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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

"o que fazemos na vida, ecoa na eternidade ... "

na realidade, somos nós os maiores obreiros das nossas vidas. cada dia, dia-após-dia, pela eternidade...

o futuro começa hoje, agora, já. começa dentro de cada um de nós. na força e na certeza de que, dos pequeno gestos, nascem as grandes causas.






a todos um 2012 pleno de boas energias - dádiva sincera e respeito pelo outro. em tudo o mais, prossigamos, passo a passo, certos que o universo devolve sempre o que [lhe] ofertamos...

Bem-hajam, meus amigos, Feliz Ano Novo!

Mel

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

A dança dos pares

"Dançava, às vezes, por dentro de si mesma."
Baptista-Bastos


Dobrava-os meticulosamente,  atenta às nervuras, aos canelados, aos canhões, estes últimos de diferentes alturas. Em tudo o mais, aparentemente iguais -  uma tortura para quem gostava que não ocorressem falhas, trocas impróprias. Sobre o leito, meticulosamente feito, as roupas puxadas e repuxadas para que não ficasse vinco algum, eles, os peúgos  pretos que tanto a irritavam. E, ao lado, a tortura análoga das suas próprias meias, que, sem saber muito bem como, nunca pareciam emparelhar. Como se, a cada viagem rotativa por  dentro do tambor, exactamente como lera um dia de uma conhecida escritora, houvesse internamente ali, invisível mas eficaz e persistente, um monstro acéfalo, devorador que, não só surripiava alguns dos pares, como, pior, deformava, relaxava e descoloria outros. E talvez ai residisse   o mais nefasto daquela história - no descolorir da imagem, no prolapso dos elásticos, no desbotar a cor inicial numa espécie de pasta mole, aguada, se perdia, irremediavelmente, e sem retorno possível,  a forma das coisas. Ao seu olhar, fica ali algo sem préstimo, sem brilho e sem pujança. O amorfismo era, sem margem à dúvida metódica,   no ser humano e na matéria invertebrada de um modo geral, algo que a tirava do sério.  Amorfos seriam, por conseguinte, os pares dispares ali expostos.

Maria Leonor levantou-se. Num gesto desconexo empurrou os  parceiros sobrantes para o fundo de uma cesta onde, regularmente, colocava a roupa por passar a ferro. O vime entrançado dava-lhe, ainda que ilusoriamente, a segurança de que a obra prosseguiria a bom termo - o engomar, bem entendido.  Decidiu que não gastaria mais tempo a emparelhar peúgas -  demasiado precioso lhe era o tempo. Do lado direito chegava-lhe, em jeito de abraço, um blue.  Não um qualquer som de um qualquer tema, mas sim um blue. Sorriu. Na verdade, a sua vida estava  incessantemente pautada por "não coincidências". A forma musical agora ouvida era-lhe “utilitária“.  Atentou no uso de notas cantadas e tocadas numa frequência baixa,  nas estruturas [sempre] repetitivas.  Construiu mentalmente um puzzle de imagens metafóricas.  Veio-lhe em memória a fé, a espiritualidade, as comunidades escravizadas, e, óbvio, as subtis manifestações de protesto contra  a escravidão servil  dos dias.  Os caminhos ásperos e palcos aveludados.  E os passos,  os pés, agasalhados e simétricos, aninhados  interinos nas formas melódicas, na harmonia dos traços e das notas -  as formas  puras de escapar dela... 

Deixou-se impregnar dos sons, de todos os que, vindos dali, a tomavam sua. Os pés, soltos das sapatilhas imaginárias,  desnudos em revelação do calcanhar de Aquiles afagaram a madeira, provocando-lhe uma onda de calor nas pernas igualmente desnudas. Solitária na  dança, rodou a roda dos enjeitados, determinada a ser
água, pássaro ou tornado.  Como as meias que escondera das vistas há minutos,  irmanada na diáspora, na concepção binária de diferença,  no deslocamento proximal a que se obrigava a si própria da, e na,  até então,  zona  íntima de conforto. Determinada à luta  volveu a si: abraçou-se,  em cadência, dançou  a dança dos pássaros a pique, dentro de si própria, dentro do turbilhão ciclópico das margens incomunicáveis, das  águas íngremes,  até à exaustão. Por fim,  já a noite ia alta, tombou,  algo binária,  como folha rubra e  lívida,  na cama própria. Desejou o esquecimento mitigado do cheiro,  do som, do sal da pele, em suma, o sono dos justos. Como um disco riscado, o blue fez o resto.

Acordou matinal, dando-se conta que, no dobrar de pares apenas suas as nervuras das folhas persistentes a revestir de incenso e mirra as lombadas dos cadernos da vida. E nada mais.





terça-feira, 1 de novembro de 2011

"sete-estrelo e umas botas"


(REPUBLICAÇÃO)

Mirou-as demoradamente. Acariciou-lhe o couro com o olhar. Deteve-se no picotado do cano, na cor de terra. No brilho de coisa nova, nunca usada. Depois, na calma que a vida lhe trazia aos poucos, olhou o horizonte, em ocres iguais. O ocaso chegava já, num Inverno que ainda não era Natal, e, contudo,  já se anunciava em cada rua, em cada esquina. Olhou o céu limpo em busca do Sete-estrelo. Desde sempre lhe ensinara a procurá-lo: azul, qual reflexo do mar que a habitava…
Agora eram suas, como lhe prometera. Não, nunca as usara. Quando as terminara, por fim, os seus pés não cabiam mais nelas. Crescera em demasia…
Abraçou-as, mediando o tempo desde que as vira a primeira vez, por sobre uma das múltiplas prateleiras empoeiradas que emolduravam grosseiramente o exíguo do espaço, a par de formas e calçados por consertar.
“...são tuas, um dia acabo-as e serão tuas...”

As linhas iam e vinhas no ritmo das sovelas a perfurar o couro, as solas batidas e rebatidas na pedra dura. As solas mergulhadas em água, por dias e dias. Pastosas. E depois moldadas ali, ao talhe dos pés.
“...um dia, quando tiver tempo, faço-tas. Nunca terás de andar descalça, que te durarão uma vida. A vida inteira… nem que isso seja a última coisa que faça. Não terás de andar, como eu, a ver “sete-estrelas” e umas botas … nos pés dos outros…"

As linhas iam e vinham no bico das sovelas, no cuspo das mãos, nas mãos magoadas. Pai…
“… um dia serão tuas, quando as acabar. Tem tempo. Agora tenho trabalhos em mãos, que te dão o pão da boca. Mas se tas prometo, faço-tas”
E logo o olhar turvado sem brilho no brilho da lágrima contida:
“nunca lhas cheguei a fazer…”

As linhas de sisal iam e vinham, rangiam na sola; na sola dos pés o frio de tantas horas ali parado. Era Inverno…

“Sete-estrelo e umas botas.”
Naquela manhã o povoado acordou em sobressalto. Francelina, de pouco mais de quarenta anos e oito filhos menores, morrera. Uma forte dor na nuca. Nunca se soube ao certo. As bocas pequenas falaram da “porradas” que o marido lhe "amandava", quando ao fim do dia de jorna, aquecido no pingo da bebida, ajustava as contas com a vida no corpo não menos estafado da mulher. Comadre. Quando enviuvou do primeiro marido e pai das suas duas filhas mais velhas, arrimara-se a ela
“por bem querer, senhora Francelina, serei um pai para as suas filhas, um marido de respeito para vossemecê. Cuido-lhe do nome e das terras, minha comadre. Que fará vossemecê com duas filhas neste fim de mundo onde o diabo perdeu as botas? fraca e pequena como vossemecê, nem com os cântaros há-de poder, que via o senhor meu compadre – que a terra lhe seja leve -, a carregá-los serra a cima… casemos pois, senhora Francelina. Não dê outro padrasto a suas filhas e minhas afilhadas, que sou seu amigo e “mai-lo” delas…”

Casaram. Sem pompa, sem circunstância. Sem o agrado do povo, nem dos pais. Sem a bênção da família da viúva recente e já nubente. Que guardasse distancia e logo tomasse rumo. Mas assim? Em pouco mais de dois anos? Certo que Jorge era parente, conhecia os cantos à casa e nela trabalhava desde que os seus pais o haviam posto fora de portas
“Ora, coisas de rapazolas. Uma má palavra e o meu pai se deu por ofendido. Levantou-me a mão e perdi a cabeça…”
sempre ia dizendo a despeito da sua deserdança:
“... que coma a terra, que por mim hei-de apanhar e chamar de meu, mais que aqueles palmos de terra”.

Achou. Achou a confiança do compadre, os olhares gulosos sobre as terras que eram suas e, porque não dizer?, sobre as ancas de Francelina  - “boa parideira, a minha comadre, tem um par de ancas que a benza Deus” e fome de lhe morder os seios e beber o leite que se lhe escorria “valha-lhe Deus, minha comadre, que esse leite é uma perda”… avançava, entre dentes, em falsa compaixão, sob olhares lascivos.

