Sobre mim ...

A minha foto
Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

"marcos-falos" [republicação]

Enquanto viajava detinha-me sempre nos marcos quilométricos da estrada. Uma referência ao destino que, à falta de GPS, me ia conduzindo, dia após dia, a distâncias de mim (ou proximidades) na medida exacta que me aproximava do local para onde caminhava. No caso o espaço onde trabalhava à época, numa perdida aldeia Ribatejana, vizinha do rio.

Era Inverno, no seu início. Os dias estavam já pequenos, bolorentos e tristes. Os frios sentiam-se dentro e fora de casa. E nas almas; e nas palmas das mãos e nas espinhas/esqueletos e nos corpos. E nos corações… no meu, no deles…; no frio congelavam os sorrisos e os afectos. Como conchas, cada um a seu modo, engolia o molusco que o habitava, num processo de pré-hibernação. Envoltos em mantas, uma espécie de múmias vivas. Ali!

“O Inverno, Doutora, aqui é sempre muito triste, depois verá …”. Laura, a cozinheira foi-me adiantando logo nos primeiros dias que cheguei … Era então Verão, num Julho a torrar as uvas das vinhas circundantes. Num sol estuante e inóspito. Não saíam de casa; calor em demasia …, cansavam-se. afogueavam-se…, “...mas no Inverno então, verá… isto é um desconsolo. um dó de alma.”

Via-lhe a verdade do discurso no olhar e nos maneirismos do corpo. E temia que tivesse razão. Temia o Inverno, retinha estas e tantas outras conversas, retalhos amiúde com que ia construindo as mantas trapeiras da minha própria velhice, e que guardava, a contento, em baú de sândalo. Memórias que dançavam agora à minha frente.

Respirava fundo, bebia a estrada, focaliza os marcos. Concentrava-me nos pequenos paralelepípedos de topo boleado a emergir da berma, altivos … na estrada e na vida. Alguns jaziam quebrados no chão de alcatrão empapado pela neblina matinal, nalguns locais gelo, estado vítreo…

Um dia lera de um autor que, a ele, lhe pareciam falos. Falos decepados pela metade (mais ou menos esta seria a ideia, que não me consigo sequer recordar onde e quando a imagem de “marcos-falos decepados” entrou na minha caixa de “parafusos desapertados" …). Pouco importa. Incorporou-se em mim e, em ausência exacta de referência bibliográfica, perdura per si a imagem: “marcos-falos decepados” no rubor da tumescência, no ardor de uma qualquer paixão, ou à falta desta, de excitação induzida, vulgo masturbação.

Viajava, conduzindo maquinalmente e, naquele dia, mais que em qualquer outro, os marcos e as conversas da tarde anterior com Bonifácio, queimavam-me os neurónios, ainda semi-despertos, à falta do café da manhã, e na falta de respostas sociais e socialmente certas.

O que era o certo? O que são as (in)certezas livrescas perante as realidades pungentes da vida? O que é lá isso de “envelhecimento activo?”. Afinal não era esta a temática que me havia num qualquer dia da minha própria utopia, proposto a estudar? - “Envelhecimento activo”… a que níveis? Com que níveis e grau de satisfação? Em que condições? … “marcos-fálicos” …

“...menina, somos velhos mas não somos capados como os porcos, nem sequer nos cortaram o pirilau, entende …, mas olham-nos como se fossemos. Para a maioria desta gente, ser velho é o mesmo que perder tudo. Perder a identidade, perder a vontade, perder a dignidade, inclusive perder o interesse por uma mulher …somos quase robôs, autómatos… “vá para ali, chegue-se para acolá” … lavam-nos e vestem-nos como se fossemos bonecos desarticulados, e, tantas e tantas vezes não entendem que ainda somos gente…”

Dizia-me tudo isto num rompante de palavras, como se, se o não fizesse, perdesse definitivamente a oportunidade de o fazer e, simultaneamente a coragem de, num qualquer dia, numa qualquer tarde, abordar o assunto. Dizia-me enquanto bebia o sal das lágrimas que lhe incendiavam a espaços o olhar mortiço. Dizia-me enquanto as face enrugadas, vincadas aos ossos e aos registos dos tempos, se enrubesciam de genuína vergonha.

Jaime olhava-me fixamente, tentando entender sinais de mim, ao mesmo tempo que olhava, estupefacto, o seu companheiro de quarto Bonifácio, sentado na cadeira a seu lado. Nos sofás em frente, outros idosos residentes olhavam distraidamente o ecrã da televisão, ou, em alternativa, dormitavam… não falavam, quase que não comunicavam entre si. Eram assim os dias de Inverno de que Laura me falara nos primeiros dias …

Bonifácio agarrava-me o braço num gesto de quem quer uma bengala, de quem quer da parte de alguém a quem chama de “Doutora” a afirmação lógica e científica do “não despautério” que acabava de dizer …, então não lhes diziam sem dizer que já estavam meio-mortos?

