava, ainda o galo não cantava,  tomava-se de forças em tina enferrujada, água em que se desenxovalhava, e, como quem não quer a coisa, bebia o orgulho, comia a papa rançosa por onde, formiga de asa,   voara.
Acautelada em não acordar a própria sombra, abria a porta.

Não necessitava de o chamar. Ele aparecia. Sem palavras, olhavam-se cúmplices, partilhavam memórias. Roçava-lhe a orla da saia.  Farejava-lhe o corpo da noite.
Fingia não gostar.  Olhava-o com aquele olhar de vaga-mundo que a caracterizava,  soprava o tempo por uma cana semi-oca  para que fluísse lento, amparava-se de canastra  de vime ao  lenço antigo, seguia o instinto - teria de ir em busca do sustento.  No bolsa da bata, que sempre lhe cobria sobreposta a blusa alva e a saia de barra, a tesoura de podar.

No rigor das manhãs, descalça, Verónica subia ao monte; a madrugada subida recordava o frio da noite no focinho do cão, estalactite que pingava. Em estado de semi-condensação , tangente à linha de ascensão, o sangue das cepas em  vésperas de si, no tardar da estiva, descia-lhe em reincidência, igual a ontem. 

Subia a encosta, quando, nos socalcos da serra, olhou o rio - ia largo na neblina que se transmontava.  Imaginou-se mergulhada, retornada ao umbigo do Geia. Um sorriso iluminou-lhe o rosto. Um esgar entre o que era e o que gostava de ser - no espelho das águas viu-se luminosa. Lentamente, desabotoou a bata, depois, um a um, os punhos, um a um cada botão da carcela vertical da camisa, os seios em flor arrepiaram-se - a água era uma promessa. Sentiu uma espécie de orgasmo na morte antecipada -, o colchete da saia e esta aos pés… apenas um colote de renda antigo lhe cobria a nudez; desenhou no ar o gesto de despedida sobre o nariz que, pingando em bica,  farejava o perigo…

… acordou na outra margem. Aos poucos retomou a consciência. Tacteou o corpo. Fumegava. A pele era outra. Uma pelagem parda contra a madrugada.

***


sexta-feira, 4 de junho de 2010

os "stocks" de sócrates ...

numa destas tardes, e à conversa com um amigo, discutia o problema de dar ou não dar "nome aos bois" como por aqui, no Ribatejo, é usual ser dito. trocado por miúdos, a expressão quer tão-só dizer, não ter medo das palavras desde que, e sempre, no respeito que cada uma nos merece. 

a título de exemplo, dizia-lhe eu que, a expressão "portador de deficiência" sempre me incomodou, e desde logo porque, vidé dicionário, podemos ler:
portador (ô) -adj. s. m.,adj. s. m.
1. Que ou aquele que conduz ou leva alguma coisa.
2. Encarregado de apresentar algo a alguém.s. m.

tudo dito: aquele que conduz ou leva ... encarregado de apresentar... 
bom, como o SER não fosse mais importante que o que se transporta.

convicta disto, continuo a dizer que "A" ou "B" é deficiente, dando ao termo o valor que as gentes do povo dão quando chamam um idoso de velhote ou velho - no respeito e na dignidade pela pessoa humana. sem paninhos quentes.

vem isto a propósito de que hoje todos os meus sentidos se arrepelaram, todas as minhas fibras de "povo", "excedentária", "descartável" e etc., se rebelaram. 

e, enquanto socióloga do trabalho, com caminho feito junto daqueles que, licenciados (também mestres e até doutores), não encontraram um primeiro emprego - desempregados de inserção -  dos outros que, por razões várias foram conduzidos para o desemprego - muitos deles de longa, eterna-duração -  dos que, continuando desempregados, porque não subsidiados, deixaram de contar para a estatística,  tendo óbvia noção de como as estatísticas do desemprego são trabalhadas, tendo conhecimento de como os apoios sociais são importantes,  estruturantes, imprescindíveis,  no sentido de não conduzir de modo irreversível  cada um deste indivíduos para ciclos de pobreza, muita dela, como sabemos, camuflada por vergonha dos próprios, não consegui ficar indiferente a uma expressão do nosso primeiro ministro, sr. eng. José Sócrates que, no parlamento, no debate quinzenal  e em resposta aos deputados quando confrontado com o facto do governo, do seu governo, não ter honrado a palavra dada por ele próprio nesta matéria e ter suprimido oito medidas importantíssimas de apoio aos desempregados e suas famílias,  argumentou, com, pasme-se, 

                       os stocks dos desempregados inscritos nos centros de emprego estarem a diminuir

stocks, meus senhores...
veja-se:
stock
(palavra inglesa),s. m.
Existência de géneros para venda em depósito, em armazém; fornecimento; sortido. (vidé priberam)
fiquei sem palavras. 