Tomou-a sua, ocupou o lugar do falecido nas terras e na cama, e, desejoso de lhe fazer prole, acrescentou mais seis aos dois filhos de Francelina.
Esta respondia, no início, às investidas do marido, à fome das ancas e dos seios, com cansaços e pouco deslumbramento - na verdade nunca o amara. Nem pouco nem muito. Temera a solidão, o deserto do casal, o comando das terras. Era seu compadre, mal não lhe havia de fazer, por certo. Sempre era um homem, elas três mulheres…

Amor tivera ao falecido, que a cobria de atenções e mimos. Que a abraçava demoradamente antes de lhe avançar na carne. Que a olhava num olhar maior, quando lhe soltava em adoração de alma e corpo, os cabelos de um ruivo luminoso que a inundavam de luz, e que, sob o manto do céu tangido de Sete-estrelo, sob a bênção do Sete-estrelo, a desnudava por completo e se desnudava a si, para a amar profundamente. Quando, em luar maior, se adoçava o gesto da posse. As noites eram sempre pequenas para os amantes e eles amavam-se…

Detinha-se íntima e introspectiva na Lua que, pressentia, alguma vez teria novamente, que se quedava agora sempre negra lá fora, nos braços dos salgueiros e nas urzes serranas. Amor tivera a quem a aconchegava de beijos antes que, bem amada, dormisse, e, na manhã seguinte a acordava com uma chávena de leite quente. …

“agora” a cama gemia e acordava as crianças. A palha de milho roçagava o vento que se escapulia das telhas vãs. As noites eram longas demais e, não raras vezes, na manhã seguinte, à beira rio, onde lavava as ceroulas de Jorge, os cueiros dos filhos mais novos e as camisas dos mais velhos, as mulheres do povoado lhe viam as marcas enegrecidas da “paixão”.
“ó Francelina, que é lá isso, ó mulher? Tens uma negra nesse braço… e que é isso na boca? Tá a modos que rebentada…”.
“… não, senhor, não é nada … fui eu que me abracei no descuido com um cepo no quintal,  calhando que ia de cabeça no ar …”
De olhos baixos, esfregava primorosamente as fraldas até a pedra se queixar e as mãos enregeladas do inverno se abrirem em sangue. Chupava os dedos para que estancasse, dava por concluída a tarefa, e, de alguidar numa anca, bilha na cabeça, e por último,  a cria mais nova, sua filha de meses, escarranchada na outra anca, avançava a custo o íngreme do monte. Nos entretantos, a sós com Deus e com a sua vida, rezava em contas das próprias lágrimas. Agora era tarde para recuos, como tarde se anunciava o dia já a pôr-se enegrecido no ocaso. Apenas uma luz lá no alto lhe conduzia o andar nos pés mal calçados de solas safas. Perscrutava o Sete-estrelo …

A proximidade do casal já se sentia, no latido dos cães e nas correrias das crianças que, no instinto se acercavam dela. Soltava Rosa da anca, confiava-a a Manuela, uma das mais velhas, gritava o nome de Raimundo, de Carlos e dele, o dono temporário das botas…
Acorriam em algazarra.
“mãe, mãe…”
“rapazes, onde está o gado? Já o arrecadaram? E a lenha? Trazei-me dai uns cavacos que se faz tarde…e o vosso pai já deve andar por perto…”
Manuela ajudava no pendurar da roupa, os rapazes acendiam o lume, os mais novos corriam em torno das suas saias. Por instantes eram uma família feliz. Francelina abraçava os filhos, beijava-os, deitava sobre eles um olhar de esperança – um dia as coisas mudariam. Seriam eles a tomar conta das terras. Jorge afinal não era dono de nada, valha-lhe Deus… Um dia. Um dia … “Sete-estrelo”
“...um dia faço a vossemecê, minha mãe, umas botas de cano grande, por via de não andar de pés no chão, nem com as pernas rotas dos silvados, vossemecê verá, senhora minha mãe… vou ser sapateiro, como o senhor Joaquim do Vale, meu padrinho."
Afagava-lhe o cabelo encaracolado e loiro. Abençoava-o. O seu filho mais velho, daquele casamento desgraçado. E agradecia, contudo. Lindo o seu filho. Grata, olha-o …
“… um dia, filho…”

O latido aflito do cão de guarda mais ao fundo do portão indicava a proximidade do dono. Era ele sempre a primeira vítima. “…é cão duma peste, não te calas nunca!”. Um pontapé ou uma verdascada marcavam o ritmo do discurso iniciático.
As crianças sumiam. Cada um para o seu canto, para as camas improvisadas em cima das arcas do pão, com mantas trapeiras.
Francelina colocava apressada Rosa no berço, com uma chucha de açúcar e vinho. Dormiria. Tinha de ser…
“já comeram os rapazes? É bom que sim, que quero descanso”.

Acenava que sim. Muitas vezes não, mas ninguém dizia nada. Ajoelhava-se aos pés do marido, ajudava-o a tirar as botas. Ele media-lhe o corpo enquanto se levantava rumo ao lume.
As couves fervidas a escaldar o pão. A “tiborna” com o alho. Tudo pronto.

Baixava os olhos, mexia o caldo e servia o seu homem. Depois a sua malga. Comiam em silêncio. Jorge por debaixo da mesa procurava-lhe as pernas. As mãos grosseiras, apertavam os joelhos, arranhavam desapiedadas a pele. Avançavam, subiam, buscavam o sexo. Achavam-o. Penetrava-o desvairado, e, se o sentia húmido da corrida e dos labores, dos cansaços do dia, que fosse, começava ali o chorrilho de difamação “puta, ‘tas com ela aos saltos, não é?, quem é que te comeu hoje, minha puta?”. Levantava-se num ápice, empurrava-a contra a parede, abria a braguilha, soltava o bafo do vinho pelas narinas de besta e possuía-a ali mesmo, sem uma palavra. Mordia-lhe a boca, mordia-lhe o corpo, fazia soltar os seios do corpete alvo, apertando-os impiedosamente. Rodava-lhos os bicos já macerados de vezes outras, mordia, sugava-lhe o leite e o sangue que escorria – ainda amamentava -, . . “puta, agora estás satisfeita? É disto que precisas, não é? Cadela, puta... ”. ...
Por fim largava-a. Voltava para a mesa, comia outra malga de sopa, bebia, raras vezes se lavava. Deitava-se.

Francelina chorava sem um ruído. Arrumava o que havia a arrumar, engraxava de sebo as botas de seu marido, recolhia as roupas caídas junto ao leito e, quando o julgava adormecido ia levar as malgas aos filhos às camas. Finalmente, quando as crianças adormeciam, voltava ao quarto e tomava o seu lugar na borda da cama, no silêncio que a palha lhe permitia.
Noutros dias, naqueles em que ele a tomava e a achava seca, nem por isso as coisas corriam de melhor feição “puta, não queres o teu homem? Gostas mais dos moços de estrebaria é? Ou dos oficiais de cavalariça? – dizia-o em alusão clara ao facto do primeiro marido ser da tropa. -, “morreu, puta, deste cabo dele, não foi? Rebentaste-o debaixo de ti..., agora rebento-te eu, que vais ver o que é um homem.”

Francelina foi a enterrar. O povoado inteiro em torno das crianças. Os padrinhos a adivinhar a falta. Cada um para sua banda. Cada um por si, ou Deus por todos...

Ele seguiu o padrinho, sapateiro de profissão. O pai desceu ao Vale três semanas mais tarde e naquele mesmo dia fez-lhe a trouxa, amarrou-a um pau e deu-lha para a mão.
“… vai, o teu padrinho já te espera. Aprende a profissão. Aqui não há lugar para malandros”.

Tinha onze anos. Olhou pela última vez os cães, olhou a casa deserta das feições de sua mãe. Abraçou. um a um. os irmãos, desceu o monte, procurou o vale e lá a casa do sapateiro… era noite fechada. Guiou-se pelas estrelas “uma, duas, três, quatro … sete-estrelas e umas botas”.
Mãe...m ã e ... mm ãã ee ...”
Apenas o eco: Mãe...m ã e ... mm ãã ee ...” Um homem não chora! Não era homem: chorava...

“ ... um dia hei-de fazer-te as botas, filha. Se não as fiz para ela...”
Nunca a nomeou. Como se as lembranças o matassem dia a dia, como naqueles dias em que o via a ele a possui-la, à sua mãe, ali na cozinha de lenha, quando o julgavam já acamado. Jurou que um dia o matava... mas ela morreu primeiro. A sua mãe. Tinha onze anos e foi ser “maltês”...

Olhava-as agora, castanhas, na cor da terra, da terra que aguardava para sempre: as suas botas (que nunca usara), as dela, que nunca as tivera ...
Abraçava-as devagar. lenta_mente.
O céu em Lua cheia.

Soltou os cabelos cor de fogo, os que herdara dela, e, num gesto insano possuída pelo tempo que não foi seu, jurou à Lua que nenhum homem a possuiria sem que a amasse de verdade, que nenhum homem encostaria um dedo que fosse no seu corpo sem que da sua alma se tivesse primeiro apossado em troca da que lhe tivesse confiado. Magicamente calçou as botas. Perfeitas. À sua medida.

Dizem que é Ninfa do Tejo, que o Sete-estrelo dança nas cores de seu olhar ...
                    Dizem!




___
Notas:
In Wikipédia: “Sete-estrelo”- Trata-se das Plêiades, um grupo de estrelas na constelação do Touro, que consistem de várias estrelas brilhantes e quentes, de espectro predominantemente azul. A névoa azul que as acompanha deve-se à fina poeira interestelar da região em que elas se encontram que reflecte a luz azul das estrelas.
Referências Bíblicas a Sete-estrelo:Livro de : 9-9 [...] quem fez a Urso, o Órion, o Sete-estrelo e as recâmaras do sul"; 38-31 "Ou poderás tu, atar as cadeias do Sete-estrelo, ou soltar os laços de Órion?" ; Livro de Amós: 5-8 "[...] procurai o que faz o Sete-estrelo, e o Órion, e torna a densa treva em manhã e muda o dia em noite; o que chama as águas do mar, e as derrama sobre a terra: o Senhor é o seu nome."

sábado, 15 de outubro de 2011

o mistério da água


(REPUBLICAÇÃO)

habitava o mistério da água. a estação termal da pele. curandeira de si e dos demais vagueava a encosta em busca da planta certa para a enfermidade que assolava a plebe. para si mesma escolhia a mais amarga - bebia, não raras vezes, o fel da terra, e, reconfortada, numa espécie de penitência póstuma, prosseguia viagem num voo invertido de quilhas e asas.

naquela manhã deu-se conta de que acordara inversa à tão desejada resistência,  ao efeito triturador do tempo.  acordara  na forma atópica da derme, salina, ainda que, reconhecendo a (ainda) plasticidade cerebral. acordara crosta que  ao mais pequeno sopro se exaltava em manchas desmesuradas, ora vermelhas, ora enegrecidas à cor serosa das tempestades. os dedos avermelhavam-se no efeito emocional de um botok que recusava.  no texto e no contexto, bebia do mistério da água, um a um, de todos os factores, genéticos, epigenéticos, e dos mais que a ciência ainda não inventara. 

pelo buraco da fechadura olhou-se fronteiriça, anedónica, num estado que temia. pouco prazer já retirava das coisas que até ai tinham ilustrado o traço da sua vida à cor purpura;  mediu-se na fragilidade da sua intolerância, naquele estado em que, urticária ou eczema, tanto faz, lhe provocava o desconforto da reactividade; tomou-se de si, atravessou o quarto de dormir, depois o hall, onde, na semi-penumbra, vislumbrava os olhos dos que antes e depois dela própria, transportavam de si, comum genética.

