Há quanto tempo me conhece menino Timóteo? Há quanto tempo? Não responde? Não sabe, não é verdade? Nos seus saberes não cabe a data em que cheguei a esta casa, nem a forma como aqui fui ficando, dia após dia, semana após semana, mês… anos, décadas … meio século quase. É o que lhe digo, menino Timóteo, meio século…
Cheguei num dia de tempestade
ah, é verdade, o menino sempre fugiu das tempestades, sempre teve pavor dos relâmpagos, dos trovões … digo-lhe agora que a voz se me soltou, teve medo porque, a luz a claridade branca de um bom relâmpago lhe iluminava invariavelmente o seu lado negro e fazia, de si a si próprio, película revelada …
(mas isto digo eu, que, como sabe, e saberá melhor que qualquer indivíduo nesta vida porque me conhece, enfermo de uma estupidez crónica, uma incapacidade para qualquer outra coisa que não seja servi-lo. Servi-lo no pleno e para além do pleno a que tem direito…)
Mas não nos percamos agora com estas minhas deambulações ao seu mundo tão cheio de sabedoria… voltemos ao dia que cheguei aqui, tinha então sete anos. Vim pela mão da minha madrinha, de Valpaços e, até hoje, menino, nunca mais lá voltei… esqueci os cheiros do feno, os cheiros da vinha, o toque das castanhas dentro dos ouriços, o felpo interno, a bonomia da vida comunitária… quase tudo, menino, que, e não lhe digo agora como, desde há algum tempo, fiquei de novo ligada à minha terra, aos meus amigos … por milagre, quem sabe …
em “incriação das memórias” …
por milagre …
Cheguei, como se diz, com uma mão à frente e outra atrás. Éramos muitos irmãos e a minha mãe assim o decidiu. Cheguei e apenas de meu trazia o que um dia lhe dei… dei-lhe tudo... Servi-o como se serve a quem se quer muito bem, mesmo que, desde aquele dia tenha intuído (as crianças intuem tanto, menino Timóteo) que o rapaz de calções e de suspensórios que me olhava no cimo das escadas tinha nele algo que nunca tinha sentido até então num qualquer olhar de gente ou bicho…
Cheguei e, de repente, o céu iluminou-se. Todos os candelabros da sua mãezinha (ainda de velas, como se recordará - só mais tarde o menino os mandou electrificar), estremeceram, vacilaram, balançando como pêndulos mal parados, estava eu exactamente por debaixo de um deles e, veja só, a minha madrinha, a senhora Dona Maria do Amparo, fez jus ao nome: amparou-me puxando por mim para longe, não fosse o dito tombar desgovernado sobre nós. Amparou-me naquela hora, mas não me ampararia por muito mais anos que Deus assim o quis. No entretanto, ensinou-me sem nada esconder todas as receitas dos seus doces favoritos, as compotas que tanto aprecia… o arroz de polvo, o arroz de feijão, a lebre com couve galega … a arte de não deslaçar a maionese (ainda lhas faço caseiras, como sabe) mas não me ensinou a proteger-me quando a luz de um trovão incide sobre a sua alma, película digital…
Estou a perder-me do fio da história, menino Timóteo. Quando assim for, o menino já sabe: chame-me à razão… esta coisa de, volvidos tantos anos, ter recuperado a fala, faz de mim este papagaio, esta catatua tresloucada, sei lá, que agarra umas conversas nas outras e se perde num novelo. Faça favor de me lançar farpa, menino…Faça favor, peço-lhe…
Como dizia, nesse dia, o menino deu mostras de si. Desapareceu tão subitamente como tinha chegado, em halos de naufrágio de que nunca mais me esqueci ….Que cara é essa, menino? Não me conhece este vocabulário?... Oiça-me, então e não se espante, menino, quem sou, saberá de hora em diante…
naufrágio, naufrago em casa própria, sem dúvida. Voltou dias depois, quando a sua mãe subiu ao seu quarto, após as vezes sem conta em que, através da Natália, sua ama, lhe ordenou que voltasse ao convívio e ao dia a dia da casa…