Agarrei-lhe a mão. Transpirava abundantemente, gélida. Olhei-o nos olhos, não sabia que dizer. Envolvi-o num afago de olhar apenas. Não lhe disse nada… Continuou:

“...sabe, a minha mulher que Deus haja – que a tenha em bom descanso, que já se me foi há quase dez anos -, era uma companheira e pêras, percebe Doutora? Entre nós havia amor, e, nem a Igreja, nem o Senhor Padre (o que morreu, bem se vê...) nos viesse dizer o que, entre a cal das nossas paredes, podíamos ou não fazer… éramos crentes a Deus e casámo-nos e amámo-nos à luz dos Sagrados Mandamentos mas também muito para além do que nos queriam fazer querer ser a palavra de Deus para o matrimónio: gerar família, procriar, cuidar dos filhos e da fé...

Só para procriar? Não, Senhora Doutor (sorria)…, sempre que podíamos, ouviu? Às vezes – tanta vez -, vinha numa corrida à hora da janta aqui a casa por via de poupar a minha esposa a canseiras de ir levar-me a merenda ao campo. Vinha àquela casita além, que a Doutora sabe, onde antes vivia, e, perdão da palavra … que se lixasse a sopa, porra… que se lixasse ...

Comia um naco de pão seco na volta com um punhado de azeitonas … a gente a modos que se devorava um ao outro…. Ai menina … só se perderam as vezes que não foi assim (sorria de novo…); fui feliz menina, com perdão, Senhora Doutora, mas e agora? Como quer que me resigne a esta solidão, a este desamparo? Não fiz voto de castidade, não sou padre e mesmo eles, vossemecê acredita que são castos? Ora, ora … Valha-me Deus que tudo superintende… nos céus e na terra, nos mares e na guerra santa...

Não acha normal que ainda sinta vontade de amar, de namorar outras mulheres? Que ainda sinta vontade de abraçar e beijar outras mulheres? Ora diga lá, que a senhora deve saber se, por um homem ser velho – tá certo, tenho quase oitenta anos -, não tem coração? …”

Bonifácio não sustinha as lágrimas. Tremia. O lado esquerdo estava-lhe paralisado de um AVC, ia para mais de seis anos, mas em termos cognitivos e de memória estava lúcido. Gastava o tempo a fazer palavras cruzadas. Tinha feito o exame da 3ª já homem, à luz do candeeiro de petróleo - contara-me noutra ocasião. Ao lado Dulce, sua mulher, que o acompanhava noite a dentro enquanto remendava as calças farpadas dos trabalhos do campo e, que, nem sempre entendera aquela vontade de conhecer letras. Queria que se fosse a deitar. Entende, menina... perdão, Doutora? ... mas que mais tarde, quando ele já sabia ler e ela não, era pelas letras dele que ouvira lindas histórias…

“...contei-lhas, Doutora. Li-lhe as Farpas, O Cavalo Espantado… conhece, Senhora Doutora??? Ela gostava tanto... Nunca aprendeu as letras, nem grandes nem pequenas, não andou à escola em menina, em adulta não tinha tempo, pensou aprender quando fosse mais de idade ... e depois padeceu de cataratas ainda menos … ”;

Homem capaz de enumerar factos e datas, suas e da sua aldeia, sem vacilar. Capaz de ordenar rigorosamente quem havia chegado e partido do Lar depois de para ali ter entrado… A biblioteca a que as funcionárias recorriam quando queriam confirmar este ou aquele dado… mas, pese embora esta realidade, eram, tantas e tantas vezes, ainda que sem consciência do quanto o magoavam, elas as primeiras as que, em surdina, censuravam os seus olhares sobre uma mulher quando saiam em passeios, por exemplo. Na Festa da Flor, no Magusto... escassos momentos em que se viam rostos outros que não os dos residentes como ele e os delas próprias a quem guardava respeito como se fossem suas filhas. Suas irmãs. Sem sexo e sem corpo. "sabe Senhora Doutora, nas noites, nos turnos, oiço-as ali na sala a falarem umas com as outras, a rirem das vidas delas. Fico feliz, são a minha família agora ...". Mas troçavam em surdina, sim... E, disto Bonifácio, como de todas as outras realidades, se apercebia e com isto se magoava. E nada dizia. E tudo calava. E morria todos os dias um pouco. Agora estava Lícinia no Lar. Tinha sido sua parceira na dança no Rancho de Folclore Espigueiros do Tejo. Agora o seu coração palpitava de novo. Agora queria dar-lhe a mão e levá-la a ver o jardim em frente… e, porque não, ler-lhe a Morgadinha dos Canaviais, ou o Crime do Padre Amaro ...

“Acha o quê, Senhora Doutora? Que pensa? ...Bem sei que estamos os dois aqui, que não devemos dar maus exemplos … mas gosto dela, Senhora Doutora… vossemecê que me diz? Diga-me por amor da Santa Senhora D’Alcamé… é mau um velho ainda amar? É?..”…

“marcos-falos”… Espigueiros do Tejo, 1Km. … A quantos o fim da estrada, Bonifácio?

domingo, 21 de setembro de 2008

Entarde(ser)

Entardecia lentamente. Mau grado tudo fazer para manter janelas abertas a nascente, verificar o nível dos afluentes sobre o seu espaço primordial, lançar redes às lampreias barrigudas que subiam o rio em busca da desova, às tainhas cabisbaixas com olhos de carneiro mal morto que lhe pediam acalentos de navalha, afagos de vísceras, o facto era que o o Ti’Manel dos Anzóis, assim conhecido nas redondezas da Vala, se sentia a entardecer todos os dias… como o sol poente em busca do bucho do mar.