"a importância está nos genes, na tenacidade, na vontade de vencer, de nunca se entregar... só estes factores determinam a qualidade das pessoas longevas", lera enquanto lá dentro a luta era pela vida a qualquer preço,  ainda que, segundo a segundo, menores as sinapsias e inferiores os reflexos... 
atravessou o escuro do hall. sentiu-se invadida - há espaços que são só nossos. sentiu-se fria. a tal sensibilidade excessiva mortificava-a, e, de novo, na memória, a certeza inabalável de que a natureza tudo resolve e dela, o mistério da água. mas,  e o frio, Júlia? o frio?...
um sorriso mordeu-lhe a alma  "júlia, tu sabes, os astros não morrem, arrefecem..."
pegou na toalha, abriu a torneira
deixou que o fio escorresse do inox
  livremente,
já quase a transbordar 
entrou na banheira, deslizando, ela, a pele, o esmalte, as mãos, os gestos, 
            a contornar o epicentro das tempestades - ao momento, recordava-se, apeteceu-lhe  gritar o instante inacabado, a fúria da charrua no encontro da várzea, o vislumbre nunca cicatrizado
sequelas
recidivas, e,
de um poema, uns versos,
"as sereias não se atrevem nos pastos, 
nem as musas acolhem as lágrimas
nuas 
nas  conchas convexas dos olhos..."
nos seus lábios, a palavra 
e o silêncio desconexo de neurónios - sinapsias menores...
embotada, emoliente, a água.  alambica-lhe a chaga -  voz  que não saía, retida,  grude,  intolerante,  na garganta -,  um poço de parede vertical onde  deslizava em fogo um nome, epigrafado em sombra crua,  decalcado ao picotado da uva e onde, o mosto nas primeiras chuvas, fermentava a matriz das horas silenciosas num embolo alagado de um lagar sem bica - o outro lado onde a noite se circunflexa pestanuda em vasos nasogenianos  e no contorno dos lábios - o tal  local  onde  as rugas se anunciavam na secura das águas, na flacidez das carnes. das suas carnes ...
deixou a mão descer,  tocou-se. pressentiu o canyon acontecido, texturas de pedra e de ostra nos sedimentos e na geologia de uma vida. a cabeça, depositada contra o rebordo da banheira, descia, lenta, sem esforço, em apneia, ou talvez não...
convicta júlia deslizava o vale, o mistério da água, a confluência dos tempos compositivos.  na sala a grafonola tocava  prodígios e metáforas, félio alimento de sua alma. na caixa de pandora o valete de copas discutia percursos alternativos com Alice do país das maravilhas...

a cabeça submergia a espuma, os dedos avermelhavam-se, a mão, por fim, tombava;  a água encontrava o caminho da água,  o amor era uma estação ao lado... Júlia!



domingo, 2 de outubro de 2011

A menina dança?...

  (REPUBLICAÇÃO)
Ouvia-o já como se seu não fosse. Irritava-se que batesse. Que batesse ainda. Umas vezes em fúrias arrítmicas, e outras, de uma forma tão serena, tão doce, quanto uma tarde de Inverno à beira de um rio de águas cinzentas.
Questiona-se tantas vezes porque ainda não deixara de bater. Porque não poderia ela, à semelhança de outras partes de si, prescindir dele, sem mais? Como os dentes, que já não tinha, por exemplo. Afinal não passava de um músculo. Um mero propulsor de sangue, vestido de túnicas sucessivas. Como uma bailarina em pontas.
Ai a dança, a dança…
Ainda presente as lições do corpo humano, a sala inteira:
- ... pericárdio, miocárdio, endocárdio, outra vez… mais alto…, pericárdio, miocárdio, endocárdio,
ou
- aurículos, ventrículos… aurículos, ventrículos…
Era o tempo em que o coração era o que era e nada mais. Tempo finito, deu-se conta bem cedo, no dia em que
- A menina dança? Psi, psi … A menina dança?...
fez com que o dito músculo se tornasse, de súbito, incontrolado. Descompensado, e, quase juraria, entoasse mais alto que qualquer instrumento em palco. Afinal, razão tinha a professora quando lhe falara que se tratava de um “músculo involuntário”.
- Brancas, no corpo humano existem duas espécies de músculos: voluntários e involuntários. Os primeiros, tu dominas com a vontade, com a razão, com o que te ensina a moral e os bons costumes… tu dominas as mãos, os pés, como sabes. Tu dominas os movimentos através do que te é dito pelo sistema nervoso central, mas Branca, tu não dominas, por mais que queiras, a quantidade de batidas do teu coração… ele é um músculo involuntário, caprichoso. Muito caprichoso, que, inclusivé, se mascara do ponto de vista da fisiologia com estrias, como se fosse do grupo dos músculos voluntários… sabes, não dominas os sentimentos. A saudade. A lonjura que o tempo não esbate… não, Branca, isso não se domina,
Nesses dias a professora parecia voar para longe. O olhar tornava-se mais negro, no azeviche do luto, do mosto dos lagares de uva tinta, das azeitonas sob as prensas. Tardava o regresso das palavras sábias, da ciência. A sala ficava suspensa num limbo nostálgico. Só as batas brancas eram ainda asas fulgurantes sobre as mentes. Como branco o nome de Branca. E ambos pareciam reflectir os últimos raios de sol daqueles instantes invernosos…
- ... repitam comigo, vá. Quero isto tudo na ponta da língua. Agora as válvulas: Mitral e Triscúspide…
É difícil, bem sei, mas recorram a mnemónicas (sabem o que é, já vos ensinei…). De novo, agora, tudo… pericárdio, miocárdio, endocárdio … aurículos, ventrículos… aurículos ventrículos… válvulas … o coração é um músculo involuntário…
Ele vinha, de um lado ao outro da sala.
Fato completo, sapatos de biqueira luzente. Cabelo puxado na brilhantina, anos sessenta.
Ela, de laço engomado na cabeça, de olhos baixos, fingia não perceber que o “menina dança” lhe era dirigido.
Ele insistia:
- A menina dança? … O dedo em riste. Sorriso calculado. Nem demais nem de menos. Como convinha. O embaraço. Dela. Os cochichos de Dália, atrevida, a seu lado…
- Branca, é o tal, o que estava no Domingo passado na leitaria… é tão alto, Branca… um figurino…não te armes em difícil, em pura donzela, que ele desiste …
- Dália, por favor, ele ouve…
- Que oiça. Eu ia, se ia … mas ele está é de olho em ti…
Ela também iria... Mas, e o medo? Da fama não se livrava. Mas havia que não dar crédito a falatórios de quem nada sabia. Gentes sem cultura que se entretêm só com a vida alheia. O meio era pequeno. Todos falavam de todos. Ele um gentio. Chegara à terra há meses, a bisbilhotice era, pois, natural ...
Por fim, após o compasso de espera, um olhar aprovador. Da mãe. E um “vai, mas olha o respeito”. Branca avançava a pista. As pernas bambas, a pele coberta de gotas finíssimas... Ai, o coração, esse, corcel sem nexo,
Avançava dois passos. Tímida, dava-lhe a mão, em ponta de dedos. Ele, engomado e tirado das caixinhas, cheirava-lhe, desde logo ao mirto dos dias proibidos. A pólvora dos dias de caça. Inebriava-lhe os sentidos, cantava-lhe ao ouvido a canção do bandido. Na cifra da música que alterava em sussurros de visco. O mesmo com que, nas noites de luar, na lezíria aberta, armava laços aos pássaros - estorninhos, tentilhões e etc.- , com que se haveria de lamber em tacho de barro. Fritos.
- Esta noite, ó pá, caíram mais de cinquenta. É proibido? E eu por acaso sei ler os avisos da venatória? Até sou analfabeto! Que se lixem esses gajos, se aparecerem por lá mergulho no Tejo, respiro horas a fio por uma palhinha. A mim nenhum arma o laço e, se me ensaboam os miolos, quando os apanhar de costas, papo-lhes as “passarinhas“… ossos e tudo…
Avançava. Da cintura fina, quando os pares se avolumavam no centro da pista, tacitamente descia-lhe por sobre a saia plissada. As mãos sobre as nádegas. Duras, moldadas ainda p’la candura. Ela corava, baixava mais os olhos. O coração, esse músculo irresponsável, arfava sob a blusa de bolinhas miúdas…E gostava.
Ou, quando, na valsa, por entre os passos, as pernas se tocavam. Os sexos adivinhados. O dele, incontido. Em poucos meses grávida. De flor de laranjeira e cauda, como mandava o figurino. Sem a bênção dos pais (os dela). Filha única, Maria Branca tinha de seu. Terras e casas. Ele apenas o Sol empinado nas calçadas. E a pretensão de fazer um belo de um casamento. Conseguido.
As lições do corpo humano na gaveta, o tempo passado. Filhos criados. Ela agora a rebuscar os restos no caixote do lixo.
- Cleptomaníaca, que pode um homem fazer? Não é necessidade, é vício, tem tudo em casa. Puta que a pariu. Nem de mola no nariz lhe toco. O que não me faltam são mulheres… ainda dou o meu pé de dança, ó pá, que julgas?
Uma estrondosa gargalhada ecoava o passeio marítimo. O sol descia. Eram horas de voltar para casa. Branca já teria lavado e engomado, feito a janta.
- Logo joga a Liga. Vejo no café, que tem plasma. Também tenho, mas porra, a gaja fede que tresanda. Não fico em casa um minuto. Saio logo que posso. Com ela não me cruzo. Pudera, a mania de andar nos caixotes do lixo. Não precisa, como sabem… Desde que casámos que decidi não trabalhar para que pudesse dedicar-se a mim… que outra razão teria para viver, digam-me lá?…
Ouvia-o como se seu não fosse.
Irritava-se que batesse. Que batesse ainda. Perdera o controlo de tudo e de si própria. Era agora, ela mesma, um "músculo involuntário", tomada de uma necessidade incontrolada de ver por dentro como os outros viviam… o que comiam, o que deitavam no lixo… se se amavam, se se possuíam…recolhia os sacos em pleno dia à vista dos demais. Então, em casa, abria-os e (re)vivia as suas vidas. Como as imaginava. Vivas. Plenas. Ela morrera no dia em que pousara, inadvertida, no visco de uma armadilha.
- A menina dança???
A sirene dilacerava o silêncio. Sob a chuva miudinha, de pernas no ar, suspensa do caixote do lixo, dobrada pela cintura, Branca. Negra agora… nos lábios um sorriso, enigmático, triunfal. Por fim, o tal  tinha-lhe obedecido. Era agora um músculo controlado. A todo o custo. Finalmente.
 - Está morta. Há que chamar a polícia. O senhor é o marido? … Supomos que se tratou de um AVC, mas só a autópsia o dirá...