que até agora nos viam como números, sem novidade. que, de ora avante, somos "stocks", excede em muito a minha capacidade de "encaixe".  o eu-político revoltou-se!!!

e, em maior desconforto fiquei por perceber que, de norte a sul das bancadas, em todo o hemiciclo, à esquerda e à direita, esta "inocente expressão" não causou nem "rumores nem murmúrios"...  e lá seguiram para "bingo", um após outro, com as perguntas e respostas semi-estruturadas. fizeram todos o bonito da retórica.

a expressão, vale o que vale. quanto a mim, valeu o registo aqui, como reflexão. e a constatação clara  de que, nem doirar a pílula já importa. 
                                             somos "stock", portanto ... 



Foto: da net

quarta-feira, 2 de junho de 2010

reboca_dores



O que mudara?

Despertara neblina. Apenas os topos das pontes - uma em cada mão, no norte e no sul - esfarrapavam horizontes. As linhas, os postes, a energia transportada.

Olhava o rio, as suas margens, por entre as fímbrias da memória - o verde das searas, o matiz do corte, o gado apascentado; retomava a roupa que pendurava mecanicamente, peça a peça, sempre na lógica descendente, volumétrica, consistente, em gradientes de cores, tamanhos e formas, numa harmonia que mais ninguém via,
que não se utilitava.

Sem utilidade,
retornava ao rio, às margens largas - quase mar dali -, aos braços enredados nos mouchões, ao debulhe do arroz, ao sal subido das marinas, piramidais, às máquinas que, não vendo nítidas, no desfulgor dos olhos que o verbo truculento esvaecia, sabia serem, de forma empírica, dedicadas a
extracção de areia, espaço onde o rio se caudalava, caudilho em baixios. Por vezes engolia avieiros incautos, e, às outras, transporta_dores, aquelas que dias antes, desciam langorosas, pesadas, rio a baixo, derribadas sob resíduos de um paredão antigo,

Quebrado
o rio avançava as margens no canto uníssono dos pardais, dos melros e de demais aves de que desconhecia a identidade. Embalava-se ao rotineiro das tarefas,

retomava o cais, a industria moribunda - gruas paradas na ferrugem dos tempos de águas conspurcadas, lodosas, movediças. Na cor da política e das rosas

Sequer homens
punhos erguidos, palavras de ordem - barcos sem regresso, sem retoma, os estaleiros navais - Argibay, ali ao lado, na sua frente e a máxima iterativa, imperativa, de defesa das costas, preservação dos Oceanos, origem da vida.

Uma nova mola, um trapo, o rolar das roldanas, histriónicas,

a orla de mar, a fauna marinha, a necessidade que sentia de que a inanidade marítima lhe debulhasse o tempo - por vezes era tão pesado respirar - numa respiração compassada a sal e sol, e o fogo da forja, projectado, vitral mal iluminado, espaço - contraforte, marinheiro d'embaraço

à proa de um navio sem casco, fora da barra, à mercê de um tempo ventoso. Posteriormente, ali, a desenrolar a adriça... Ulissess e Golias nos cavalos da potência regressiva. Na energia que, com tanto sol, o país importava, não produzia. Paradoxos.

O Tejo na Rota do Desemprego, de novo e outra vez, de lés-a-lés, envelhecido.

Regressava às imagens dos reboca_dores. Tudo se rebocava. A reboque da memória, ia. Requestada.
Reboca-se e nada se leva porque nada se tem a levar… Nem propósitos nem vontade. O povo e ela, na inércia. E a consciência de que por dentro da água se muda a história. Corsária já no alto-mar, em navegação avessa à regra, a bandeira içada, na negação do principio de que, no desatracar, se impõe seja arriada, não ostensiva… todavia nunca partira, estava colada ao lugar…

O que mudara?
De novo as peças - uma após outra -, a buza, a hora certa, todos de azul, na ganga e na promessa de mar ao sul - as férias, o alvoroço, a troca temporária e programada por uma casa de pano, num até já camarada,

O que mudara?
Inclinava-se ao varandim, suspensa nas molas que sabia existirem no umbigo do tempo,- estertor impiedoso, máquina medieval de tortura -, que repuxava a vida até ao limite elástico de cada um, em casos extremos, até que o corpo desagregado fosse apenas e tão-só um amontoado apático de ossos e de pele, no pior dos casos, consciente de si, incapaz de decidir fosse o que fosse, em corre_dor de morte;