Naquelas tardes em que Florival não o acompanhava na jogatina das damas no café do Teixeira, em que nem o Bartolomeu da fruta aparecia para dar fé do modo como, nos casais a norte do Tejo se anunciava e entregava às viúvas desvalidas de cio ou às moçoilas que, castamente ainda mantinham esperanças secretas de que, nos seus mais de setenta anos, de artroses e má vida, se aninhasse definitivamente na plumagem fulgurante dos seus desejos e que lhes “ensinasse as artes de embelezar maçãs gold”, naquelas tardes, dizia, Ti’Manel colocava a boina preta gasta e surrada das mãos e das ventanias. Avançava a beira rio, em passos lentos por entre juncos e rãs ensurdecedoras.

Era debaixo de um choupo centenário que fumava o cachimbo das memórias – as vividas e as inventadas -, era ali que recordava e desfolhava, uma a uma, todas as suas conquistas, todas as suas amantes…, e, não raras vezes, como quem escreve uma lista destinada a um qualquer evento social, no receio de não querer esquecer alguém, puxava de um bloco de notas quase gasto, tão surrado como a boina, tão desbotado como a sua pele rugosa, de um lápis com pouco mais de três centímetros que afiava a canivete e anotava os nomes, as alcunhas, os títulos nobiliários, destas e daquelas e daqueloutras, que, desordenadamente, lhe vinham à memória.

Não sabia de “Excel”, claro que não, isso de computadores era coisa dos tempos modernos, do neto que andava nas “Lisboas” e “estudava nos computadores”, como o da canção da rádio…, mas sabia de traçar uma espécie de rede (ou grelha), onde, à direita de cada nome, colocava uma data, um atributo…

“Em terra de toiros, quem não é toureiro é toiro … ou lá se é, ou lá se é…”, ditote antigo que, vezes sem fim, no carrascão a escorrer a garganta seca, soltava de rompante… Coisas dos galegos, que vinham do Norte à apanha do tomate e que, em jeito de provocação lançavam aos naturais da Lezíria.
Se não era toureiro, nem campino..., mas toiro não seria… então era o quê?
Levantava a boina, coçava a cabeça e detinha-se em conjecturas … Olá, lá ...

Recentemente ouvira falar de um livro na rádio em que o autor referia que escrevera sobra “encornados, encornadores e pássaros avisadores …”. Ora bem! Nem mais. Estas três categorias eram-lhe familiares. Pássaros avisadores. Grilos falantes. Aqueles que não queremos ouvir mas que nos livram de tantos dissabores… Como o da história do Pinóquio, o boneco de madeira. Fora o caso do Pinóquio ter escutado o seu “grilo falante” e, certamente não iria parar à barriga da baleia…

No entarde(ser) das sua memórias, Ti’Manel dos anzóis, começou a riscar, de cima para baixo a sua lista infinda de mulheres… Ana Madalena, Beta do Sino, … Flávia dos cestos, Florivália, Graziela, Micaela …, .
Parava, respirava fundo, bebia o rio e as lezírias, decalcava-se em regulações temporais, nos suores que lhe empapavam a camisa, amainava a tempestade que lhe avassalava a alma em turbilhão, soltava uma fumaça do cigarro de mortalha, travava outra… riscava mais uma, hesitava na seguinte, enchia-se de coragem e zás: riscava também.

Entardecia. No final do dia, quando apenas os pirilampos beijavam a noite no vagar do tempo escuro, Ti’Manel dos Anzóis meteu chaves à porta.

Aquela era a sua casa, de beirado certo onde os pássaros migrantes vinham ano após ano fecundar-lhe os olhos de excitação, encher-lhe os ouvidos nos tinidos costumeiros. Nos cantares de acasalamento. Ali se sentia seguro, com ou sem bloco de notas… Ali amara de verdade e fora amado. Ou nem isso?...

Meteu chave à porta, a chave que sempre trazia amarrada a um lenço por via de a não perder … o lenço com que limpava o suor da testa e as lágrimas que, teimosamente, lhe beijavam a boca (só as lágrimas já o faziam …).

Entardecia. Jogou-se vestido e sem ceia na tarimba feita de caruma de milho. Uma nuvem de pó encheu-lhe as narinas. Um ataque de tosse encheu a casa vazia, misturou-se com o cheiro do tempo e da demora. Demorou a aceitar a vida, pois então … “nós somos o que somos, menina Mel… quem gosta, gosta sempre … e, se não tem… inventa”, disse-lhe naquela tarde, quando lhe falou de si, do tempo antes de ali chegar…

Finalmente adormeceu. No seu sonho misturavam-se agora valetes e damas de copas, bichos da fruta e formol de conservação…. entardecera afinal. Num ciclo que, definitivamente teria de aceitar, sem fantasmas outros que não aqueles que o Sol do meio-dia desenhava em sombras… ou seja,nenhuns. E não era belo o Sol Poente, diga lá, querida Mel?, perguntara-lhe.