Do que lhe disse, não sei, sei apenas que a senhora sua mãe, que a alma lhe esteja em descanso, largou as telas, os pincéis, subiu as escadarias sorumbática e voltou com um lago de nenúfares no olhar. Ou, para ser mais exacta, com os linhos mansos da nossa terra - a minha, que também é a sua, a minha que sendo a sua e o senhor tendo ainda hoje lá a mansão, nunca me permitiu que o acompanhasse … que voltasse aos meus. No início pela razão que conhece, depois porque
“ora Ludovina, seja discreta, acha que não lhe fariam perguntas embaraçosas? E acha que faz algum sentido ir para a casa dos seus irmãos? Palheiros, a bem dizer… aqui tem todo o conforto. Mesmo que viva na casinha dos fundos, tem conforto não têm? Até, com a abertura das ruas, tem acesso directo ao Vasco da Gama… nunca entendi a graça que acha naquelas multidões, aliás, como não entendo onde vai quando anoitece e só volta tardiamente. E escolhe o início do Outono para tais ousadias. Tem que se deixar disso, porque não lhe fica bem. Não que me interesse, em absoluto, mas sendo serviçal desta casa, o seu bom nome importa. Não me inclua em lamaçais, ouviu bem? …”
E eu a tudo dizia que sim. Fui ficando, ficando… das suas sobras, das suas migalhas…
ao mesmo tempo que - sei, não tenho a sua capacidade filosófica, mas, oiça bem, bebia da taça de cicuta que poli, o pó e o vento; que continuei dia a dia, ano após ano a desdobrar-me entre a cozinha e onde sabe. A limpar os seus fatos, a curvar-me na graxa dos seus sapatos, a servir os seus pratos; que continuei a servir todos os seus caprichos, todas as suas vontades,
Hoje eu quero que suba (e enfatizava o Eu…)
(nesse tempo a sua família estava em Valpaços para férias do Natal, o menino estava arrastado com a sua Faculdade, com as cadeiras que nunca concluía a tempos e ficou por mais uns dias. Iria depois, com o seu tio Antero, com os seus primos. A seu pedido, fiquei eu e as criadas de fora, a Gervásia e a Emília. Foi o primeiro Natal que passei sozinha, sem a sua família (que imaginava minha, ainda que fosse porque sem uma família me sentia nada …). Sozinha, portanto, em vésperas de Natal …ou melhor, acompanhada …
…eu quero que suba, Ludovina, vá arrumar o quarto já … Olhe, há ainda doce de cerejas? Leve consigo uma taça generosa, ah e não se esqueça, quero que a compota contenha as ditas. Bastas... E ria e, sem questionar, cumpria o que me pedia: fui à cozinha, com uma colher de pau enchi a taça, a que tanto apreciava, da Companhia das Índias, do serviço da sua avózinha, senhora D. Micas, coloquei na bandeja, sobre o pano de linho bordado a rechelieu, pela sua outra avozinha, senhora D. Genoveva, nascida na Ilha Terceira, que, como sempre dizia, trazia a insularidade gravada em alma … por isso as pestanas se lhe colavam no sal das tardes sob o sol no quintal - bons tempos, menino, quando nos visitava no Verão e, sobre o álamo das traseiras, ao lado das glicínias, bordava tais trabalhos …e, de prosa farta, entrada no estio da tarde, dormitava…
Ai menino, bem lhe disse, já me estou a perder de novo no emaranhado das minhas memórias … incriadas, as minhas memórias…
Recorda-se desse dia, menino? Não? Quer que lhe lembre? Que lhe avive a memória?
Pois bem, eu conto. Oiça-me então...
O menino estava no quarto de banho, ouvia a água a correr, enquanto, com o coração a bater sem contenção, subia a escada. A madeira rangia e eu estremecia, vara verde - ainda não era tempo de cerejas, as cerejeiras na nossa terra estavam despidas a coberto da neve -, estremecia, desconhecida de mim. Subi. O seu quarto a primeira porta à esquerda, o agora de hóspedes… A água continuava a correr. Teria ainda algum tempo para os arrumos, antes que voltasse. Sabia que, em regra, era demorado na sua higiene.