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domingo, 25 de setembro de 2011

lavanda e zimbre

 
a contornar-lhe os olhos, o cheiro limpo da lavanda.  ladeava a escada. subiu, não sem antes ter solto dos pés as sandálias de corda. gostava de sentir o frio do mármore como gostava de sentir os dias soltos entre os dedos. contudo estava presa a um tempo indeterminado.

riscos do seu próprio traço. ledo engano, que, de alegre triste se sabe. 







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Nota: Este blog esteve, lamentavelmente, atacado por software malicioso proveniente de widgests considerados inofensivos, entretanto  já removidos. Contou com a rápida ajuda da blogger, e, bem assim, com a informação e a ajuda preciosa de leitores amigos. Parece-me ultrapassada a situação, mas,  muito agradeço que, se de alguma forma, for detectado quaisquer problema,  tenham a bondade de enviar mail.

A todos,  um enorme e sincero bem-haja.
Espero poder  beneficiar da continuação das vossas visitas que muito dignificam o meu espaço.
Mel

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

espalhou o verão


espalhou o verão num tabuleiro de verga. colocou o xaile de cambraia afegã sobre os ombros desamparados e foi para o ponto mais ventoso da casa - tinha que se poupar a esforços, e, se aquela era a hora e aquele  o lugar, não haveria com que hesitar - soltou a alpista no epicentro da peneira, deixou que as cascas soltas vaiassem o verbo, deixou que ousassem colar-se à face antes que, respeitando a gravidade, tombassem na  tijoleira, deixou  ainda a arte da debulha galgar as várzeas e as serras  a tropel dos sentimentos, os últimos sempre  filhos pródigos retornados em  ombros ao brilho mortiço dos olhos,  e,  por ali ficou, no gemido das águas, suspicácia sua de folhear os dias em troca directa - entre si e a mãe-natureza sabia não existirem artifícios - tudo, mas efectivamente tudo,  se desvendava na forma simples e prismática  -, o sol,  a luz, a lua, e ele.  seu, no absoluto da posse, o mar, o oceano coralino das suas faces,  o mesmo que  lhe bebia o rio e o lodo das margens - ele, sempre ele, era-lhe, ainda assim, a quinta-essência paradigmática.

 espalhou-se com o verão na longitudinal dos meses verticais. a boca, em certos dias, sabia-lhe a sangue, o  sono era então inquietude preponderante. noutros dias, a boca era-lhe um lugar sem amo, fenda palatina onde mergulhava em silêncio,
diz que (assim escreveu no único bloco disponível, a toalha de  mesa,  com nódoas de café …)  por entre os mastros das pequenas embarcações o vê - ao rio.  azula-se, algo  acinzentado, a caminho da foz em cama áspera de correntes. a luz é-lhe leve, contudo, na planura mais profunda do tecido. aconchega o xaile,  soletra, em récita:  alpista, bago, bico, de-lacre, de lápis, pernalta da beira d'água,
geme baixinho ... aconchega o xaile à pele dos ombros, 

relocaliza o olhar por entre os mastros. no vislumbre 
a língua ténue das lezírias recobertas de restolhos amarelecidos, depois o céu, implume, onde castelos de nuvens brancas montam sem estribos o dia poente - o casario nas suas costas é-lhe indiferente, como indiferente o bulício do espaço onde se sentou consigo,
indemnes e cabisbaixos, são-lhe os olhos dos cães vadios, onde crava os seus, famélicos,  tristes, solitários, encravados no rosto, tisnado e já rugoso - de nada valem dos cremes e as mezinhas que se apregoam redentoras, a verdade afunila o tempo,  inquebrável,  a marcar-lhe o ritmo da passada, na, igualmente inquebrável força dos aturdidos pelos signos, em perseguição de miragem - a juventude não volta, vês? 

 madalena abre a mala, retira o livro, sofre de codícia literária, um apetite algo desordenado pela riqueza das palavras, nada intratável dizem-lhe as amigas, a zé, a jó, ambas psicólogas,  com quem toma o chá das quatro - o das cinco é, para ela que madruga antes dos corvos a quem estão destinadas funções de cães de fila em guarda das sementeiras no ardor da alvorada dos galos, e das ressacas dos padeiros, a hora britânica das cinco, é,  sublinha, quase tempo de ceia - janta cedo e dorme com as galinhas - há sempre um livro, um ombro amigo que a espera, enamorado, quando regressa aos claustros e a lua se espreguiça maquiavélica nas janelas e nas entranhas; abraça-o, engoda-o, amorosa e terna, toma-o, voraz, entre os dedos, aflora-lhe os lábios, e só depois, reconhecidos no acto consumado de entrega e posse, dá início à leitura tentando reposicionar-se no que lera antes, no dia anterior, na semana passada, no mês antecedente, o tempo não se  regula no tempo das páginas, a leitura é sempre diferente  quando retomada de outro ângulo; dá a si própria  o benefício da dúvida, o primeiro capítulo foi lido, se não recorda o enredo não importa, adiante. recomeça em leitura  no segundo, olha o marcador  que repõe, metodicamente, sob a mão esquerda, com a direita vai acompanhando a linha, letra a letra,

…até nos dias em que dizia que tinha esquecido, era sempre aquele o primeiro pensamento. mesmo nos dias em que o matava, era, em ressuscitação maior, que o tinha em si, mais largo que o vento, maior que as tempestades engolidas na boca da fala;  tudo me faz lembrar que te imagino  - a morte das árvores, até das mais sadias, são sinais inequívocos  de que,  se podem eu posso, morrer de pé, 
depois tu chegas, 
atravesso os restolhos, o labirinto sigiloso da metáfora, onde me escondo, dou de fronte com os chaparros, juro ouvir os urros dos javalis, o sinete grita a desfolhar do avesso os espigueiros, os cabelos secos do milho-rei, os chicotes varrem os versos vindos do sertão, vindos de além, algures sou moura - é alcácer-quibir sem  d.sebastião, são vogais como alcateias a soletrar a voracidade das fendas, a aridez desértica onde me perco, onde me acho, tu está perto de mim, sei o teu cheiro, conheço cada movimento de ti, talvez seja alcácer-do-sal, a janela de amaralis, a leveza de um texto, a premonição rasante ao olhar do cavalo alasão,  o porte grandioso, a cor aleonada,  de um tom amarelo-claro, extremidades carregadas. desmonto o puzzle, desconstruo o vórtice, o vértice, o ombro negro da espera,  a viuvez do tacto, os dedos têm agora as unhas verdes, soletram os bichos rastejantes - há uma vida inteira em cada peça, cada cortina, mesa, cama ou candelabro - há  ainda os teus lábios,  os meus lábios, a insistência compulsiva de te evocar nas hastes fintas do silêncio...
há ainda este lugar vazio, onde espalho o verão, o dedo indicador a impedir a perda,
em que lugar se perdeu de si, do texto, em que lugar do compêndio se fez, do desvio, a norma - foram sempre restritos os seus códigos e consonante a conduta, até que, 
madalena, 
que importa isso agora? há oito dias poderia ter sido importante, o verão ainda estava lá,  espalhado no tabuleiro das damas, no jogo de xadrez, o corpo sabia a sal e as moscas azougavam as orelhas moucas das mulas, sentava-se na beira de água, era criança com rugas, não tinha BI nem identidade reconhecida,
havia um pessegueiro na ilha, bem sei, fui eu mesmo que consumi o pêssego e fiz peixinho com o caroço. o miúdo riu-se, és uma tonta tia. não acreditas?, que me importa,  mas fui eu,  sim,
havia burros, também. são espécimen desprotegida; na ilha faziam, como nós,  a travessia na maré-baixa… por vezes a onda, bem sei, a onda,  a canga, a carga toda...