Sorriu. Era, definitivamente era. Abraçou-o. Afagou-lhe a alma e o cabelo escasso…

Naquela manhã, quando içou redes do mar da palha, no seu barquito de madeira, viu um objecto estranho a brilhar no emaranhado dos detritos habituais. A custo guindou-o para dentro da embarcação. Quando finalmente conseguiu chegar-lhe descobriu uma lanterna antiga, daquelas que no início do século usara tantas vezes. Com a ponta da manga da camisa esfregou-a vigorosamente … e, olhando de frente o dia, formulou um secreto desejo …

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Cap. IV - Tratadora de aves

“Sou fera? Vá, que me domem!
E vos outros que sereis?(...)
Ricos, prostrai-vos: é a hora!
Sou Deus, esmago Satã:
Do sangue nasce a aurora,
Nas almas é já manhã!”
MÁRIO BEIRÃO - “A EPOPEIA DOS MALTESES”
(Ler Cap. III)

As muralhas do Palácio acolheram durante anos aquela tratadora de aves, estranha e pragmática a quem nada metia medo. Em dois tempos, as gaiolas reluziam, a horta ganhava mais dois braços, o laranjal despia-se dos seus frutos, as mesas, em contrapartida, recobriam-se destes. O pessoal temia-a e respeitava-a a um só tempo. Nas tardes de sábado ou de Domingo em que o trabalho no Palácio a chamava, às vezes, nem sempre, porque "crianças só atrapalham", levava-a com ela.

Mal cruzava os largos portões do Paço, “soltava a mão a Lia, deixando-a por conta própria”.

Portugal era, à altura, um país de contrastes - estávamos na década de sessenta -, o grupo dos jovens, que em 1960 representava 29,2% do total da população, viria reduzir-se a 16,9% em finais do século. Simultaneamente, o grupo dos idosos, tal como eu própria sentiria ao longo de todo o meu percurso, não parava de crescer. Se em 1960, o ano da minha concepção, os tios velhos representavam 8,0% do total populacional - dados que muitos anos mais tarde - quando a Demografia entrou sem aviso na minha Vida, e com a qual desde logo estabeleci uma relação de cumplicidade, viria a apurar-, em 1998, representavam 15,2% do bolo populacional. A famosa pirâmide, de que eu só tinha memórias associadas às viagens de que ouvira relatos, numa bela tarde de Inverno, na minha sala da terceira classe (as pirâmides do Egipto, um lugar tão longínquo, misterioso, fascinante) aplicavam-se ali, àquela nova ciência, a Demografia.

E tal como eu, a Demografia havia virado o Mundo, o meu pequeno Mundo Nacional, de pernas para o ar.

A Pirâmide estava invertida. Gostei dela e pronto: Reservei-lhe um quarto soalheiro no castelo encantado dos meus saberes. Um feudo, cercado de terrenos inóspitos, onde só entravavam matérias novas se explicáveis à luz dos saberes da minha infância. Foi sempre assim, creio que assim será para os fins dos tempos. Neste espaço de tempo –o espaço de tempo em que decorre esta história, o fenómeno do envelhecimento viria a traduzir-se por um decréscimo de 35,1% na população jovem, isto é, com idades compreendidas entre os 0 e os 14 anos, e um incremento de 114,4% na população idosa, ou seja, com 65 e mais anos. Era um mundo de mulheres, em particular de mulheres velhas, de “Meninas-Velhas”, com quem tanto, mas tanto, haveria de aprender. Os homens, emigrados ou na guerra, os homens, figuras carismáticas da geração anterior, estavam ausentes. As crianças, cada vez em menor número, cresciam votadas a si próprias ou, na melhor das hipóteses, na companhia das mulheres. O grupo dos jovens, que em 1960 representava 29,2% do total da população, reduzir-se-ia a 16,9% em 1998. Simultaneamente, o grupo dos idosos não deixava de crescer. No mesmo período, elevou-se de 8,0% para 15,2% Em 1960, existiam 92 homens por cada 100 mulheres em Portugal. Passados cerca de 40 anos, a relação de masculinidade subiria, ainda que ligeiramente, para 93 por cada 100.

Mercê de uma forte emigração das décadas de 60 e 70, o mínimo foi atingido em 1973, posicionando o rácico de 88,9. Esta relação de masculinidade, tal como viria a perceber, diminuí na medida em que se avança na idade; este fenómeno, é explicado através da sobre-mortalidade masculina, propagando-se como uma onda, nas diferentes classes etárias.

Enfim, uma série de dados estatísticos e sociais, que, valendo na prática o que valiam, explicavam a realidade da minha aldeia …

À altura do casamento de Linda, 1960, residiam em Portugal 66 homens idosos por cada 100 mulheres idosas; em 1998, ano da sua morte, eram aproximadamente 69. Em 1965, época em que eu vivia as aventuras do Palácio, a relação de masculinidade da população idosa atingiu o valor mínimo em 1965 (64,1). Por cada 100 mulheres, seria possível encontrar 64,1 homens. Era assim na minha aldeia, que bem o sentia.... para onde quer que olhasse só via negro, mulheres de negro, almas de negro.

A vida do e no Palácio situado onde no final do séc. XVII terá sido o Paço pertença dos "Manuéis", Condes de Vila Flor, ampliado e renovado no séc. XVIII por um dos seus mais notáveis proprietários, o 1º Duque da Terceira, D. António José de Sousa Manuel e Menezes Severim de Noronha que nele viveu entre 1792-1860, no decurso do reinado de D. Pedro IV, rei que ao Paço se terá deslocado pelo menos três vezes sua esposa D. Estefânia, a expensas dos próprios e do erário público e habitado posteriormente, por outras famílias ilustres, a exemplo de, em 1940, a família do Dr. Armindo Monteiro, Ministro das Colónias e Embaixador de Portugal em Londres, para Lia (modesta narradora destes contos), era apenas e tão só, palco de um conto de fadas. Os que inventava, os que, retirados dos seus livros de menina, transpunha para palco certo: o seu Palácio cor-de-rosa.