Entrei, abri as janelas. Mantive as portadas cerradas. Era sempre assim que fazia, de acordo com as suas ordens. Apenas as frinchas, o arejamento estritamente necessário… Comecei a reunir a roupa, separei por, para lavar, para re-engomar, escovar … e o Timotinho entrou - lá fora a trovoada avançava o rio, derrubava as folhas das cerejeiras que ainda não tinham rompido a casca dos ramos
sem aviso, o chão… ali,
Vais gostar. Andas a pedi-las, Ludovina (nunca me tratou por tu, senão naquelas horas … naquele dia e até hoje, sempre naquelas horas…) …
sem aviso, derrubou-me, tapou-me a boca, encheu-a com os dedos – em cada dedo havia um bicho, em cada dedo havia um medo, um lugar desconhecido, um ponto de não retorno -, e logo
a mão aberta a selar a minha angústia - não necessitava, não gritaria (tentei não gritar) sabia que detestava, gritos, sons agudos …
sem aviso, o roupão. Aberto. No lusco-fusco do seu quarto e, pela primeira vez vi, a olhos vistos, todas as veias do espaço nas veias do seu sexo… vi-o e vi-me (saberia mais tarde) no centro de um dos teatros em que encenava e colocava em palco as suas peças, de que era actor e guionista, uma espécie de teatro anatómico, um caleidoscópio invertido no negro espesso de seu olhar…
Derrubou-me. Não reagi (ainda não era o tempo das cerejas no meu corpo…) enquanto me
mordia, me sugava os seios que, entretanto, soltara da camisa serviçal,
subia a saia, descia as mãos e a trovoada - espaço entre
a luz-cegueira temporária de seu olhar e lume e o som de mim, ainda muda…
sem "nós", descompassados em ruídos de relâmpagos ao largo, a rompermos, díspares, na falta de ar em meu peito, na pressão de suas mãos em mim, e, ali, naquele quarto, de ar rarefeito, violentamente, o ribombar do seu mundo em si próprio, onda, propagação de choque, em proximidade que eu não podia evitar do trovão, surdez temporária, rotura de membranas, de diques, de comportas,
cada instante mais perto, mais forte,
lampejo persistente nas frinchas da portada, rasgada - dor dos seus dedos em mim, no meu baixo ventre, lâminas a cavarem carne adolescente, impúbere - as suas mãos, sim, fizeram soltar um grito que, juro, não queria ter solto …e, de repente, os seus fantasmas, todos, incontroláveis,
soltaram-se, Timóteo, soltaram-se no meu corpo. Os seus olhos cresciam nas órbitas, o som da chuva que começava a cair, primeiro mansa e a cada segundo mais ritmada, mais abrupta, abafou os seus urros, o demónio de si, as veias grossas do seu sexo, o seu sexo agora coberto de doce, do meu doce,
Come, puta, come… verás que tem um travo que a tua madrinha não te ensinou, a baunilha, quem sabe?...
a chuva, a tempestade, abafou-lhe o riso descontrolado. Ria, rugia, ao mesmo tempo, menino, obrigava a que, os meus lábios o tocassem, que o limpassem daquele vermelho gelatinoso
A cereja no cimo do bolo, é o que te estou a dar, puta, mas já te dou o resto, és uma oferecida, julgas que não vi como as pedias? Só estava à espera de uma oportunidade, um momento mais propício … é a hora. Gostas? Gostas? Diz, diz, putinha das “Beiças”, Galega filha da puta, pensavas que chegava fazeres os doces? Não, tens de lhe dar apreço …
enquanto dos meus olhos a chuva me lavava a mágoa – a água tudo lava -, e, ali mesmo, sobre o chão, madeira de cerejeira que eu mesma polia, ajoelhada, o menino me fez sua e fez com que não passasse sozinha aquele Natal, enquanto lá fora a trovoada avançava, lambia as copas das árvores, tombando todas as folhas que, por um mero acaso, solidárias, ainda não tivessem tombado, - choravam as folhas, que bem as ouvi - e, dos fundos, chegavam leves os rumores das criadas de fora, que, quanto me lembro depois destes anos todos, andariam a recolher a roupa dos estendais, a fechar os postigos do andar inferior e as portadas de todas as janelas. Não menino, não deram por nada, porque, sabe, uma das minhas maiores e piores qualidades, foi e será sempre, ser
discreta, "tão discreta, a nossa Ludovina",
zelando pelo seu bom nome, tal como a sua avó e a sua santa mãe me ensinaram.