Chamava-se Gabriel, tinha nome de anjo, e de arcanjo, Rafael, residente de si, a prazo, na metade sobrante que o estretor lhe deixou,

Havia o sorriso, a comida seringada, as fezes em saco, as pernas que a gangrena minou. Depois o corte. As escaras de decúbito maiores que mãos, o osso revelado, e, nos lábios secos, finas linhas serenas, o pedido do afago. Afagava-o, tinha medo de usurpar o espaço, a consciência, o abandono. Uma gota salgada descida na garganta, funil transitado até ao fim de si, afagava, “e que quem sou?… ah sou?, sim, o sou a (…) , que bom que hoje está sol, não acha?…abro a janela, Sr. Rafael? uma nesguinha só, e uma gotinha de água, vai? Só uma, vá lá… posso?" a seringa a apossar-se da boca, as mãos, em procura de forma, tacteadas…
humidificado, nos lábios o sorriso, a bonança e a vontade de humana presença. Além do branco das paredes. Em que pensava? talvez nas marinhas salgadas ou na safra das searas, nos carregos de uma vida suspensa - não sabia...,
"Até já, volto, quer-me aqui mais logo…? Eu venho..., "a cabeça meneante, afirmativa, a lágrima teimosa,
Tudo tem um fim. até quandoooooo?... Paz à sua alma. Uma lágrima, meu amigo...

De novo as molas e elas -  glicínias, asarinas, bignonias ricasolianas, jasmins, e um sem mais -, enredadas na fio horizontal por onde se escorre o vento - de infinito verde, azul, a linha - chamavam-lhe cabo de aço revestido. Tanto faz. De novo a dobra do rio, o emaranhado das industrias sem telhado, as heras invasivas, as silvas a encher o espaço, os cheiros do corte, das limalhas, do ferro fundido - a caldeira, a caldeiraria pesada, os tubos mergulhadas nas tinas de decapagem. A espuma a concorrer com o mar, o rio em espera, o olhar de uma menina,

ou mulher?

O que mudara? Reboca_dores, ao largo. Imenso o oceano. E a vontade dos homens.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