Das noites invernosas recordaria ainda aquelas em que, a avó tratadora, contava do modo cruel que este havia sido devorado pelas chamas, ia alto o ano de 1944; de como, do Casal da Oliveirinha, situado na encosta norte, adjacente aos terrenos do Paço, se chegara a temer o pior: uma rajada de vento e o fogo, desgovernado, teria reduzido a cinzas toda a encosta. Que o povo acudira em massa, e não fora isso, a esta altura, não haveriam araras, tucanos ou pelicanos, comprados pela famílias dos actuais proprietários.

Falava ainda de que D. Rafaela de Burgos* e seu marido, o Capitão Rudolfo D’Ávila*, haviam-se encantado pelo sítio. Em verdade nele viveriam até 1989, altura em que o “meu Palácio” viria a ser comprado por uma firma com sede em Hong Kong. Quis o destino que, devido à guerra do Golfo, esta não cumprisse as suas obrigações com o BPA, tendo-lhe perdido a posse....

Em 1993, foi finalmente adquirido pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, posto ao serviço da população. Em 1995/96, aqui se instalam os serviços de Museu e Património do Departamento de Acção Sócio-Cultural. O Palácio da minha infância, em a sequência de um Projecto de adaptação a núcleo museológico e patrimonial do Concelho e, igualmente de um projecto de reutilização integrada de património cultural e paisagístico, é hoje o local onde, se procede ao levantamento, preservação e restauro de todo o património histórico e arquitectónico concelhio. Os salões de que me recordo, deram espaço a arquivos do acervo museológico e uma oficina de restauro, realização de encontros científicos e culturais, concertos, projectos de animação pedagógica e diversas iniciativas de índole cultural. Os jardins proibidos, onde tantas e tantas tardes, me escondi do mundo, decadentes aquando da compra da firma de Hong Kong, sofrerem agora aturada manutenção, forma criadas novas áreas ajardinadas, funcionando, no período de Verão uma piscina aberta á população jovem local.

O meu Palácio, e o seu património natural, os Matos do Sobralinho, representam uma parte do meu próprio património emocional. …

* nomes fictícios

in "Apenas um conto, cerzido ponto por ponto na cadeia dos sentidos" © Todos os Direitos Reservados

domingo, 14 de setembro de 2008

Balbina, mulher sem vícios

Quando a conheci já era bastante entrada na idade. Não a diria “velha”, contudo. De porte direito nas suas generosas curvas, de ancas e seios opulentos, de cabelos sempre presos num carrapito igualmente generoso, de faces vermelhas e um sorriso largo, era o protótipo de uma verdadeira campesina.

No queixo, no buço, pelos grossos e já brancos, que aparava à tesoura, davam-lhe um ar de “macho de saias” bonacheirão. Um andar indolente, cambaleado, ajustavam a figura.

Vivia no planalto da serra onde a pedreira ainda não tinha chegado e por onde ainda se pastoreavam os últimos rebanhos, se cultivavam as últimas vinhas, onde ainda se colhiam frutos dos escassos pomares que haviam resistido ao ímpeto devorador da "máquina do pó"…

Naquela altura, a distância da sua à nossa casa no sopé da serra, pareciam-me léguas. Pelo meio nada havia a não ser um ou outro casal em declínio, a ruir nas fundações e nas estruturas abandonadas. Não se via vivalma. Os terrenos da família, da nossa família – parte já vendidos à “máquina do pó” -, ainda iam produzindo a esforço. Quando a máquina soltava pedras na encosta, vomitava urros pelas narinas e pó pelas ventas, não havia bago que se aguentasse e as colheitas ficavam invariavelmente perdidas. Todavia alguns dos herdeiros, primos e tios, persistiam teimosamente em lhes deitar sementes, em as cultivar. Trocavam-se serviços nas courelas de cada um, numa economia escassa de subsistência.

Era nesse tempo que nós crianças a encontrávamos. Era na sua casa que se buscava entretêm nas tardes frias ou nas demasiado soalheiras enquanto os adultos se ocupavam das tarefas da apanha da uva, por exemplo, ou da azeitona.À época não haviam farturas nem guloseimas outras que não aquelas que a terra nos dava. E Balbina, a quem a vida não dera filhos, sabia como nos agradar. Na sua paciência infinita, nas tardes de estio, descascava pinhões, enfiava-os em linhas e, dia após dia, ia-nos dando os colares. Ou então, figos passas com nozes dentro, que chamava de “casamentos” … e, quando nada disto tinha à mão, espetava um pedaço de pão de centeio num garfo de dois dentes, torrava no lume sempre aceso, besuntando com a banha dos torresmos de cor alaranjada que retirava de uma panela de barro negra das múltiplas utilizações. O leite, esse, íamos nós mesmos com a sua ajuda ordenhar das ovelhas ou das cabras. Bebia-se quente, deixando na cara de cada um um largo bigode branco de espuma. Era a risada, a nossa e a dela. Cada um espelho do outro, que espelhos só mesmo um velho e picado da humidade no quarto dos fundos onde guardava uma arca de tarecos antigos com os quais nos mascarávamos de gente grande ...