Quando, por fim, o doce findou e o menino se cansou de me ver ali a seus pés, mecânica a executar uma tarefa, aos meus olhos tão estranha, quando se cansou de, no intervalo desta, me possuir como garanhão em potra, quando, a trovoada que o varria, que curto-circuitava o seu cérebro, roubando-lhe toda a razão, a lógica - não se espante menino, a criada Ludovina, está velha e os velhos sabem coisas que nem ao diabo acode, como se diz lá por Valpaços… -, quando, finalmente, o seu corpo se libertou desse coisa má que é e não é, e lhe devolveu paz, o menino
Ludovina, desculpe, fui um canalha … não fale disto a ninguém, de hoje em diante está sobre minha protecção, como sabe estou quase Doutor, Doutor de Leis, e, com o meu pai ausente nas Colónias sou o senhor desta casa. Foram as trovoadas, bem vê… sempre me fizeram tanto mal …Vista-se, vá arranjar-se como deve ser e, já sabe, nem uma palavra …
Fiz o que me ordenava. Porque de ordem se tratava. O menino era o “Doutor das Leis” e eu a criadita de Valpaços, com menos dez anos que o Senhor…
Que valeria rebelar-me?... Nem entendi de bem o fazer, e, o que tinha de meu, tudo, na verdade, porque o amor (percebi mais tarde) nos torna cegos, lhe dei, na cumplicidade consentida de um (e)terno,
"sim, senhor ..."
O templo do meu corpo, menino …
porque, e vá lá Deus saber porquê, quando me ajoelhou à sua frente não senti nojo, nem cuidei de ter vergonha – apenas estranheza, mágoa de não saber como e porque fazer -, e o seu corpo foi o corpo do único homem de quem bebi a seiva da vida, e as suas mãos as únicas que tocaram o meu corpo,
porque, e vá lá Deus saber porquê, quando me ajoelhou à sua frente não senti nojo, nem cuidei de ter vergonha – apenas estranheza, mágoa de não saber como e porque fazer -, e o seu corpo foi o corpo do único homem de quem bebi a seiva da vida, e as suas mãos as únicas que tocaram o meu corpo,
ter-lhe-ia, entregado o ventre para que o rasgasse de novo, até hoje, e para sempre, se intuísse que, no seu íntimo havia desejo de “nós”; tê-lo-ia feito acordar abraçado a mim e protegido de si, menino, até que a morte algum de nós levasse … mas não foi assim … Nunca entendeu pois não?…
Levantei-me. Olhei para si e vi que já nem me olhava. Senti o gelo sobre o meu corpo ainda nu. Agarrei a roupa e semi-nua fugi pelo corredor - que insensatez, menino -, fugi e subi ao sótão, onde era meu quarto. A cama de ferro rangeu sob os meus soluços, que, pela primeira vez se soltaram. Senti medo, medo maior que tudo. Medo por si, menino, e não por mim… Não sei por quanto tempo, mas sei, horas depois, desci. E encontrei a cozinha e os tachos tão iguais a sempre que, por momentos, julguei ter sonhado, dormido e tido um pesadelo … e, porque o vi chegar à mesa do almoço sem qualquer manifestação esquiva, por mais me convenci…Sonho ruim!!!
Durante aqueles dias nada mais aconteceu. Ainda não era Inverno a valer. O menino partiu com o seu tio para Valpaços e, na noite de Ano Novo, senti que os relâmpagos, as trovoadas eram por dentro de mim. Não entendi. No dia primeiro, nem os chás da Gervásia e o bom-humor da Emília conseguiram apaziguar as minhas entranhas,
Que comeste, rapariga? Foram das filhós? Das azevias? Bruta, não te disse que te contivesses? Que comesses menos e a espaços? Mas andas rota, comes por duas ... Por duas … por duas …
como um eco, aquelas palavras bateram fundo em mim… O resto o menino já sabe. A viagem – única em toda a minha vida, excepção à da vinda de Valpaços - com a sua avozinha. Uma temporada nos Açores (como me custou o trajecto, Santo Deus, como) e, quando voltei , tudo como antes… como antes, menino. O raio de luz de si em meu ventre, nunca o cheguei a ver, roubada que me foi à nascença, além de, para sempre, me ser roubada a possibilidade de lhe iluminar a vida com outras luzes, por artes de seus olhos , tempestades, em dias iguais… e tantos foram, menino, pela vida fora. Em cada cereja que lhe oferecia, a minha vida, o vermelho de que se alimenta a sua alma...