bem sabia -  era perniciosa a natureza das coisas, mas maior seria a saliência onde se enrugavam as formas puras, o leite coalhava e o queijo fermentava no inverno das têmporas;  o verão, benilde,  o verão é sempre o tempo de todas as misérias, sabes?, disse-lhe. as moscas andam mais tontas, infestam os quintais e as latrinas a que esta gente insiste em chamar, pomposamente, de wc's. tu entras e cheiram à cerveja das noitadas dos magotes de turistas, e, em lugares como este, por mais que queira, o maravilhosos das letras não se manifesta na fala dos homens - todos temos  uma puta, olha que a frase não é minha, mas é como se fosse, sublinho-a e repito-a, uma puta, uma muleta, um cigarro fora de horas, umas litradas de cerveja, uns copos de tinto, alguns acumulam putas ao longo da vida, como se, sem vida própria, a própria vida, fosse um bordel de terceira categoria - perdem a essência e não se equilibram no eixo cartesiano  da brisa cristalina colhida na palma da mão das manhãs de estio antes do chicotear do vento, ou, menos ainda, temem  porque temem,  em beber da mão humana a humidade primeira. em suma, zabaneiros por vocação de índole, trocam a felicidade por uma rapadura de porcos, desde que a malga esteja cheia, o copo transborde, não sabem das planícies, e, talvez por isso, a vidas é-lhes uma espécie de deserto eriçado. como um ouriço, rolam sobre pedaços bolorentos de maça,  ainda que os espinhos sejam,  tão-só,  afectos emprestados,
deu-te para filosofar? não, de todo, benilde, apenas te falo da matéria-prima de que se fazem os mitos nos verões de praia, 

... vou contar-te uma história. hoje, como os demais dias, foi-me impossível, sentada aqui, neste lugar  onde espalhei o verão,  não  me instalar algures entre a profissão e a curiosidade mórbida de ouvir  baboseiras, 
dir-me-ás, é feio, muito feio, escutar conversa alheia, bem sei, mas, por momentos, para mim, o homem  ou a mulher, tanto faz, que ali escuto, cede lugar a uma personagem, a um actor em palco - não sei quem é nem isso me importa, recorto-o da cena, o técnico lá de cima coloca-lhe o microfone e oiço, mas oiço claramente - tenho ouvidos de tísica, oiço o que quero e o que não quero;  por vezes é um inferno, benilde, como naquele dia em nisa, às portas de montalvão, em que os agudos do sino da igreja matriz quase me endoideceram, mas hoje foi assim:  ó pá, chouriço, está aqui a meu lado o cremalheira, diz que vais dar uma festa ai em casa, ó chouriço tu esqueceste-te de mim? … logo, às seis? só uns copos e umas gajas? e que mais é preciso? gostava de ir ai, pois claro, ó chouriço, porra pá, sou teu amigo, pois, entendo, mas vá lá... é um favor que me fazes, quem não aparece, esquece... obrigado, mas obrigado mesmo, fico-te a dever  uma, mas  claro que sim, não te causo problemas, é gente fina, mas claro, chouriço, então está  combinado…

três passos e uns quilos de areia mais tarde: ó fininha, a sério, aqui o "je" não sabe para onde  se voltar, a malta não sossega, imagina tu que acabei de ser convidado para ir à ericeira a casa do chouriço, que não posso deixar de ir, que faço lá falta, e, se o amigo pede, e me pede com tanto afinco (está enrascado) ó  fininha,  como pode um gajo dizer que não? …mas é um favor que lhe faço,  que fique bem claro, que fique,  vão ter que me pagar em "géneros", bem vês ... a minha hora tem preço, e preço altoooooo...

 deixou o verão espalhado sob a laje do chão, lugar de repouso dos sonhos mortos - perniciosa era-lhe a natureza das coisas, repetia, acrescentando:  - e a impaciência dos homens. sabia-se frágil.  fez orelhas moucas à ventania, adentrou-se no jardim, as mãos a apanharem das árvores, dos arbustos, a multitude das formas e dos frutos, as amoras das silvas, as ameixas maduras,  e estas, impúdicas,  a tingirem-lhe a blusa envelhecida pelos pecados sem vícios; em simultâneo avançou, os quatro membros em movimento,  sentiu carumas a suturarem-lhe feridas sediciosas, desobedientes em se fecharem, prédicas do seu corpo aos pecados da alma - um palmo, um palmo apenas, benilde, disse-lhe ainda,
um palmo dista da boca à  razão cerebral  e outro palmo, da boca ao coração.  aqui -  apontou o seio esquerdo - , aqui,  benilde, 
a vegetação é nada agora,  no pinhal o sol esturra, e, quando a noite desce e sobe a bruma  logo a seguir em ciclo inverso, quando se aparta a noite do dia alvo, surge, por certo, no topo do monte, o sol raiado... e, no lodo do rio, o catre em que  agonizam os dias infindáveis,

 chamou os gatos e os esquilos para catar o feijão, os cães sabia-os ocupados a guardar as uvas, as andorinhas a ralar a bruma no esforço de soltar a alpista da casca - a cada um, tarefas suas, exclusivas - importa a divisão do pão, a especialização já não se usa. 
rentabiliza os esforços, 
 depois,   liberta  do que, sem préstimo,  se desprende dos dedos, subiu a alfazema dos degraus, correu as cortinas  -  era a hora da codícia,  a tal a que se entregava, noite após noite, 

        dela(s) eram  amplos os caminhos que nascem com o sol e nele findam, pó assente na inverossímil rota  das sedas de um fundo antigo. ouviu ainda, diria próximo, o torpor arrastado da grande ceifeira; ouviu ainda, sem que quisesse, no azar de ter ouvidos de tísica: a senhora está morta...


quarta-feira, 24 de agosto de 2011

porto de lobos



É irreversível, hão há hipótese, disse-lhe,  O poder de agarrar e criar raízes é vital à sobrevivência de qualquer espécie - demasiado grande para arbusto, demasiado frágil para árvore, desatava as margens sobre a arriba a tactear a geografia artesanal das circunstâncias  - o fogo íntimo de um azeite, ardendo.  Eram perigosos os caminhos e o ócio dos homens, lugar onde se ancorava, porto de lobos e  somatório de todas as impiedades que, até onde a vista lhe alcançava espanejavam verdetes à tona das vagas, sepultando barcos, ânforas românicas, de todas as variedades, em especial as de forma ovóide, interpretadas uterinas em barros, à cor da terracota. E as asas,  linhas simétricas. Ânforas, reles transporte de vida ou armazenamento de géneros:  a sapa, o mulsum, a muria, o óleo, ou, como aquelas, sem polvos nem tentáculos. Fundeadas ao largo como distâncias,  imensuráveis, entre as falhas tectónicas a evoluir dos tempos - não se mediam já como outrora,  na vara e  no palmo. No sistema métrico moderno, falam-lhe proféticas as léguas marítimas de que ela não sabia a escala, como não o sabia de (com) sequências, notas átonas, vindas de dentro, que lhe aturdiavam os ouvidos, como agora.

Sentou-se primeiro, as pernas cruzadas à chinês, ensaiou os passos de um ioga visceral, colocou a mão direita em concha sobre o pavilhão auricular, tentou, sem êxito,  repor no oco do ouvido a necessária ordem,  O ar propagava-se dentro, em arco, em êmbolo, e, a descontento,  retornava, provocando nos maxilares cerrados, uma ligeira oscilação, um formigueiro quase imperceptível a olho nu, mas que,  permanecendo, tomava forma de  um zumbido de abelhas, ou de vespas, não saberia distinguir. Um zumbido que, ora a inquietava, ora a  elevava ao antípodas da euforia  -  se a não tomasse, forte,  a mão de um Deus invisível, dançaria com lobos em cornos de besta. Em pontas, na ponta da falésia, sem virgula.  Só a linha do horizonte ilimitado a aplacava.

Na irreversibilidade,  escalava ao promontório donde não via só o porto, o casario, mas a ilha (melhor dizendo, as ilhas) -  o sol, nascido dali, quando o mar se tingia de um amarelo-dourado, ou, em contraponto, se avermelhava, sangue,  e era não mais que um sol de vontades, crepuscular, como tudo o que nasce e morre. Crepúsculo a carmear os fios do que fora antes luz e era noite descida na agulha de tear de tempos idos. Por ali ficava,  semifusa, nota átona, fronteiriça à nascente, dito por outras palavras, olhava em frente imbuída de calma quase hipnótica, singular, a medir-se na distância das coisas, na singularidade de carácter que a caracteriza, a desafiar o vento, rasteira ao chão, a roçar a carne na terna melancolia de um raspão em seda - a pele nua.  Sabia-o lá, não porque o visse. Sabia-o, tão certa da sua existência e do quanto lhe pertencia, sua desde a raiz do universo,  quanto o estava da burrifa vinda de cima, das nebulizações marinhas trepadas contra a falésia, contra o peito,  nos membros tíbios,  nos cabelos presos na nuca. As ondas, sempre as ondas, ouvia-as em desabrigo,  a flautear-lhe os tímpanos mestiçadas nas vozes das gaivotas, dos airos, das  cagarras, dos corvos-marinhos, das pardela-de-bico-amarelo, orquestra que, numa cadência anterior à vaga, acreditava, lhe moldava a consistência necessária - nem mole, nem dura, porque assim se queria:  maleável ao toque mas não perecível caule de papoila, muito menos junquilho seco, igual ao que, entre os dedos, polegar e indicador, fazia rodar em semi-círculos vagarosos,
Não tinha pressa, não era da sua natureza dar corda em demasia aos ponteiros do tempo. Não sabia há quanto tempo ali estava, nem quanto tempo por ali permaneceria. Importava trazer apenas um momento de verdade ao caos da vida - a sua verdade, e disso estava convicta.