O fantástico mundo de Ludovina

Há quanto tempo me conhece menino Timóteo? Há quanto tempo? Não responde? Não sabe, não é verdade? Nos seus saberes não cabe a data em que cheguei a esta casa, nem a forma como aqui fui ficando, dia após dia, semana após semana, mês… anos, décadas … meio século quase. É o que lhe digo, menino Timóteo, meio século…
Cheguei num dia de tempestade
ah, é verdade, o menino sempre fugiu das tempestades, sempre teve pavor dos relâmpagos, dos trovões … digo-lhe agora que a voz se me soltou, teve medo porque, a luz a claridade branca de um bom relâmpago lhe iluminava invariavelmente o seu lado negro e fazia, de si a si próprio, película revelada …
(mas isto digo eu, que, como sabe, e saberá melhor que qualquer indivíduo nesta vida porque me conhece, enfermo de uma estupidez crónica, uma incapacidade para qualquer outra coisa que não seja servi-lo. Servi-lo no pleno e para além do pleno a que tem direito…)
Mas não nos percamos agora com estas minhas deambulações ao seu mundo tão cheio de sabedoria… voltemos ao dia que cheguei aqui, tinha então sete anos. Vim pela mão da minha madrinha, de Valpaços e, até hoje, menino, nunca mais lá voltei… esqueci os cheiros do feno, os cheiros da vinha, o toque das castanhas dentro dos ouriços, o felpo interno, a bonomia da vida comunitária… quase tudo, menino, que, e não lhe digo agora como, desde há algum tempo, fiquei de novo ligada à minha terra, aos meus amigos … por milagre, quem sabe …
em “incriação das memórias” …
por milagre …
Cheguei, como se diz, com uma mão à frente e outra atrás. Éramos muitos irmãos e a minha mãe assim o decidiu. Cheguei e apenas de meu trazia o que um dia lhe dei… dei-lhe tudo... Servi-o como se serve a quem se quer muito bem, mesmo que, desde aquele dia tenha intuído (as crianças intuem tanto, menino Timóteo) que o rapaz de calções e de suspensórios que me olhava no cimo das escadas tinha nele algo que nunca tinha sentido até então num qualquer olhar de gente ou bicho…
Cheguei e, de repente, o céu iluminou-se. Todos os candelabros da sua mãezinha (ainda de velas, como se recordará - só mais tarde o menino os mandou electrificar), estremeceram, vacilaram, balançando como pêndulos mal parados, estava eu exactamente por debaixo de um deles e, veja só, a minha madrinha, a senhora Dona Maria do Amparo, fez jus ao nome: amparou-me puxando por mim para longe, não fosse o dito tombar desgovernado sobre nós. Amparou-me naquela hora, mas não me ampararia por muito mais anos que Deus assim o quis. No entretanto, ensinou-me sem nada esconder todas as receitas dos seus doces favoritos, as compotas que tanto aprecia… o arroz de polvo, o arroz de feijão, a lebre com couve galega … a arte de não deslaçar a maionese (ainda lhas faço caseiras, como sabe) mas não me ensinou a proteger-me quando a luz de um trovão incide sobre a sua alma, película digital…
Estou a perder-me do fio da história, menino Timóteo. Quando assim for, o menino já sabe: chame-me à razão… esta coisa de, volvidos tantos anos, ter recuperado a fala, faz de mim este papagaio, esta catatua tresloucada, sei lá, que agarra umas conversas nas outras e se perde num novelo. Faça favor de me lançar farpa, menino…Faça favor, peço-lhe…
Como dizia, nesse dia, o menino deu mostras de si. Desapareceu tão subitamente como tinha chegado, em halos de naufrágio de que nunca mais me esqueci ….Que cara é essa, menino? Não me conhece este vocabulário?... Oiça-me, então e não se espante, menino, quem sou, saberá de hora em diante…
naufrágio, naufrago em casa própria, sem dúvida. Voltou dias depois, quando a sua mãe subiu ao seu quarto, após as vezes sem conta em que, através da Natália, sua ama, lhe ordenou que voltasse ao convívio e ao dia a dia da casa…
Do que lhe disse, não sei, sei apenas que a senhora sua mãe, que a alma lhe esteja em descanso, largou as telas, os pincéis, subiu as escadarias sorumbática e voltou com um lago de nenúfares no olhar. Ou, para ser mais exacta, com os linhos mansos da nossa terra - a minha, que também é a sua, a minha que sendo a sua e o senhor tendo ainda hoje lá a mansão, nunca me permitiu que o acompanhasse … que voltasse aos meus. No início pela razão que conhece, depois porque
“ora Ludovina, seja discreta, acha que não lhe fariam perguntas embaraçosas? E acha que faz algum sentido ir para a casa dos seus irmãos? Palheiros, a bem dizer… aqui tem todo o conforto. Mesmo que viva na casinha dos fundos, tem conforto não têm? Até, com a abertura das ruas, tem acesso directo ao Vasco da Gama… nunca entendi a graça que acha naquelas multidões, aliás, como não entendo onde vai quando anoitece e só volta tardiamente. E escolhe o início do Outono para tais ousadias. Tem que se deixar disso, porque não lhe fica bem. Não que me interesse, em absoluto, mas sendo serviçal desta casa, o seu bom nome importa. Não me inclua em lamaçais, ouviu bem? …”
E eu a tudo dizia que sim. Fui ficando, ficando… das suas sobras, das suas migalhas…
ao mesmo tempo que - sei, não tenho a sua capacidade filosófica, mas, oiça bem, bebia da taça de cicuta que poli, o pó e o vento; que continuei dia a dia, ano após ano a desdobrar-me entre a cozinha e onde sabe. A limpar os seus fatos, a curvar-me na graxa dos seus sapatos, a servir os seus pratos; que continuei a servir todos os seus caprichos, todas as suas vontades,
Hoje eu quero que suba (e enfatizava o Eu…)
(nesse tempo a sua família estava em Valpaços para férias do Natal, o menino estava arrastado com a sua Faculdade, com as cadeiras que nunca concluía a tempos e ficou por mais uns dias. Iria depois, com o seu tio Antero, com os seus primos. A seu pedido, fiquei eu e as criadas de fora, a Gervásia e a Emília. Foi o primeiro Natal que passei sozinha, sem a sua família (que imaginava minha, ainda que fosse porque sem uma família me sentia nada …). Sozinha, portanto, em vésperas de Natal …ou melhor, acompanhada …
eu quero que suba, Ludovina, vá arrumar o quarto já … Olhe,  há ainda doce de cerejas? Leve consigo uma taça generosa, ah e não se esqueça, quero que a compota contenha as ditas. Bastas... E ria e,  sem questionar, cumpria o que me pedia: fui à cozinha, com uma colher de pau enchi a taça, a que tanto apreciava, da Companhia das Índias, do serviço da sua avózinha, senhora D. Micas, coloquei na bandeja, sobre o pano de linho bordado a rechelieu, pela sua outra avozinha,  senhora D. Genoveva, nascida na Ilha Terceira, que, como sempre dizia, trazia a insularidade gravada em alma … por isso as pestanas se lhe colavam no sal das tardes sob o sol no quintal - bons tempos, menino, quando nos visitava no Verão e, sobre o álamo das traseiras, ao lado das glicínias, bordava tais trabalhos …e, de prosa farta,  entrada no estio da tarde, dormitava…
Ai menino, bem lhe disse, já me estou a perder de novo no emaranhado das minhas memórias … incriadas, as minhas memórias…

