Há ainda no meu olhar a sombra do teu. Uma loucura doce e perturbadora que me faz sentir vil.
Joguei todas as cartas naquele pano. Todos os trunfos, todas as manilhas, todos os Ases. Tudo, Arminda, naquela tarde, naquela data. Joguei tudo. E chovia …
Olhei-te a descer do teu pequeno pólo cinzento, vi como as tuas pernas magras deslizavam o rebordo do assento quadriculado a miudinho, vi como, sem pressa, colocavas do lado de fora o pé esquerdo semi-nu evitando a poça que se formara entre o passeio e o local onde aparcaras, vi, por detrás do reposteiro de veludo da minha sala em semi-penumbra, como rodavas os quadris e, vi, por fim, como, delicadamente colocavas o pé direito no asfalto lustroso… mas antes, antes do mais, de tudo o mais, vi as tuas mãos, as tuas unhas compridas e vermelhas, abrias o guarda-chuva de cor igual ao teu vestido: vermelho, com um debrum a negro. Vermelho, de corte recto, cinjo ao corpo (ai o teu corpo Arminda, nunca o tinha visto assim … senti avolumar-se em mim o desejo. Naquele instante desejei-te … )
Vi como te erguias e como o teu peito se erguia, pequeno, no alinhamento perfeito com a linha mediana entre o cotovelo e a clavícula. Abri, dali, daquele lugar onde me encontrava, a palma de minha mão. Olhei, medi. Seria perfeito…
Imaginei que trarias lingerie Chantelle, quase que juraria, preta, que usarias o teu perfume predilecto… Poême da Lancôme, correcto? Respirei fundo e senti-te. Quase que ejaculei, imagina...
Chovia Arminda…
E que nos importava a chuva, dirás agora, volvidas luas de plástico e luares de cores e de sílabas imóveis?
Importava, sim, Arminda, importava e muito. Tinha vestido o meu melhor fato, aquele que, por sinal, tu tanto gostavas, de pura lã, com toque de caxemira. Tinha colocado a camisa com a risca malva, e, porque tu apreciavas tanto, até os meus botões de punho, herança do padrinho regedor. E, como não podia deixar de ser, estava barbeado a rigor, tinha até colocado lavanda discretamente na maça de Adão.
Arminda, confesso, passei o dia anterior aquele, e os anteriores ao anterior, para ser mais concreto, todos os outros antes, desde que nos conhecemos, a sonhar com o momento, com o instante exacto em que o ferrolho que nos colocava trancas se abrisse sem soluços, sem lágrimas, sem gotas nem nebulosas…
Naquele dia, Arminda, amanheceu soalheiro. Na varanda os pássaros cantavam líricas copiosas e, no lago de nenúfares próximo, um sapo falou-me do Teorema de Pitágoras. Achei oportuno, achei até que de bom augúrio. Sentei-me num banco de pedra, durante mais de duas horas, imagina.
Recapitulei tudo. Com a minúcia que me sabes; ensaiei as falas, as deixas, agora dizes tu, depois eu, Arminda, sente-se por favor, Arminda sinta-se em casa, não faça cerimónia, esta é, de agora em diante, a sua casa. O espaço que melhor nos serve... Sem sobressaltos, sem os constrangimentos de hotéis nem a pequenez de motéis - não temos idade nem estatuto, entende?
Haverias de concordar com tudo. Baixar os olhos, enrubescer as faces... Assim estaria certo...
Depois, haveria de chamar a criada com a sineta de cristal (ou a de porcelana de Limoge, herança da avó Dulce?… qual das duas? sabes o quanto me assaltam questões de pormenor, insolúveis, por vezes…).
Chamaria a criada, tomaríamos um chá de cidreira, mastigarias devagar, de boca fechada, obviamente e só se acaso desejasses, a frugalidade de bom pão em torradas com compota - providenciei que houvessem bastas, em sabores diversos - tomate, ginga, cenoura, pêra abacate, mirtilos -, absolutamente caseiras, haveria de te convidar a dançar, e, só depois, depois Arminda, te convidaria a subir. Haveríamos de olhar o Tejo, a Torre Vasco da Gama ali ao lado… A cama estava feita de lavado, a colcha da avó Micas dobrada aos pés, sobre o banco de apoio...
Mas chovia, Arminda…
Num instante, absolutamente imprevisível, tocavas a campainha com a fúria de uma mulher vulgar. De uma mulher vulgar ...