Sentiu a chuva fina como que a peneirar o ar. Álgida cacimba, a ilha permanecia lá, num esmaecimento de pálpebras. E, para que constasse, fonte das lágrimas. Depois, deixou de chover. O sol a pino, a buzina das fábricas de conserva, talvez meio-dia. O fumo subia das chaminés; as colinas e os moinhos ainda moravam para lá dos vales. Detinha-se nas pequenas flores amarelas das dunas mais próximas - coisas prosaicas e imaterializáveis que a sustinham presa a si e rasgada do demais. A navegação era sempre feita entre a lei, o afecto e o colo de pertença em que os olhos galgavam distâncias na marcha lenta dos desalinhados, Foste o meu caso mais desesperado, por isso permaneço a esbracejar infinitos de dentro de uma caixa de sombras, por vezes tenho saudades de mim própria, de me libertar do imediato e já não sei cultivar uma relação individual com o mundo, Sou, em simultâneo, tu e eu, e essa é uma experiência, apesar de tudo, sábia, irreplicável,  irreversível. Por isso volto aqui, ano após ano, onde  não me ocorre de mim fazer o culto da compaixão, nem ser-te apenas existência generosa. Mas há a cor, sempre apelativa, sempre egoíca,   

Camada sobre camada, a humidade desaparecia, revelando um tom rosado, depois vermelho.  O fogo vestia-a da nuca aos pés, esturrando-se,  ímpio, no corpo. Agachou-se em busca de protecção sabendo que não existia. Enfebrecia. Esperando o golpe derradeiro, optou por permanecer deitada de bruços, o ventre contra o ventre da terra onde  apoiava os cotovelos de todos os becos tortos do que já foi areia um dia, o tinto dos olhos a acercar-se do tinto do mar, perigosamente. Os tintos a  abeirarem-se, atractivos,  no desejo inequívoco de se reunificarem,
Hortense pungia-se do que não cabia em si. A raiar a arte do  discurso imbecil,  retomou o verbo, O difícil é, continuava, O difícil é quando temos de nos afastar  do ponto onde ficam os nossos mortos - ensombrassem-nos os passos e os rostos tomam os contornos de evidente desamparo, não há remédio  santo para a agonia, nem senhor da boa morte - morre-se como se vive, sem altar nem glória. Sem desdita também,
Continuava a narrativa em tons dramáticos;  pregava às grutas, como Stº. António pregou aos peixes, sabendo que, na eloquência da retórica, não havia, entre ambos,  possível comparação - ela era nada e, das primeiras, se a escutavam, apenas lhe responderiam, regurgitados, os sons ocos dos pássaros. Pregava, ainda assim, apoteótica, na beleza bruta do lugar de arquitectura duvidosa, descendo todas as fendas gigantes onde se via, lava, vitral  em cave, incandescente. Os dedos encarniçaram nas rochas. Sangrava. Haveria de - prosseguia, falando aos corvos -, engendrar maneira de fazer tudo de novo, das formas e dos modos que necessário fosse - às batatas comê-las-ia com casca, cozidas  em água recolhida ali, no oceano profundo, a seus pés. Quanto aos peixes, não deixavam de ser peixes - se dantes circulavam em ânfora, no presente eram-lhe dados à saída dos barcos, trocados por um sorriso, uma palavra, uma taleiga de sementes de girassol de que ela própria  seria transporte, semeadas antes,  na imensidão das pedras onde peregrinava em expiação de todos os castigos inventados - afinal tudo de que se alimentava era frugal, tão simples como ela.  Tinha o seu exército - um batalhão de seixos como carneiros mansos, que recrutava, em bolsos,  e com que acendia o lume, esfregando-os entre as mãos, sangrando - o lume insinuava-se berbérico nos olhos.

Disputando-se a si própria, disse-lhe,
Não fossem os dias madrugados antes da curvatura dos pés, ter-te-ia falado das hortenses e dos jarros que cultivo em vasos de barro e das limalhas que utilizo como fertilizante, parco alimento igual ao que me corta o verde das folhas e das águas,  me fere de ausência  - a tua ausência -, e se aloja, ferrugem  púrpura no chão, nos passos, nas sandálias, solidão  embuçada de nafta,
não fosse a velha da praia me dizer, "Vê como os búzios caíram virados p'ra norte", talvez  nem eu própria...
Interrompeu-se, levantando-se. Era um mastro a adornar a ilha que via à distância. A boca seca em demasia não articulava  som nem  palavra. Do mar vinha-lhe a fome de beber de uma voz cavernosa e rouca, capaz de encontrar atalhos do coração (o seu coração). Uma voz alojada em si, na arquitectura orgânica de um porto de lobos e obra sua, flor, hortense, barro, cor,
Sentiu-se subitamente pesada.  A leveza dos fatos - uns shorts minúsculos do que fora em tempos calças, uma camisa reciclada de um ocupante ocasional da  casa da falésia, um cinto, de um lenço antigo, igualmente reciclado do fundo de uma qualquer gaveta, e, como luxo, absoluto luxo, umas havaianas genuínas  “scorpian bay” (os pés assim lho exigiam, não aceitando jamais uma qualquer outra marca. A insistência pontual resultava sempre em bolhas purulentas, em escaldões dolorosos e sucessivos), e, por baixo, o que, chegada ali, se transformava em obrigatório - um qualquer biquíni, mas somente a parte inferior (os seios deixava-os soltos para que lhe indicassem o norte),   no restante,  perdidos na penumbra, todos os objectos desnecessários -, não podia constituir mister. Flutuaria, por certo. Ou não? Tentaria a apneia,

Beligerantes eram-lhe agora os olhos sobre o manto indiviso das fragas onde apenas o instinto animal a mantinha. Deu um passo em frente, depois outro,  as mãos a suster a nuca, o vento a varrer as costas, a enfunar a vela, a camisa, o moinho, a semente, Queria recordar o futuro, sentir saudades do futuro,  mas era incapaz. E, contudo, juraria que ele estava lá traçado na sua memória, tão vivo quanto o passado, tão passageiro como o presente - uma espécie de triângulo equilátero, semelhante ao que desenhava em pé de galo com o fio barbante achado entre os escolhos dos búzios, retido entre os dedos, como jarros brancos donde bebia a luz do ventre antigo - mãe, Mãe,

Ouvia claro o chamamento, Sim, vou já. Recolheu as telas, os pincéis, a paleta das tintas. Estava tudo? O azul, o roxo, o amarelo, o cobre, o vermelho, o branco. Faltava o verde. Uma profunda aflição apoderou-se de si, olhou em busca e viu-o, estava lá: o verde a apelar ao verde.  Irreversível. Tentou a ajuda da “janela das virgulas” por não suster já o verbo, a frase incompleta a tombar o espaço em branco, Flor, vaso, falésia, hortense, barro, barro, lastro, barco, virgula, ponto,  Hortense, Sim, Senhora, vou já,  um breve instante mais, preciso de recuperar o verde, o verbo, a virgula, o ponto, 
bem sabes, mãe,  sem eles não sou nada,
o tinto dos olhos a acercar-se do tinto do mar, arriscadamente. Os tintos a  abeirarem-se, magnéticos, no desejo inequívoco de fusão, A frio, a quente, o mar, o chão, a terra, Porto de Lobos,

Deixou decair a mão direita, soltou o único botão fechado no pescoço, despojou-se dos braços,  laterais ao corpo, a camisa a ser vela, asa, voo.  Viu-a, viu-se, possível para-pente a descer até ao mar, viu-a por algum tempo. De peito aberto, sentiu os mamilos mais hirtos, dolorosos, soltou o lenço da anca, desapertou os calções, exposta,  
Olha-me, disse-lhe em súplica num fio derradeiro de voz,  Olha-me,  estou (tão)  nua agora, meu amor. Sou-te.  E é quanto basta,
diz-me, para que te oiça,   Hortense, flor, cor, Dir-te-ei: Oferta - e, baixinho, para que só ele, apenas ele, a escutasse -,  Sabes, do que se expõe, maior,  o perfil indelével dos homens escavado aqui na fraga,
Era irreversível,

O tinto a acercar-se do tinto, o verde a beijar o verde…os olhos a mergulharem o mar.

 ___

Notas:
1) Sapa  (xaropes de vinho); mulsum (vinho cozido), muria (preparado de peixe).
2) "Vê como os búzios caíram virados p'ra norte"  in " Búzios, Fado de Ana Moura 
3) "Porto de Lobos", localidade da zona Oeste, cujo nome inspirou este conto.

Imagem da net

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

de um "não lugar"

tomou-se de um tédio vagabundo quando se deu conta de que o pinheiro manso mordia a paisagem e que, por via disso, aquela última se desenquadrava perigosamente dos caixilhos - referiria mais tarde, em nota de rodapé (aquelas que ninguém lê,  em letras bem miudinhas, nos contratos de promessa, compra e venda), a coincidência de,  exactamente na mesma data, a "grande ceifeira" ter retalhado impiedosa a várzea a anunciar que Avelino tinha deixado de transparecer na inevitabilidade das estações da vida. 

sem ter como nem recurso, girou trezentos e sessenta graus sobre os calcanhares a evitar o encontro anónimo de gentes que seguiam  o camarada à derradeira estância numa ladainha lacrimosa. prosseguiu de regresso ao monte  a solenizar impropérios - puta de vida,  a decisão estava tomada - não iria porque sim. nem sequer porque não. negava-se, além do mais,  a subir escadas rolantes ou a acompanhar turistas em “turismos infinitos”  sobre tapetes rotativos cujo destino não era afixado claramente na placa de néon - detestava ambiguidades. partir é sempre morrer um pouco - se lessem Pessoa saberiam, mas que fazer se, na contingência de regressão definitiva o voo era sempre incerto? depois havia  as  dunas, os moliços e o lago e as lembranças,  todas as falas partilhadas, mas isso era noutra peça. dele ficara-lhe  apenas a gaiola, os nós de górdio e as asas de faz de conta. o bico também. e o monte. a cidade mais próxima a séculos de distância.