Recorda-se desse dia, menino? Não? Quer que lhe lembre? Que lhe avive a memória?
Pois bem, eu conto. Oiça-me então...
O menino estava no quarto de banho, ouvia a água a correr, enquanto, com o coração a bater sem contenção, subia a escada. A madeira rangia e eu estremecia, vara verde - ainda não era tempo de cerejas, as cerejeiras na nossa terra estavam despidas a coberto da neve -, estremecia, desconhecida de mim. Subi. O seu quarto a primeira porta à esquerda, o agora de hóspedes… A água continuava a correr. Teria ainda algum tempo para os arrumos, antes que voltasse. Sabia que, em regra, era demorado na sua higiene.
Entrei, abri as janelas. Mantive as portadas cerradas. Era sempre assim que fazia, de acordo com as suas ordens. Apenas as frinchas, o arejamento estritamente necessário… Comecei a reunir a roupa, separei por, para lavar, para re-engomar, escovar … e o Timotinho entrou  - lá fora a trovoada avançava o rio, derrubava as folhas das cerejeiras que ainda não tinham rompido a casca dos ramos
            sem aviso, o chão… ali,
Vais gostar. Andas a pedi-las, Ludovina (nunca me tratou por tu, senão naquelas horas … naquele dia e até hoje, sempre naquelas horas…) …
            sem aviso, derrubou-me, tapou-me a boca, encheu-a com os dedos – em cada dedo havia um bicho, em cada dedo havia um medo, um lugar desconhecido, um ponto de não retorno -, e logo
a mão aberta a selar a minha angústia - não necessitava, não gritaria (tentei não gritar) sabia que detestava, gritos, sons agudos …
            sem aviso, o roupão. Aberto. No lusco-fusco do seu quarto e, pela primeira vez vi, a olhos vistos,  todas as veias do espaço nas veias do seu sexo… vi-o e vi-me (saberia mais tarde) no centro de um dos teatros em que encenava e colocava em palco as suas peças, de que era actor e guionista, uma espécie de teatro anatómico, um caleidoscópio invertido no negro espesso de seu olhar…
Derrubou-me. Não reagi (ainda não era o tempo das cerejas no meu corpo…) enquanto me
mordia,  me sugava os seios que, entretanto, soltara da camisa serviçal,
subia a saia, descia as mãos e a trovoada - espaço entre
             a luz-cegueira temporária de seu olhar e lume e o som de mim, ainda muda…
sem "nós", descompassados em ruídos de relâmpagos ao largo,  a rompermos, díspares, na falta de ar em meu peito, na pressão de suas mãos em mim, e, ali, naquele quarto, de ar rarefeito, violentamente, o ribombar do seu mundo em si próprio, onda, propagação de choque, em proximidade que eu não podia evitar do trovão, surdez temporária, rotura de membranas, de diques, de comportas,
             cada instante mais perto, mais forte,
             lampejo persistente nas frinchas da portada, rasgada - dor dos seus dedos em mim, no meu baixo ventre,  lâminas a cavarem carne adolescente, impúbere - as suas mãos, sim,  fizeram soltar um grito que, juro, não queria ter solto …e, de repente, os seus fantasmas, todos, incontroláveis,
             soltaram-se, Timóteo, soltaram-se no meu corpo. Os seus olhos cresciam nas órbitas, o som da chuva que começava a cair, primeiro mansa e a cada segundo mais ritmada, mais abrupta, abafou os seus urros, o demónio de si, as veias grossas do seu sexo, o seu sexo agora coberto de doce, do meu doce,
            Come, puta, come… verás que tem um travo que a tua madrinha não te ensinou, a baunilha, quem sabe?...
            a chuva, a tempestade, abafou-lhe  o riso descontrolado. Ria, rugia, ao mesmo tempo, menino, obrigava a que, os meus lábios o tocassem, que o limpassem daquele vermelho gelatinoso
           A cereja no cimo do bolo, é o que te estou a dar, puta, mas já te dou o resto, és uma oferecida, julgas que não vi como as pedias? Só estava à espera de uma oportunidade, um momento mais propício … é a hora. Gostas? Gostas? Diz, diz, putinha das “Beiças”, Galega filha da puta, pensavas que chegava fazeres os doces? Não, tens de lhe dar apreço …
           enquanto dos meus olhos a chuva me lavava a mágoa – a água tudo lava -, e, ali mesmo, sobre o chão,  madeira de cerejeira que eu mesma polia,  ajoelhada,  o menino me fez sua e fez com que não passasse sozinha aquele Natal, enquanto lá fora a trovoada avançava,  lambia as copas das árvores, tombando todas as folhas que, por um mero acaso, solidárias,  ainda não tivessem tombado, - choravam as folhas, que bem as ouvi - e, dos fundos, chegavam leves os rumores das criadas de fora, que, quanto me lembro depois destes anos todos, andariam a recolher a roupa dos estendais, a fechar os postigos do andar inferior e as portadas de todas as janelas. Não menino, não deram por nada, porque, sabe, uma das minhas maiores e piores qualidades, foi e será sempre, ser
            discreta, "tão discreta, a nossa Ludovina",
zelando pelo seu bom nome, tal como a sua avó e a sua santa mãe me ensinaram.