Sempre lhe fui fiel, sempre… para que lhe digo isto? O menino sabe… um homem sabe quando uma mulher lhe é fiel… Aprimorei a arte de fazer todos os doces que tanto gosta, regados com as lágrimas de saudade a um fruto que não conheci. Menina, disseram-me depois… Muitos anos depois, que estava aqui no Continente, que tinha estudado com estudos pagos pela sua santa avozinha, que era empregada, pasme menino, no Vasco da Gama…
Aí menino, as voltas da vida…
O menino nunca se livrou dos seus espectros, nunca amou uma mulher, acredito eu (não se ama quem não se respeita…). O menino não sabe amar. Nem falo de me amar - não passo de uma vulgar mulher -, falo de amar uma senhora, à sua altura, à dimensão da sua cultura, de tantas que, depois do falecimento de sua mãezinha, se encantaram consigo. Se tinha ciúmes, menino? Não, não tinha. Sempre soube o meu lugar: protege-lo de si mesmo. Ser o pára-raios desta mansão. Desenvolvi instinto de conservação, de preservação. Proteger quem o rodeia. Naquele dia em que não cheguei a tempo… não soube antever a chegada da trovoada, imprevisível …
E ela chegou, antes de mim, vestida por minhas mãos, às suas …
Ininterrupta, numa estranha forma de ser verdade, continuava,
...onde ia quando me ausentava na noite? ...estudar … que cara de espanto é essa? Que outra coisa poderia ser, menino? Para o entender, estudei anos a fio. O 25 de Abril trouxe esse bem às pessoas: poderem estudar. Desde a altura em que o menino decidiu que não dormiria mais cá em casa, e me mudou para a casinha dos fundos
É o melhor para si, Ludovina, é o melhor. Está mais à vontade e pode fazer o seu crochet até mais tarde sem incomodar a casa - sabe que detesto excesso de luz, Ludovina e, só de imaginar que o sótão está iluminado, fico na verdade, constrangido… para além de que, gosto de ouvir Mozart, Chopin… e a Ludovina só pode gostar de ouvir a Rádio Comercial… não é assim? Diga, diga lá…
... na solidão dos meus dias, estudei. Agora que o corpo engordara e que já não o excitava - a cereja não brilhava no topo do seu desejo - dei comigo com horas por preencher. Ai, lembrei-me da sua santa mãe
Ludovina, tens que estudar. Uma mulher sem estudos não chega a lado nenhum, estuda que eu pago, E eu, não minha senhora, sei que baste para servi-la... Mas não a si, menino. Não sabia que bastasse para o servir. E fui para a escola. E dei comigo a gostar… dois anos num, três em dois, exames e etc… e, quando menos esperava, à porta da faculdade – o tempo das cerejas já tinha passado, o Verão findado, eu Outono, o menino quase Inverno.
Durante todos estes anos tanto que havia a aprender… Ouvia-o falar de ópera, de teatro, de cinema. Não tenho vergonha de lho confessar, acalentava a esperança de, um dia, poder entrar num destes espaços … consigo. A seu lado. Sermos, como li, de Margarida Rebelo Pinto, "uma terceira identidade: nós"...
Ria-se se quiser, todos temos direito a sonhar. A verdade é que, na minha bagagem cultural, como diz, existem graves falhas, que só o berço e a educação desde tenra idade cimenta… não a tive, como sabe. À socapa, ainda quando aqui vivia e dormia no meu quartinho, que o menino nunca quis conhecer - era sempre eu que, quando me solicitava, ia ao seu -, lá, pela noite adiante, sempre ousei ler o que o menino deixava na sala, seguir os seus passos, percebe? e, antes que acordasse, repunha, para que não se zangasse. Estudei, pois, como lhe conto, e, quando o menino se embrenhou nos computadores, nesse mundo tão cheio de, palavras suas, "possibilidades", só me restou aprender computadores, também, e, um dia,
um dia,
encontrei-a. tão jovem, tão bonita … eram todos tão jovens, tão bonitos…
Como se falasse com os seus pensamentos, Ludovina baixou os olhos e o tom de voz que soou, a Timóteo, quase inaudível,
... os meus olhos inquietaram-se profundamente naquela noite, naquela janela, pequeno quadrado, ou, além dela. Na trigonometria de Pitágoras, entendi a mensagem do Divino: resvalava a hipotenusa…(sempre soube do seu fascínio por Pitágoras, menino. Acredita que estudei trigonometria?...)