Eram estas as tardes de Outono em que a pequenada encontrava uma avó sem pressa, de saias a roçar os tornozelos e avental de peitilho preso com dois alfinetes de dama - os mesmos que lhe serviam para retirar os moluscos dos caracóis de dentro das carapaças… aqueles que apanhávamos nas ervas e que nos assava com sal grosso.

Balbina era generosa, na verdade, e disso fazia gala o seu Pedro.

“ A minha Balbina é uma alma grande, vossemecês sabem … e uma cozinheira de mão cheia, valha-me Deus, faz cada petisco (dizendo saliva no prazer antecipado)...mulher sem vícios é a minha Balbina … grande mulher a minha Balbina, grande mulher...”

Sorria. Sorriam-lhe os olhos do azul mais intenso que alguma vez vi num ser humano. Sorria-lhe o corpo seco e hirto e a voz, por natureza gaga – gago que só ele -, naqueles momentos, em glória da sua valquiriana esposa, saía limpa e escorreita.

“ Quis Deus que não tivéssemos filhos, mas a minha Balbina tem sempre a fralda da saia apinhada de crianças e, a nossa mesa é farta. Dá de comer sempre a mais um… não se teme a trabalhos nem canseiras...”

Era a mais pura verdade. Se, aquando da cava chovia, logo Pedro se assumava ao topo do casal e gritava a todos:

“… homens, vossemecês não têm uma horta nas costas pois não?, ora vinde até aqui que a Balbina já cuida de vos arranjar de janta…”

O casal dos Esteves, à semelhança dos demais da zona, era um composto de casa de habitação, lagar e adega, celeiro, cortes dos animais … No caso, a cozinha de lenha dava de paredes meias com adega, onde Pedro colocara uma mesa improvisada de troncos de choupo abertos sobre cavaletes de madeira. Era ali mesmo, no ébrio da fermentação que acolhia os passantes, entre os figos passas, as romãs colhidas no quintal, o toucinho retirado à salmora e assado no braseiro. Da talha as azeitonas retalhadas nas horas do serão pelas mãos da sua Balbina, do fumeiro os salpicões, os buchos,as linguiças com pimentão da horta, O mel das colmeias dispostas no fundo da eira, as compotas do tomate e a jeropiga caseira …

Balbina ia e vinha, de cá para lá, trazendo a loiça, levando as sobras para o maceiro dos porcos … Os homens comiam e bebiam, de navalhas em riste ao pão trigueiro. A galhofa esquenta, os dominós cruzavam a mesa e a tarde, que, do lado sul, do rio abaixo, subia agora a encosta, atrevida … entre um copo e uma mão cheia de azeitonas ou tremoço, se fazia noite e se estreitava amizade.

“… Ti Balbina, coma a “mor” com a gente…”
“… Comam vocês, eu cá m’arranjo…"
“… Ti Balbina, beba um copinho do seu com a gente …”
“… Ó Manel, a minha Balbina não bebe, ó homem, até a ofendes … h’ome essa, querem lá ver? é que nem do cheiro Balbina gosta, por via disso nem come aqui com a gente… a minha Balbina só água, nem leite que dizem que até faz bem… mas não, homens, a Balbina é mulher de água só … sem vícios, sem vícios ...!”

A hora ia progredindo e as faces de Balbina cada vez mais rubras. Guinchos finos atravessavam de quando em vez os raros momentos de silêncio. Gemidos silenciados, travados nos passo …

“… Ti Pedro, vocemessê tem ratos na cozinha? …”
“….H’ome essa … n’senhor, tenho o Tareco de atalaia, e olha qué fino o bicho … ratos é que não… ai, Marcelino, tu tens cá umas ideias, ó rapaz …”



Era época de poda, no Fevereiro adiantado. Os homens estavam de posse à vinha. Naquele dia, sem que nada o fizesse prever, de um céu limpo, uma cabazada d’água caiu de repente ensopando todos até aos ossos. Pedro gritou aos homens que desferrassem do trabalho, por entre dois trovões. A coito da casa, esbracejava em gestos efusivos…

“O Marcolino, ò Jeremias… vinde dai e ide à cozinha, que a Balbina tá por lá. Que acrescente a panela. Não podeis regressar ao povoado encharcados desse modo…”

Marcolino, nos seus ainda frescos quarenta anos, em segundos, entrando pela adega, chegou à soleira da cozinha …

Balbina, de caneca na mão e de bigodes tintos de vinho carrascão encarou-o na surpresa… abriu um sorriso, e, de rompante soltou:

“… Ó Marcolino ... meu rapaz, como é que adivinhaste que te ia a levar esta pinga, homê?”

Riram ambos. Naquela tarde, Balbina, como em tantas outras, "soltou os ratos na cozinha", nos lamentos da torneira a abrir lentamente … do barril reserva que Pedro guardara para os anos de sequeiro …

... E soltou largos sorrisos no seu ar costumeiro e bonacheirão de mulher sem vícios!

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Canana

Canana...

Sempre me pareceu nome de código. Cifra estranha e “irreconhecível” aos meus ouvidos de criança. Depois havia a crispação de rostos, a contracção das mãos e dos braços na hora de cumprimentar, o esgaçar de más vontades, ou, em alguns casos, de palavras ditas em voz sussurrada, miudezas de que não entendia sentidos. Nunca abonatórias, nunca de boas vindas, nunca manifestações de lato agrado, ou, porque não, de agrado simples.

