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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

sábado, 23 de maio de 2009

A montanha aguarda-nos

Varro a noite em gestos baços na procura breve de já ser dia.
Aspiro do pomar ao lado o aroma perene de maçãs, de laranjas, de romãs.

A lavra recente solta para o ar o bafo da terra quente.
A nogueira eleva braços ao ar, agita-se em ansiedade humilde de te abraçar. Um fruto cai, é noz aberta, casco de barco, em busca do aconchego decifrado do teu mar.
Noz quebrada, rebola no negro da noite e encontra o gelo do alcatrão da estrada.

Abro as portadas, afasto as rendas das cortinas, desembacio janelas.
Atento com mil cautelas no peso dos passos cansados dos guardadores de sonhos e de gado.
A montanha aguarda-os.

A montanha aguarda-nos, pastores de longa jornada.
É prato lauto, d’erva tenra, macia, aspergida - é cidadela fortificada na unidade da vida.
Bebe-nos a essência, roubando, no desafio de comum medo, em recato e desejo segredado, um a um, lentamente, devagar, todos os beijos demorados no cetim do nosso olhar.
O Sol pesponta, tímido garoto. Tremeluzente solta os cabelos revoltos p’los montes. Ao longe e logo aqui, a fraga secular refulge evidente na pigmentação d’azeviche.

Desacatamos ventos, impomos ao tempo um tempo recluso de ternura e de acalmia.
Cinjos, unos, voamos d’asas fincadas na proa das madrugadas, por sobre vales, mares maiores, rios e fontes. Seguimos a rotas das ondas, a quentura das correntes,
sem promessas,
sem bússolas, ou sextantes,
sem guias que não sejam o rasto de comum memória.

Estrelas mareantes, dizemos amor na forma pura. Dizemos amor em leitos vastos e abertos. Em estrados aplanados de crença e de candura. No sal da pele, d’alvoroços acordados.

Enrodilhada na cadeira de baloiço oiço agora o sino d’aldeia, os zumbidos das obreiras, o bulício da colmeia.

E na manhã das horas tu chegas e escreves na tua ausência
o memorial da nossa história.
Chove. Chove agora.
***

Texto anteriormente publicado aqui

sábado, 9 de maio de 2009

“Correspondência ao rio…”

Alhandra, Longitude: 9° 0' 0" West Latitude: 38° 55' 0"

Sobre o muro que a separava à distância de cinco andares do chão abaixo, comprimia as mãos. O parapeito amparava-lhe a eventual queda, separava-a do vazio. Como que para se prensar imprimia força contra o rebordo áspero e estreito. Sentiu dor. Ainda sentia dor…
Na memória a conversa da noite anterior:

“Sabes mamã - dizia-lhe -, o pregador naquele dia em que o encontrei ali em baixo na borda rio, falou-me do seguinte modo:
- quando tu tens trabalhos duros a pele de tuas mãos fica, dia a dia, mais áspera, mais grossa, gretada até, mas mais insensibilizada, ao ponto de, se nalgum dia decidires hipoteticamente andar de palmas de mãos no chão, de pés para o ar, seres capaz de, sem dor, o fazer, tal a dureza com que as intempéries da vida te calejaram. Assim é, meu jovem, com os males do coração, da alma. Aqueles que te não matam, mas que, porque os não esperaste, não te acautelaste para eles, te cortam a pele também te tornam menos sensível. Contudo mais preparado para os que dai por diante possam vir. E, podes acreditar que muitos outros virão. E, doravante sentir-te-ás mais insensível. Isso é bom ou mão? Depende do ponto de vista …

Tornares-te menos humano, menos crente na espécie humana é o que desejas? … Nisso reside a tua escolha. Partamos do pressuposto de que não te queres insensibilizar: só há uma maneira de conservares a pele do teu coração saudável, jovem rapaz… e essa é a fé, a convicção de que aqueles que te magoaram o fizeram porque, eles próprios foram calejados pela rijeza da sua própria vida. E, sendo assim, só em ti está, porque conheces a mensagem, quebrar esta cadeia de ressentimentos capazes de tornar o ser humano desumanizado, se assim se pode dizer…”

Rosário comprimiu de novo as mãos. O tirolês do revestimento penetrava-as quase ao ponto de sangrarem. Os nódulos tornavam-se escuros ao mesmo tempo que as palmas e as costas das mesmas empalideciam …Olhou-as. Bem tratadas, o verniz neutro, as unhas curtas. Dois anéis de algum valor. Subiu o olhar. Os braços não musculados, a pele lisa e ainda sem cor de Verão… A penugem fina a reluzir aos últimos raios de Sol daquela tarde. Conclui: Bom trato. As suas mãos, os seus braços, não conheciam a dureza das tarefas árduas…

À sua direita, sobre a serra, o monumento às Linhas de Torres (o boneco do forte, como na vila lhe chamavam). Os pinheiros. O casario novo no sopé do monte e ao redor de onde se encontrava. De frente o rio… Dali, daquele promontório, a distância era mínima. O caminho de ferro bordejava margens, a auto-estrada do norte fazia uma curva sinuosa aproximando todos os caminhos (os percorridos e os outros) e a fé. ...