Quando, por fim, o doce findou e o menino se cansou de me ver ali a seus pés, mecânica a executar uma tarefa, aos meus olhos tão estranha, quando se cansou de, no intervalo desta, me possuir como garanhão em potra, quando, a trovoada que o varria, que curto-circuitava o seu cérebro, roubando-lhe toda a razão, a lógica - não se espante menino, a criada Ludovina, está velha e os velhos sabem coisas que nem ao diabo acode, como se diz lá por Valpaços… -, quando, finalmente, o seu corpo se libertou desse coisa má que é e não é, e lhe devolveu paz, o menino
          Ludovina, desculpe, fui um canalha … não fale disto a ninguém, de hoje em diante está sobre minha protecção, como sabe estou quase Doutor, Doutor de Leis, e, com o meu pai ausente nas Colónias sou o senhor desta casa. Foram as trovoadas, bem vê… sempre me fizeram tanto mal …Vista-se, vá arranjar-se como deve ser e, já sabe, nem uma palavra …
Fiz o que me ordenava. Porque de ordem se tratava. O menino era o “Doutor das Leis” e eu a criadita de Valpaços, com menos dez anos que o Senhor…
Que valeria rebelar-me?... Nem entendi de bem o fazer, e, o que tinha  de meu, tudo, na verdade, porque o amor (percebi mais tarde) nos torna cegos, lhe dei, na cumplicidade consentida de um (e)terno,
  "sim, senhor ..." 
O templo do meu corpo, menino …
     porque, e vá lá Deus saber porquê, quando me ajoelhou à sua frente não senti nojo, nem cuidei de ter vergonha – apenas estranheza, mágoa de não saber como e porque fazer  -, e o seu corpo foi o corpo do único homem de quem bebi a seiva da vida, e as suas mãos as únicas que tocaram o meu corpo,
        ter-lhe-ia, entregado o ventre para que o rasgasse de  novo, até hoje, e para sempre,  se  intuísse que, no seu íntimo havia desejo de “nós”;  tê-lo-ia  feito acordar abraçado a mim e protegido de si, menino, até que a morte algum de nós levasse … mas não foi assim …       Nunca entendeu pois não?…

Levantei-me. Olhei para si e vi que já nem me olhava. Senti o gelo sobre o meu corpo ainda nu. Agarrei a roupa e  semi-nua fugi  pelo corredor - que insensatez, menino -, fugi e subi ao sótão, onde era meu quarto. A cama de ferro rangeu sob os meus soluços, que, pela primeira vez se soltaram. Senti medo,  medo maior que tudo. Medo por si, menino, e não por mim…  Não sei por quanto tempo, mas sei, horas depois, desci. E encontrei a cozinha e os tachos tão iguais a sempre que, por momentos, julguei ter sonhado, dormido e tido um pesadelo … e, porque o vi chegar à mesa do almoço sem qualquer manifestação esquiva, por mais me convenci…Sonho ruim!!!