Excepção, a minha mãe. Saber da vinda da Canana a nossa casa era, para além de um rol de trabalhos acrescidos tendo em vista o bem receber “pobres mas arranjados, pobres mas arrumados, filha...”, que tantas vezes verbalizado e exemplificado em actos me incutia em espírito, e que, para além da sua morte, haveriam de se perpetuar em códices de conduta imperativos, legisladores dos meus hábitos rotineiros de forma inabalável, havia igualmente e sempre, no seu semblante, um prazer recatado, secreto, de poder, durante um ou dois dias, acolher Canana. Ser cúmplice de Canana… Desabafar com Canana.

Nunca lhe soube o verdadeiro nome. Nunca soube se era diminutivo ou alcunha. Mas isso, à época não tinha qualquer significado. Canana era Canana e tão só. No alto do seu metro e setenta e muitos (pelo que me recordo, mais coisa menos coisa …), impunha com um sorriso rasgado e uma voz máscula e suave - uma mistura estranha, devo confessar-, respeito. Vestia invariavelmente calças, tinha o cabelo ondulado e cortado curto a roçar as omoplatas largas, não usava adornos, nem rendas, nem laços. Não usava saltos… fumava.

Decorriam os primeiros anos da década de sessenta. Vivíamos na aldeia. A vinda de Canana, regra geral pelo Colete Encarnado, passava de boca em boca, como notícia de primeira página. Nos lavadores, na bica, na fonte…no reduzido comércio local. Gerava falatório. Ó se gerava!

Conhecera Canana na fábrica, dizia-me. No “Redol” como denominava (por relação directa com o nome de um dos seus proprietários…), aliás como as demais moçoilas da aldeia e colegas de jornada, a conheceram. Rapidamente se tornara sua amiga.

Canana era a ponte entre o masculino e feminino, era a liberdade, a criatividade, a força de vontade, a força física. Canana era solidária, experiente e esclarecida. Morava nos arrabaldes da capital, em parte incerta. Divorciada (ou largada do homem, como diziam…). Fosse o que fosse, independente. Não se escudada ao debate, ao confronto de ideias e (entendi muitos anos mais tarde) de ideais. Ideais políticos de emancipação, independência, da mulher. Defesa acérrima pelas condições dignas de trabalho, de salários justos, de horários justos; de respeito pelos “dias difíceis das mulheres”… “que a mulher não é menos que o homem, filha, mas há dias em que não se pode andar à chuva o dia inteiro, a mulher “escorre”… entendes, filha?”… Abanava a cabeça que sim. Já vira quando a mãe “escorria” e se contorcia pálida de dores. Estava “naqueles dias”.
“… Canana combinava com os homens para nos renderem, percebes?... para fazerem trabalhos mais duros. E eles a ela ouviam.”
Na altura percebia pouco. Mas percebia seguramente que, se a mãe dizia, deveria ser verdade… e, se as “mulheres escorriam”, então era muito feio andarem à chuva a revelar as suas intimidades.

Pouco se falava da vida da Canana em frente a nós, crianças. Apanhava, aqui e além, umas frases soltas… “meteu-se em tantas, que teve de fugir, senão era presa”… “uma mulher macho…má rês e má influência” …"qual era o homem que ia conseguir viver com uma mulher-macho”?

No meu intimo de menina, tentava colar aquelas frases ao rosto sereno de Canana. E não faziam sentido. É certo que tinha um ar diferente, mas era terna, amiga, trazia-me sempre uma caixa enorme de chocolates da Regina (nessa altura, trabalhava por lá …), e, os pequenos rectângulos, meticulosamente alinhados, duravam quase de ano a ano. A caixa, de cartão duro, quando esvaziada, fazia as minhas delícias. Era o guarda-roupa das minhas bonecas, minúsculas (as tais, da farinha Amparo, que, quando partidas, me negava a abandonar e, peça a peça, no “hospital de bonecas” readaptava… nem sempre com pernas e braços da mesma cor, do mesmo tamanho …). Diferentes, porventura, as minhas bonecas e Canana…

Quando Canana partia da aldeia, o verão parecia sempre chegar ao fim de forma antecipada e prematura. Como se um brilho, uma luz, que vinha dos lados do Bugio, do mar a sul e atravessava o nosso rio, o mar da palha e subia a encosta da serra, se apagasse sem aviso. Em regra, a mãe ficava mais calada, menos activa. O viço sempre provisório dos seus olhos esmaecia, como candeias em tempos escassos.E eu, eu mesma, me sentia mais sozinha.

Os demais pareciam libertos. Menos contidos, comentavam os despropósitos de Canana. Fumar e beber na taberna com os homens? Falar na rua? Valha-nos Deus, isso são exemplos que se dêem?
“…E é isto mulher da cidade…, ora, mais vale não saber uma letra do tamanho dum “quimboio”… só vem meter más ideias na cabeça das raparigas”.

Perdi-lhe o rasto… as visitas cessaram. Recordo-me vagamente de ter ouvido uma conversa de que estaria “onde devia estar”… Recordo-me de ouvir, nos fundos da casa, a mãe a chorar. Não perguntei nada. Para quê? Era uma miúda de tantos anos como dedos de uma só mão … e mais um.