no ponto exacto em que as várzeas descansavam mais fundas no rio, sentou-se de cócoras,  os antebraços a ocultar os joelhos, os meniscos.  dali poderia, sem que a estreiteza dos lugares o retivesse mais do que se permitia a si próprio, tecer todos os cenários dos próximos dias, dos próximos meses, e, quem sabe até, se a inspiração não lhe fosse parca, dos anos-luz que, com toda a certeza, teria ainda pela frente. o sol  trepava-lhe a pele muito além das linguagens físico-químicas em que o universo se manifestava ignorando o quanto ele tinha hábitos crepusculares - os trovões, os relâmpagos, os tremores de terra, porra, compadre, é disso que falo, a música do universo, bem se vê, 

agachou-se, portanto. a última deixa, antes da partida, deixava-o inquieto "quando nos afastamos do nosso perto para o nosso longe, há um desejo de purificação e uma dor indefesa, similar à vontade de regresso ao útero",

olhou a gaiola que subornara por três vinténs para guardar ostras quando as asas  das conquilhas se abriam, leves, fleumáticas, e a voz se içava  em recriações escorregadias, esmaecendo depois, sem voar,  a seus pés,  em raivas de vagas contra a falésia - talvez voltasse…

vagarosamente solta pela cidade ela  decompunha-se em notas.
vagarosamente livre na liberdade provisória das correntes, modelada na elegância dos gestos e sempre discreta, percorria pautas, tangente aos bicos de uns, ao focinho molhado de outros, e, para que constasse, aos lábios de terceiros, marginando o rio. detinha-se, por vezes, em precários palcos de tábuas mal escoradas onde ele parava,  incerto, desenfreado, a fazer sapateado, a dançar o fandango - foi numa dessas viagens que se encontraram. numa espécie de aeroporto onde todas as vestes são possíveis e nada parece estar em desacordo com o cenário de fundo “um não lugar”, portanto.
sempre atento,  falou-lhe da hora exacta,  do ponto certo em que o rio se entornava para dentro da sarjeta, de quando a seca abria galerias ridículas no seu sítio,  E tem nome? perguntava-lhe ela enquanto apertava a saia de alças, Claro que sim, todas as coisas têm nome, se não o têm não existem,  o nome é que dá forma à matéria oca dos espaços que estão sempre entre o trilho da hora árida e o estado gasoso da erosão hídrica, Chama-se Cova de Alfarroba, mas eu chamo-lhe Cova do Lobo, Não te canses,  retorquiu-lhe, para mim esse nome faz sentido se tiver uma lancha rápida, uma carruagem  de sete-léguas, ou sete milhas, tanto faz, a cortar a tarde e a noite souber da tibieza dos bicos, da lentura dos focinhos, e as bocas (as bocas são muito importantes) não se rirem descarnadas de dentes sempre a assobiarem indivisíveis condicionamentos, e, ainda assim, tu me replantares alfaces e ervilhas no plúbeo acto dos sentidos e lentamente (me) respirares as cinzas mornas da lareira para que viva,  e  porque,  seja inverno ou verão, como bem sabes, não prescindo de sopa e não daquelas de basta juntar água. além do mais, o borralho, como lhe chamas, faz-me falta, e a labareda dá uma cor especial à música oculta de "um não lugar",

ele a tudo anuía,  abanando com a cabeça. antes que dissesse sim ela levantou-se. consultou o relógio de aço inoxidável - um tacho que boiava à tona  de uma parede fronteiriça - arte moderna, seja lá o que for que isso quer dizer -, riu-se da sua inclinação maquiavélica de se repetir em palavras que nem o vento escreve  nas searas  e, por oposição à textura perecível do rasgão,  riu-se da  "grande ceifeira" que avançava  nos campos de nenhum lugar, riu-se ainda mais da forma anquilosante (e disse-lho, claramente) como  via  centopeias de  mil patas  no movimento entorpecido dos espantalhos em searas vazias,  Manqueiam, sabes? passam de uma pata para a outra, firmam-se na primeira, mas nem por isso o andar é mais ritmado, sofrem de ancilose, quase juro, os ossos, qual abutres, são uma espécie de gancho a gadanhar o rio...  

Sem aviso, interrompeu-se a si própria.  disse-lhe: é a hora
saltou para a plataforma, apanhou a primeira linha - o comboio chegaria depois. quanto a ele, voltou todos os dias à encruzilhada a ruminar as falas na esperança de que se fizesse luz e que, se aclarasse em si, o exacto lugar onde enterrara a vida.


Imagem: Fefa Koroleva

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Morreu Serenamente



- gostava tanto de dançar, menina, tanto … dizia-lhe enquanto a percorria num sorriso de luz na memória revisitada naquela manhã de Inverno quase Natal..
- toma um chá quente, D. Anália?
- tomei um de manhã, menina, ao pequeno almoço…
- mas quer um de novo? só para me fazer companhia… vá lá ...
A cabeça a abanar afirmativamente. E um novo sorriso de gratidão imenso, rasgado, sereno. Pelo chá, pelos cinco dedos de prosa, que adivinhava ia ter…
- aqui tem. Com pouco açúcar. Desculpe … tem de ser, como sabe. O meu é mesmo sem nenhum, que gosto do sabor das ervas…
As mão tremelitantes num afagar de chávena. E as da interlocutora a tocarem as dela. E ambas em sintonia. Em rota. Em busca astronáutica da poeira e da poalha dos astros.
A cadeira de rodas encostada ao lado e a poltrona cheia de almofadas. Os pés poisados, os pés cansados, num pequeno banco a que chamava seu…
- ajeita-me o banco, menina? Só um bocadinho mais para trás, vai deslizando no mosaico… ai estes pés… tanto que dançaram menina, tanto…
- o que dançava D. Anália?… no rancho?
- no rancho? Não, não … danças de salão, tango (gosta de tango?), valsa, (e valsa, gosta?) … sabe, a vida é tão rápida, tão, mas tão rápida ...tenho tantas saudades, tantas… das tardes em que dançava, do meu par.
- seu marido?
O olhar agora enigmático, fugidio, volátil, a esculpir figuras cénicas na enseada. A ansiedade de saber o quanto já era tarde. O cabelo branco, tão branco, a emoldurar o verde-cinza do olhar. E o sonho misturado com a magreza da realidade.
- não menina, meu par na dança, apenas … O meu par real era outro. O meu marido não sabia nem gostava de dançar. Escolhi então aquele (e ele me escolheu a mim) e nos seus braços, menina, encontrei a liberdade… Era tão lindo o meu par… esguio, alto… nunca mais o vi.
O olhar agora longínquo beijava a memória dos tempos de que não havia retratos. O olhar de Anália girava em ciclos concêntricos parados nas rodas da cadeira de rodas. Na incontinência total, de fezes e urinas, que não raras vezes a tornavam alvo de chacota. Dos outros. Dos pares ali em sala...
- está toda borrada. Outra vez…
E as fezes, líquidas, incontidas, a chegar aos pés da mesa. Em poça. E o almoço de todos completamente estragado. O desconforto. A mágoa. A impotência face ao cruel da realidade.
- tão triste ser velho, menina. Tão triste…
Um afago breve - “esqueça, D. Nália, foi apenas um incidente. Já se limpa tudo, verá…. Fará a sua higiene, voltará aqui à mesa para fazer a sua refeição …”
A cabeça a abanar compulsivamente. Não. Não, nãoooo... Depois o olhar indiferente… ausente. Talvez algures a lágrima. Não chorava.

Agora a dança. Um sorriso de pássaro livre. Fora. Seria até ao fim.
- está bom o chá, D. Anália? Quer uma bolachinha de água e sal?
- não, obrigada, não se mace. Basta que fique por aqui… é bom conversar…

Morreu serenamente. Na mesa, ao pequeno almoço. Sem uma palavra. Acompanhada pelos pares da casa última antes da derradeira morada…



sexta-feira, 22 de julho de 2011

A RIQUEZA DAS NAÇÕES

Ao acordar, ao ouvir o noticiário,  veio-me à memória este texto, escrito e publicado aqui, há  três anos atrás... Entre as tristes realidades, a da ilha italiana povoada de clandestinos, o desespero a matar tanto quanto a fome num mar a virar barcos,  a voz indignada de um bispo que não se inibe de denunciar realidades, a arrogância dos ricos,  o fogo-fátuo de  vaidades, os lucros desmesurados dos bancos, os sem-abrigo ... Viajei no tempo ... O que é na realidade o tal conceito de "riqueza das nações"?...Simples - uma cadeia inequívoca de solidariedades - Porquê??... talvez porque,  
a(s) casa(s) fervilham de novo,  falam em várias línguas,  incluindo o gesto,
porque crianças e idosos, animais e pessoas, convivem e partilham espaços e vontades,
porque todos os cantos cheiram sempre a bolos e a compotas,  as andorinhas  olham espantadas o "entra e sai" e, mesmo assim, por cima da porta, no seu ninho de anos,  alimentam a nova ninhada  de bicos em trinados mansos (mais quatro),  os novelos de linhas brincam com a gata, os óculos da avó dormem esquecidos no sofá,  a areia,  a lama,  não se soltam dos pés dos que não têm força para os esfregar no tapete da entrada (pouco importa), os tapetes brancos ganharam os tons do giz azul  do quadro de ardósia e o chão geme riscado sob os pés das crianças, sorrindo,
a vida vale, digo eu, pelos afectos...
e porque,  acima de todas as coisas, esta é para mim a verdadeira,  a derradeira, "riqueza das nações", além da  senhora Ângela Merkel, de todas as cimeiras, de todos os pactos de (d)estabilização económica, do euro e do escudo.
Boas férias a todos, meus amigos ...
______________ 
 A RIQUEZA DAS NAÇÕES

Quem se aventurou por algumas leituras sobre temas económicos, certamente conhece o título acima, “A riqueza das nações”, como a obra mais famosa de Adam Smith e não deixará de se recordar da metáfora a que está associada : “mão invisível”.

Extrapolando esta metáfora para um âmbito maior que o económico, tenho por quase certo que, em rigor, existe uma espécie de “mão invisível” que nos encaminha, nos direccionada, para esta ou para aquela vereda ou via aberta de uma estrada, a estrada da vida.

Quem me lê, saberá por certo que não sou dada a crónicas, talvez porque me falte alguma capacidade de síntese e as palavras se me embrulhem sempre em redundâncias “poéticas”. Todavia, existem momentos em que me dou conta duma espécie de necessidade estranha de partilhar o que me vai em mente. Para além do grupo dos que me rodeiam (famílias, amigos mais próximos). E este é um desses momentos.

A “Riqueza das Nações” que aqui vos deixo,  é pois, uma crónica de um dia real, de um tempo real.