Durante aqueles dias nada mais aconteceu. Ainda não era Inverno a valer. O menino partiu com o seu tio para Valpaços e, na noite de Ano Novo, senti que os relâmpagos, as trovoadas eram por dentro de mim. Não entendi. No dia primeiro, nem os chás da Gervásia e o bom-humor da Emília conseguiram apaziguar as minhas entranhas,
      Que comeste, rapariga? Foram das filhós? Das azevias? Bruta, não te disse que te contivesses? Que comesses menos e a espaços? Mas andas rota, comes por duas ... Por duas … por duas …
como um eco, aquelas palavras bateram fundo em mim… O resto o menino já sabe. A viagem – única em toda a minha vida, excepção à da vinda de Valpaços  - com a sua avozinha. Uma temporada nos Açores (como me custou o trajecto, Santo Deus, como) e, quando voltei , tudo como antes… como antes, menino. O raio de luz de si em meu ventre, nunca o cheguei a ver, roubada que me foi à nascença, além de, para sempre, me ser roubada a possibilidade de lhe iluminar a vida com outras luzes, por artes de seus olhos , tempestades, em dias iguais… e tantos foram, menino, pela vida fora. Em cada cereja que lhe oferecia, a minha vida, o vermelho de que se alimenta a sua alma...
Sempre lhe fui fiel, sempre… para que lhe digo isto? O menino sabe… um homem sabe quando uma mulher lhe é fiel… Aprimorei a arte de fazer todos os doces que tanto gosta, regados com as lágrimas de saudade a um fruto que não conheci. Menina, disseram-me depois… Muitos anos depois, que estava aqui no Continente, que tinha estudado com estudos pagos pela sua santa avozinha, que era empregada, pasme menino, no Vasco da Gama…
Aí menino, as voltas da vida…
O menino nunca se livrou dos seus espectros,  nunca amou uma mulher, acredito eu (não se ama quem não se respeita…). O menino não sabe amar. Nem falo de me amar - não passo de uma vulgar mulher -, falo de amar uma senhora, à sua altura, à dimensão da sua cultura, de tantas que, depois do falecimento de sua mãezinha, se encantaram consigo. Se tinha ciúmes, menino? Não, não tinha. Sempre soube o meu lugar: protege-lo de si mesmo. Ser o pára-raios desta mansão. Desenvolvi instinto de conservação, de preservação. Proteger quem o rodeia. Naquele dia em que não cheguei a tempo… não soube antever a chegada da trovoada, imprevisível …
E ela chegou, antes de mim, vestida por minhas mãos, às suas …
      
Ininterrupta, numa estranha forma de ser verdade, continuava,
...onde ia quando me ausentava na noite? ...estudar … que cara de espanto é essa? Que outra coisa poderia ser, menino? Para o entender, estudei anos a fio. O 25 de Abril trouxe esse bem às pessoas: poderem estudar. Desde a altura em que o menino decidiu que não dormiria mais cá em casa, e me mudou para a casinha dos fundos
           É o melhor para si, Ludovina, é o melhor. Está mais à vontade e pode fazer o seu crochet até mais tarde sem incomodar a casa - sabe que detesto excesso de luz, Ludovina e, só de imaginar que o sótão está iluminado, fico na verdade, constrangido… para além de que, gosto de ouvir Mozart, Chopin… e a Ludovina só pode gostar de ouvir a Rádio Comercial… não é assim? Diga, diga lá…
... na solidão dos meus dias, estudei. Agora que o corpo engordara e que já não o excitava - a cereja não brilhava no topo do seu desejo - dei comigo com horas por preencher. Ai, lembrei-me da sua santa mãe
        Ludovina, tens que estudar. Uma mulher sem estudos não chega a lado nenhum, estuda que eu pago, E eu, não minha senhora, sei que baste para servi-la... Mas não a si, menino. Não sabia que bastasse para o servir. E fui para a escola. E dei comigo a gostar… dois anos num, três em dois, exames e etc… e, quando menos esperava, à porta da faculdade – o tempo das cerejas já tinha passado, o Verão findado, eu Outono, o menino quase Inverno.
Durante todos estes anos tanto que havia a aprender… Ouvia-o falar de ópera, de teatro, de cinema. Não tenho vergonha de lho confessar, acalentava a esperança de, um dia, poder entrar num destes espaços … consigo. A seu lado. Sermos, como li, de Margarida Rebelo Pinto, "uma terceira identidade: nós"...
Ria-se se quiser, todos temos direito a sonhar. A verdade é que, na minha bagagem cultural, como diz, existem graves falhas, que só o berço e a educação desde tenra idade cimenta… não a tive, como sabe. À socapa, ainda quando aqui vivia e dormia no meu quartinho, que o menino nunca quis conhecer - era sempre eu que, quando me solicitava, ia ao seu -,  lá, pela noite adiante, sempre ousei ler o que o menino deixava na sala, seguir os seus passos, percebe? e, antes que acordasse, repunha, para que não se zangasse. Estudei, pois, como lhe conto, e, quando o menino se embrenhou nos computadores, nesse mundo tão cheio de, palavras suas, "possibilidades", só me restou aprender computadores, também, e, um dia,
um dia,
       encontrei-a.  tão jovem, tão bonita … eram todos tão jovens, tão bonitos… 

Como se falasse com os seus pensamentos, Ludovina baixou os olhos e o tom de voz que soou, a Timóteo, quase inaudível,
... os meus olhos inquietaram-se profundamente naquela noite, naquela janela,  pequeno quadrado, ou, além dela. Na trigonometria de Pitágoras, entendi a mensagem do Divino: resvalava a hipotenusa…(sempre soube do seu fascínio por Pitágoras, menino. Acredita que estudei trigonometria?...)