Os teus dedos colaram-se pastosos ao botão de forma ininterrupta. A Ludovina não deve ter ouvido sequer, estaria a ultimar os últimos retoques para a tua chegada. Em boa hora, que teria feito mau juízo de ti, pela certa...
Chovia … trovejava. O som estridente da campainha percorreu o hall de entrada, maximizou-se contra as paredes, contra o pé-direito em dobro da tua altura. Temi pelos lustres, que se quebrassem, temi pelas telas da mãe, que se rasgassem. Temi pela caxemira do meu fato, que se desfiasse sem recuperação possível; temi pelos Limoges, pelas Vistas Alegres, pelos cristais e porcelanas da Bavaria, pelas carpetes persas. Temi, porque, agiste em completo despautério. Arminda, Arminda, acredita, a culpa foi tua em absoluto, da tua pressa que me revelou quem tu eras...
(a culpa é, confirma-se, sempre das mulheres. Em última análise são sempre umas tresloucadas e, desculpa que te diga, umas oferecidas ... se não, olha a forma como chegaste, vestida de vermelho ...)
Corri (e tu sabes o quanto detesto correrias) como louco direito à porta. Nem queria acreditar. Não poderias ser tu, Arminda, a tocar daquela maneira abrupta!?
Abri. Abri de par em par. E, ali, no patamar, estavas tu. O teu pequeno chapéu vermelho virado do avesso por um qualquer golpe de vento (isso não vira eu, certamente estaria a olhar as palmas de minhas mãos onde imaginei o bico de teus seios tumescido …);
Ali estavas tu, como te conto, encharcada de lés a lés, o vestido colado à pele, a pele colada aos ossos… a maquilhagem desfeita na cara. Achei-te gótica e não te reconheci…
Tentaste o abraço, Arminda.
Balbuciaste um "desculpe, Timóteo, esta chuva ... imprevisível..."
Como te atreveste? Abraçar-me? E o meu fato de caxemira? … Não pensaste nisso, minha querida. Deverias ter pensado. Devias!!!
Depois tudo aconteceu com a rapidez de um fósforo. Num ápice, escorregaste pelas escadarias, num ápice tombaste na calçada onde te esperava o teu pequeno pólo. É certo que não entraste, presumo, estragarias os estofos, e, ainda que não condizentes com o teu suposto estatuto, seria um desperdício...terás tido o bom senso de não entrar... para além de que havia o vermelho a tingir a calçada e o lancil...
Quanto a mim, Arminda, voltei calmamente para dentro, não sem antes fechar a porta, correr todos os ferrolhos, não sem antes dizer à Ludovina
A tal senhora minha amiga acabou de telefonar a dizer que não pode vir por causa da chuva… pode ir, Ludovina.
E ela saiu. (É tão discreta a Ludovina...)
Dirigi-me ao escritório. Abri de novo a janela. E vi-a …
Peguei do estojo o cachimbo Billiard que me pareceu o mais apropriado à ocasião; enchi, calquei, acendi… Despi o casaco, vesti mon chambre parisiense, bebi um conhaque. Em tardes de chuva nada melhor que um conhaque ... Napoleon, um dos meus preferidos... Falei-te disso, recordas?
É óbvio que ouvi as sirenes, mas sabes, esta rua já não é o que era desde que aqui fizeram o Vasco da Gama… Contrariedades, minha querida...
...
Abri a janela; falámos até quase de madrugada: De como sou, de como me visto, do meu fato favorito, e dela: de como gosta de vermelho - trivialidades, claro. Também falámos de ópera, de teatro..
Mas ela não sabe de arte. Nunca foi à ópera… Teatro diz gostar; falei-lhe então da peça “O dia de Todos os Pescadores” prestes a subir à cena;
Ela repetiu
"O dia de todos os pecadores", ah, sim, sim, já ouvi falar (é óbvio que nunca terá ouvido, querida, mas de momento este, como tu dizias "postal", é irrelevante ...)
Ela repetiu
"O dia de todos os pecadores", ah, sim, sim, já ouvi falar (é óbvio que nunca terá ouvido, querida, mas de momento este, como tu dizias "postal", é irrelevante ...)
Falou-me de poemas e compotas.
E eu de Foucault, o filósofo da loucura… Ela não entende de filosofia, e é uma pena… Poderíamos ter mais pontos em comum, mas nem tudo é perfeito.
Amanhã talvez lhe sugira que me revele a cor da lingerie… Sinto que nos haveremos de entender.
O problema é, e será sempre, a meteorologia…
E esta sombra em meu olhar. A sombra do teu na ombreira da minha porta, doce e perturbador...