A fé … Erguia-se altiva a Igreja Matriz. Branca. Nas Lezírias a outra, a da Senhora de Alcamé. Aquelas eram as suas realidades. E as restantes? Ficção? Uma mescla copiosa de que nem sempre (ou quase nunca) se desligava. Por vezes os lugares comuns, talvez por deles precisar, melancólica, ao ler sinais outros da vera realidade, de realidade inapelável… Sem apelo, apelava-se a si mesma no misticismo dos lugares onde se acolhia em reflexão: o seu rio, as vistas latas onde o prodígio da alma humana não encontrava grades…

De novo a janela das suas memórias se entreabria. Uma leve brisa percorria-lhe a penugem do corpo mordendo-lhe os poros. Abraçou-se. As últimas horas. A alma retalhada, a dificuldade de se desligar definitivamente de quem, amiúde, sem pejo, a vilipendiava. A procura constante de ver para além do mediado, de procurar em cada um dos que a rodeavam o seu melhor, certa de que, se o fizesse estaria a encontrar o melhor de si mesma…

A aragem acossava agora mais forte as copas dos pinheiros. Lá dentro Martinha nos seus sete meses chamava por ela, pelos seus afagos. Uma vida ainda de pele lisa … “La Vie et Belle”, pensou …
No aeródromo um ultraleve içava-se perigosamente da terra batida (não a via, mas sabia-a assim. Batida. Vermelha. “Não temos de ver tudo para saber que existe…”, considerou.). Acompanhou o voo. O pequeno aparelho metálico içava-se rapidamente, tomava altura, num abanar de asas, desenhava sobre o azul do rio arriscadas piruetas. Estabilizava. Depois repetia a façanha uma e outra vez. O risco. A coragem, a vontade de ver mais alto e mais perto …
Abriu os braços. A imagem do Titanic, dos dois amantes na proa do barco… Como se lá estivesse em seu lugar …

“…mamã, já algum dia sentiste a tua pele a ficar insensível? Já alguma vez te magoaram tanto que desejaste não sentir mais nada?…”

Sorriu-lhe. Olhou-o dentro dos seus olhos castanho mel. O seu filho… Um homem a quem a vida não se cansava de pregar partidas e a quem sempre tentara passar a mensagem de que o melhor da vida são os afectos. Os amigos, a família. A quem tentara passar a mensagem de não julgar pelas aparências, de aceitar a diferença, de não sentenciar sem provas. O benefício da dúvida… sempre.
Questionava-se agora sobre o trabalho feito. Márcio tornara-se num jovem de valores, era certo, mas não menos certo, frágil. E, porque frágil, imprecatado para a dureza e crueldade duma sociedade estigmatizante e redutora. Piercings, raztas… “uns galdérios…”.

Sentiu o rio a subir-lhe pelas veias. Aflorar-lhe os olhos numa tempestade de dor. Não, não eram lágrimas salgadas aquelas que sentia descendo o rosto. Eram de uma nova espécie só sua: lágrimas de rio. Doces. Percorriam distâncias em nome de todos os seus amores, naquela janela virada ao Tejo. Espraiada, sentiu necessidade absoluta de não perder de vista a razão nuclear das coisas. De não gastar todas as energias escassas em prodígios ficcionais. A realidade, a sua realidade, apelava-a a dar respostas concretas de forma constante.

De novo os sons de dentro. Martinha clamava os seus braços suscitando-lhe o ininterrupto de novas e sempre renovadas reflexões…

Despediu-se do terraço, do último sol da tarde, das linhas paralelas, das piruetas circunstanciais do ultraleve. Por fim, a norte, do monumento das Linhas de Torres…

Esfriava. Entrou na sala tomou Martinha em colo, sentiu o cheiro da sua pele de bebé e abençoou a vida, sentiu-se viva, fortalecida, revigorada …

“…mamã, já algum dia sentiste a tua pele a ficar insensível? Já alguma vez te magoaram tanto que desejaste não sentir mais nada?…” repetia-lhe a voz de dentro, como eco.

E o eco abrigou-a da própria resposta… Essa, enviá-la-ia ao rio em correspondência póstuma… por ora viveria sem medo de sofrer…


“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...