Aproximei-me dela, gostei dela, podia ser a minha e sua filha - tinha os seus olhos e o mesmo medo das tempestades … não, não, descanse, não era. Abracei-a como se fosse. Inquietei-me por ela …e por si. Teria de saber, desde esse instante, calcular a diagonal do quadrado … ai residia o abismo, a queda abrupta… o ponto de não retorno, menino. O embate, o embuste, e a crueza da verdade,
...Dia a dia, mais próximas, pelo que, me ia contando, me deixou em maior inquietação. Encontrei-a, como lhe conto …. E perdi-a…

Um forte trovão estremeceu a casa, iluminou-se o rio, alteroso. A outra margem vizinhou-se na limpidez de uma luz inusitada. Timóteo até então parado no meio do salão, deixou que o cachimbo se extinguisse e, tal estátua nacarada, por fim, deixou-se resvalar pelo sofá. Retomou-se, num fio de chuva.  Sentou-se…
 
Está doida, Ludovina, encontrou, quem_______emmmm???
Quem?? Não me diz? - a voz  falsete, a voz de quem não controlava a hipotenusa, o declive, a vertigem, triple.  Em clivagem, Ludovina:
Quem? … não importa. Na verdade, perdia-a. A vida é sempre feita de ciclos, de ganhos e de perdas e, ao caso, porque a perdi, reencontrei-o a si.

De novo, como dando um salto no tempo inverso, retomava a pergunta de partida
Há quanto tempo me conhece menino Timóteo? Há quanto tempo? Tantos anos, afinal, para que só agora, finalmente o esteja a descobrir…

Timóteo agitava-se na poltrona, imparável, num incómodo até então desconhecido. O animal que o habitava prestes a soltar-se, revelado pela luz incessante dos relâmpagos, pelo ribombar ensurdecedor dos trovões. A hora dos lobos. A hora marcada com a mulher de vermelho a aproximar-se, imparável, escorrida em todos os relógios,  e, ali, à sua frente, Ludovina, não a que conhecia, a que o servira uma vida inteira, mas outra que, por artes mágicas, ventrícula,  recuperara a voz anos a fio, monossilábica, e lhe falava numa linguagem estranha e, ao mesmo tempo,  próxima. E dessa proximidade germinava um desconforto insolúvel. 
Tentou ainda que lhe esclarecesse melhor quem conhecia (ou conhecera, não percebia bem o modo como se referira a alguém). Tentou, mas Ludovina, olhando para o relógio da sala, disse-lhe,  num sorriso enigmático,

...Menino Timotinho (tratava-o sempre assim, quando lhe queria dar alguma noticia que, sabia, o deixaria agitado) vai-me desculpar, mas hoje foi uma excepção estar aqui a esta hora. Voltei porque me esqueci do meu xaile e, nem me pergunte como, começamos esta conversa, mas tenho de ir,

Dois passos, a porta, o vento e o voltear do verbo,
…É que está na hora de rezar o meu terço. Fique bem, menino, encontra o seu chá no termo no seu quarto, como sempre… e a chávena de Limoge, claro… ah, esqueci de lhe dizer,

Três passos, além da porta, já,
… no dia em que a sua amiga não veio, veja a minha cabeça, ia jurar que ouvi a campainha da porta tocar … imagine, menino, o que os estudos fizeram de mim: alucinei… Prometo-lhe, estarei mais atenta…
        Saiu.
Depois da trovoada apenas o silêncio. O pingar do algeroz no piar dos pássaros sem ninhos…

Demasiado perturbado levantou-se pesadamente do cadeirão, dirigiu-se ao escritório, abriu a janela … não estava
Melhor assim, hoje não estou com paciência para parvónias…
E, repentinamente,
Olá Pitágoras, estava a pensar que não vinha? Desculpe, atrasei-me um pouco…de que falávamos?...
quer ensinar-me trigonometria? ... 
...
Direita, volver, em sentido, Ludovina. Sherazade, sejas, de ora em diante e por mil e uma noite.E nenhuma mais, vermelho-acontecer...

....
Nota: Este conto é o último de uma triologia, composta por 
- O fantástico mundo de Ludovina (3º conto)

  Imagem da net, desconheço autor.

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...