Aproximei-me dela, gostei dela, podia ser a minha e sua filha - tinha os seus olhos e o mesmo medo das tempestades … não, não, descanse, não era. Abracei-a como se fosse. Inquietei-me por ela …e por si. Teria de saber, desde esse instante, calcular a diagonal do quadrado … ai residia o abismo, a queda abrupta… o ponto de não retorno, menino. O embate, o embuste, e a crueza da verdade,
...Dia a dia, mais próximas, pelo que, me ia contando, me deixou em maior inquietação. Encontrei-a, como lhe conto …. E perdi-a…
Um forte trovão estremeceu a casa, iluminou-se o rio, alteroso. A outra margem vizinhou-se na limpidez de uma luz inusitada. Timóteo até então parado no meio do salão, deixou que o cachimbo se extinguisse e, tal estátua nacarada, por fim, deixou-se resvalar pelo sofá. Retomou-se, num fio de chuva. Sentou-se…
Está doida, Ludovina, encontrou, quem_______emmmm???
Quem?? Não me diz? - a voz falsete, a voz de quem não controlava a hipotenusa, o declive, a vertigem, triple. Em clivagem, Ludovina:
Quem? … não importa. Na verdade, perdia-a. A vida é sempre feita de ciclos, de ganhos e de perdas e, ao caso, porque a perdi, reencontrei-o a si.
De novo, como dando um salto no tempo inverso, retomava a pergunta de partida
Há quanto tempo me conhece menino Timóteo? Há quanto tempo? Tantos anos, afinal, para que só agora, finalmente o esteja a descobrir…
Timóteo agitava-se na poltrona, imparável, num incómodo até então desconhecido. O animal que o habitava prestes a soltar-se, revelado pela luz incessante dos relâmpagos, pelo ribombar ensurdecedor dos trovões. A hora dos lobos. A hora marcada com a mulher de vermelho a aproximar-se, imparável, escorrida em todos os relógios, e, ali, à sua frente, Ludovina, não a que conhecia, a que o servira uma vida inteira, mas outra que, por artes mágicas, ventrícula, recuperara a voz anos a fio, monossilábica, e lhe falava numa linguagem estranha e, ao mesmo tempo, próxima. E dessa proximidade germinava um desconforto insolúvel.
Tentou ainda que lhe esclarecesse melhor quem conhecia (ou conhecera, não percebia bem o modo como se referira a alguém). Tentou, mas Ludovina, olhando para o relógio da sala, disse-lhe, num sorriso enigmático,
...Menino Timotinho (tratava-o sempre assim, quando lhe queria dar alguma noticia que, sabia, o deixaria agitado) vai-me desculpar, mas hoje foi uma excepção estar aqui a esta hora. Voltei porque me esqueci do meu xaile e, nem me pergunte como, começamos esta conversa, mas tenho de ir,
...Menino Timotinho (tratava-o sempre assim, quando lhe queria dar alguma noticia que, sabia, o deixaria agitado) vai-me desculpar, mas hoje foi uma excepção estar aqui a esta hora. Voltei porque me esqueci do meu xaile e, nem me pergunte como, começamos esta conversa, mas tenho de ir,
Dois passos, a porta, o vento e o voltear do verbo,
…É que está na hora de rezar o meu terço. Fique bem, menino, encontra o seu chá no termo no seu quarto, como sempre… e a chávena de Limoge, claro… ah, esqueci de lhe dizer,
Três passos, além da porta, já,
… no dia em que a sua amiga não veio, veja a minha cabeça, ia jurar que ouvi a campainha da porta tocar … imagine, menino, o que os estudos fizeram de mim: alucinei… Prometo-lhe, estarei mais atenta…
Saiu.
Depois da trovoada apenas o silêncio. O pingar do algeroz no piar dos pássaros sem ninhos…
Depois da trovoada apenas o silêncio. O pingar do algeroz no piar dos pássaros sem ninhos…
Demasiado perturbado levantou-se pesadamente do cadeirão, dirigiu-se ao escritório, abriu a janela … não estava
Melhor assim, hoje não estou com paciência para parvónias…
E, repentinamente,
Olá Pitágoras, estava a pensar que não vinha? Desculpe, atrasei-me um pouco…de que falávamos?...
quer ensinar-me trigonometria? ...
...
Direita, volver, em sentido, Ludovina. Sherazade, sejas, de ora em diante e por mil e uma noite.E nenhuma mais, vermelho-acontecer...
....
Nota: Este conto é o último de uma triologia, composta por
- O dia de todos os pecadores (1º Conto)
- Do outro lado da porta (2º conto)
- O fantástico mundo de Ludovina (3º conto)
Imagem da net, desconheço autor.