**

Maggen chegou. Esperava-a no aeroporto sem estar certa de que a iria reconhecer. Vira-a apenas uma vez em Boston em Outubro passado quando visitei a minha filha. Estivera escassos minutos com ela, e, para além disso, vira algumas fotos. Da amizade que entre ela e a Rita, minha filha, nascera, numa convivência diária em partilha de casa no âmbito do estágio que ambas efectuavam no Instituto Oceanográfico de Boston, surgiu  então o convite para que nos visitasse no Verão. Os meandros da visita foram acordados entre ambas. A mim cabia-me a tarefa de tornar do ponto de vista logístico e afectivo a sua estada tão agradável quanto possível. Seriam dez dias repartidos entre a morada de família nos arredores de Lisboa e, a casa de praia, em Peniche.

Rita trabalhou o programa de visitas na cidade. A determinada momento vi-me incluída . Se estava de férias, poderia acompanhá-las. Confesso que hesitei: o que faria uma mãe “cota” junto de duas jovens, perfeitamente autónomas, perfeitamente adultas, pela cidade?  Rita nem admitiu recusa: - Vais sim, mamã. Está decidido! Vais!

Fui. Desde o aeroporto, até ao dia de ontem, em que Maggen partiu de regresso a casa, desde que chegou, estabeleceu-se entre nós uma “química” de mãe/filha. Maggen adoptou-me, e vice-versa. Se, nalgum momento, as não acompanhava, Maggen queria saber porquê. Se me via mais calada, inquiria porquê. A dado momento, num dos dias em que a minha saúde não me deu paz, Maggen, disse uma frase que jamais vou esquecer: - “numa casa, quando a mãe não está feliz, não está bem, ninguém está bem…”. E, ela, Maggen, porque me viu mal, não estava bem… percebi. Maggen tinha genuíno interesse pelo que escrevia, queria ver os meus trabalhos, por exemplo.

Os dias corriam, voavam, sem ter a sensação de que tinha uma “estranha” em casa. Não era, desde o primeiro momento. Usava-se o pijama pela casa, andava-se descalça(s). Mostravam-se cabelos desgrenhados se fosse o caso. Não haviam figurinos nem “faz de conta”. Éramos tão só quem éramos: uma família normal, com um dia a dia normal. À noite e na noite, a Maggen não contava com a minha presença… era o tempo dos mais novos….

No penúltimo dia metade da família foi fazer mergulho subaquático na Berlenga, Maggen incluída. Quanto a mim, que tenho com o o mar um idílio contemplativo, atravessei a distância entre Peniche e as Berlengas na cabine de comandos do Cabo Avelar Pessoa, usufruindo da companhia do mestre, que conheço há vários anos e que,  a  par com a restante tripulação,  me proporciona sempre preciosos ensinamentos sobre os segredos da ilha, ventos e marés - uma espécie de biblioteca viva a que recorro, ano após ano… os saberes dos homens do mar.

Quem conhece as Berlengas saberá da exiguidade de espaços para toalhas e afins. Num Agosto no seu auge, com um tráfego de barcos constante a transportar pessoas, a paz, a beleza daquele santuário da natureza, são, em muito, devassadas.

Com apenas um restaurante e um pequeno bar, quem visita a ilha sem a devida informação, vê-se a braços com a escassez de sombras, com a escassez de água, de bens de consumo. Não existe sequer multibanco...
E, em oposição, filas intermináveis para adquirir uma garrafa de água que seja. Para beber um café...

Conhecedores de tudo isto, abastecemos-nos em terra, e lá vamos nós, de geleiras e chapéu de sol…

Éramos um grupo de mais de uma dúzia de pessoas, adultos e jovens adultos. Portugueses, todos e, claro, a Maggen. De viola em punho, o meu filho João alegrava o grupo, a Ana cantava, fazia “tererés” no cabelo dos amigos… enfim.

A determinado momento olhei e vi que, junto a mim, uns pés buscavam ávidos a sombra. Nem me tinha apercebido da sua chegada. Uma mãe (admiti) e dois filhos adolescentes. Dois rapazes. Olhei com mais atenção e percebi: ingleses, porventura. Brancos como leite, sob o sol escaldante do meio dia, no funil das falésias… Não resisti, aconselhei que usassem chapéus, t-shirt… Não tinham chapéus. Não tinham nada, percebi depois. Haviam chegado ao cais de embarque, viram da possibilidade de ir à ilha e, sem que tivessem a ideia de que a ida implicava permanecer das 11.00 da manhã às 4.30 da tarde, foram. A viagem que presumiram de uma hora, era afinal … de um dia.

Estabeleceu-se o diálogo. Juddy, a mãe, era oriunda da Escócia, a viver em Amesterdão. Visitara Portugal nos anos oitenta e voltava agora. Estava espantada com a mudança do país, com a mudança de mentalidades. Dizia que os Portugueses de oitenta eram fechados, sorumbáticos. Os de hoje, de rosto mais aberto, de trato fácil. Mais cultos, mais disponíveis. Questionou sobre Maggen… que se apresentou como “nossa filha americana”… Rimos todos.

O dia decorreu, entre mergulhos e partilha de empadas, de sumos e sandes diversas. Entre troca de experiências, de vivências e, por fim, troca de e-mails.

A determinada altura, disse-lhe: - "O mundo é mesmo muito pequeno… Rita irá brevemente para a Escócia, fazer o seu Doutoramento."

Riu. Na Universidade para onde Rita irá, lecciona um familiar de Juddy... “não há coincidências", pensei … a tal mão invisível a comandar quem cruza com quem nesta longa estrada da vida, verbalizei.
Juddy respondeu-me: - “se não bates à porta, não sabes se dentro está alguém morto ou vivo…”.

Claro, Juddy, tens toda a razão. A questão é que, tantas e tantas vezes, temos receio de abrir a porta, ou melhor, de bater sequer… e, por fim, dei comigo a pensar que a “riqueza das nações” é, indiscutivelmente, as pessoas. O seu recurso maior, o que marca e faz a diferença, o seu cartão de visita. Para além da beleza das coisas, da natureza, dos museus, a arte natural ou construída. São as pessoas o seu bem maior. O que os habita, a capacidade de se revelarem, de se darem aos outros…

Quando voltei a terra, no Cabo Avelar, revi os meus últimos dias, um a um. E achei-me mais rica. Indiscutivelmente mais rica. Tão mais rica. Não sendo crente num só Deus, mas na força cósmica, intimamente, agradeci ...

Maggen foi fazer umas compras de última hora. Quanto a mim, entretanto, preparei o jantar. O seu último jantar desta temporada. Desejava que fosse a seu gosto. A campainha tocou. Era Maggen, com um ramo de flores. Esticou-mas.
Olhei-a sem perceber…
“ flores?...”
“sim, para a minha mãe portuguesa …” . Abraçámos-nos, ambas já saudosas. Penso que Meggan interiorizou o conceito de "saudades"...

Volta Maggen. A casa é tua, a família é tua. A riqueza das nações, são pessoas como tu, como Juddy, como os filhos... pessoas que ousem partilhar afectos.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

basalto

quando te talhei no basalto dos meus dias, pedra angular onde despertam verbos de cansaço, procurava a linha original do beijo porque ansiavam os meus lábios, o antídoto,  a sombra clara das dunas em poças de marés,

quando te bordei, epigrama, no linho colhido na estepe selvática,  respeitei o rigor do ponto, a bordadura antiga –  à luz da candeia estilhacei cada pálpebra ou membrana ocular,  todas as pestanas do silêncio,  todas as palavras desnecessárias, todos os desconfortos implacáveis da expulsão do paraíso.  num jogo de tesoura papel ou pedra fui  peleja desabrida quando,  fora de mim o mundo dormia e acordava louco,  e eu  imaginava a minha pele na tua,  a renovação boreal das horas,  as quatro estações de Vivaldi, os lóbulos das orelhas, os  labiais,  carnudos, vagarosos,  pássaros  cor de lima –  a coisa nomeada –  insulas onde a língua  tivesse o sabor a sal e menta, a saliva se profanasse a adentrar a simplicidade terrestre e eu fosse,  da tua cítara a nota final intentada,  pianíssima nota de partitura adquirida a desfolhar primaveras,

na espuma de teu olhar leio o tardio desta hora  –  tão velhas as palavras, como ângulos, cabos rasos sem luz quando, os dedos das fadas roxas gemem na ombreira das portas,  o zimbro tomou conta das roldanas dos estendais,  e [me] gemem e guincham como ratos à beira do precipício em cordas aflitas,  ao mesmo tempo que as meadas multi-cores fenecem por tecer  no horizontes das coisas raras  um singelo arco-íris, e eu não estou certa de que ainda me recorde, do macramé básico,  ou  a forma elementar de realizar
o nó de cotovia,

e ainda assim jurei de acreditar que a fala d'alva era a semente, a consistência da luz  anterior aos ciprestes,  a água igualada a semi-colcheia  que nos brota,  nubífugos, em mapeamentos mentais dos punhos,  compassos abertos de emoções em rocha ígnea, dura e escura,  a mesma que [nos]  incendeia os olhos  no mistério das ondas e nos faz ser crentes de que,  o limite dos homens será sempre o local onde se precipitam as aves e desaguam os rios.  na efemeridade dos instantes  -   lugar da partilha, a incensar, galhardamente, o vento.
sem dúvida que me dirás - há um certo bucolismo em tudo isso, e te respondo, por certo sim, são apenas margens  no poema do teu corpo onde me repousam as claridades de uma certa calma tão necessária, e é, creio,  quanto nos  basta para que não se melancolizem os lábios e as palavras vitais,
as que,  antes de todos os nós, sabiam dos carreiros das formigas, do maturo das colheitas e das vinhas da ira,
e nos conduziram, cândidos e fundíveis,  pelos caminhos do amor,  trilhos de Santiago,
          ... descalços. 


“De todas as coisas, a menos susceptível de se comunicar é o amor; mas a fé no amor, essa age  sempre com um conhecimento acessível a todos os homens” 
Agustina Bessa-Luís, Aforismos.

Imagem da net

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...