Durante décadas "esqueci" Canana. As minhas fontes de informação destes tempos estão a partir, numa viagem sem retorno… A primeira delas, minha mãe, sua grande amiga, sua eterna amiga e companheira de jornada. No sol a sol de burilar a pedra das colunas de postes de iluminação para a Praça do Império ...

Dei comigo um dia destes a pensar que Canana, canoa do Tejo, mulher vela e luz, falua a brilhar, ainda se passeia no meu imaginário e, sem que disso tenha tido consciência, me marcou de forma altamente positiva. Deixou em minhas mãos, não só chocolates Regina, mas também, sementes de liberdade, de utopia, de verdade. Sementes de diferença e de igualdade …

Onde estás Canana?

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Cinco minutos de silêncio

“Falo como quem está para perder
a ocasião do silêncio e assim se salva.”

Vitorino Nemésio, “Silêncio”

Noite. Reflicto sobre o silêncio, esta quietude onde construo e me reconstruo, no tecido das palavras, onde as ideias, coalhadas pelo vigor do dia, se alinham num puzzle em permanente construção. É no silêncio que a mente tece em tear antigo ideias, farrapos, fiapos de memórias. É aqui que estas se constroem a si próprias...

Na verdade, o ruído que trazemos dentro de nós, não nos permite cultivar este bem maior: Chama-se Silêncio.

Despojada de vestes, reconfortada sob um pijama de seda azul índigo, aqui, neste espaço cúbico, rodeio-me de silêncio no mistério de mim mesma.

De olhos copados sou apenas sentimento. Veloz rio, aluvião de margens, na senda da raiz do signo, anunciação dos tempos, sentido dos sentidos.

Neste espaço intimista, sobre a cama de nogueira vestida de algodão branco tecido em teares antigos, lençóis rematados a rendas das avós, bordados a crivo e matiz de anis, aqui, encontro o meu porto de abrigo.

Elevo a alma, abro-a ao cântico, à prece. Absorvo nos poros e por osmose este momento onde o silêncio é ele próprio a minha companhia. O silêncio, que antecede a palavra, composto de alma soprada no fole, aquecida na bigorna dos tempos.

Aqui, no silêncio, a palavra fermenta, leveda; a palavra, a parte mais visível do sujeito que eu sou. Dou-me conta que viver é “Ser" de e no tempo. É tecer fiapos de seda, teias, ateadas pelo destino, rotas de caminhar de peregrino.

Sabes .... o silêncio é a maior prova de intimidade que podes oferecer a alguém? Dois corpos distendidos na madrugada, lado a lado, fundidos no silêncio. A prova irrefutável de que se complementam. Para além deste, apenas na música conheço igual partilha. Voar numa malha de romance sem fim... sentir, apenas.

***

Ligo agora o MP3. Selecciono Piazzola - “Tango Apasionado” . Cerro de novo os olhos, deixo que o corpo se embale na magia deste tango. Deixo ...

Sinto a tua na minha mão num cruzar ritmado de dedos. E sobre os meus quadris, a outra, leve, leve... espalmada. Não, não me prende, não me trava. É suave brisa, quase um roçar de asas. Os corpos colados encontram-se, ritmados no saber e no sabor de um novo e contudo reconhecido amor antigo. Deslizas, deslizamos, sem palavras.

No silêncio melodioso desta dança cultivamos a proximidade e a ausência. No silêncio reencontramos, nos anais da história, eras, rotas, cartas sinópticas, em que a palavra, por desnecessária foi abolida.

Neste silêncio reconhecemos a Ilha que nos foi prometida, revestida entre a noite caída e a hora nova, branca, leitosa, alva – espaço cósmico da Magia.

Tacteias e encontras a chave, a secreta chave no infinitésimo fragmento de um segundo. A chave, revelação de nós, no eco e no compasso, no vibrado iluminado, harmónico, divino.

***

Cessa a música. A alma purificada encontra um agora atmosfera de graças – prelúdio de um cântico novo, espaço este onde escrevo e sou, a um só tempo, animal mudo, acoitado em cendrada hora no plúbeo manto da noite.

E de novo, no silêncio, é a nostalgia que volta e comigo chora. Enrolo-me sobre mim mesma, refundo-me em concha, sou molusco, fecho a alma no silêncio saturnino, no silêncio mais rotundo. Isolo-me em carapaça do mundo.

Silencio a voz ... solto a palavra!

“A voz é rosa roída / eu bicho roedor.”

Vitorino Nemésio – “A minha voz”

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Cap. III, A construção

(ler Cap. II)

“A casa é feita semente / Recibo que paga a chuva No morno inteiro da Vida / Que a fala compra à enxada”
ARMANDO DA SILVA CARVALHO - “A CASA O CAMPO E OS TIOS”

Aos poucos, tios e primos começaram a comprar terrenos e a erguer pequenas casas. Linda comprou o seu, nos “terraços do rio”, como hoje alguém que quisesse vender terrenos lhe chamaria. Um pequeno lote de pouco mais de duzentos e cinquenta metros, circundado por um olival abandonado e encimado pela serra donde viera.

A herança não chegaria para erguer as paredes de fora. Quando chegou a vez de colocar o telhado, o dinheiro da venda do Casal dos Anjos há muito havia acabado.

Que fazer? Restavam ainda as ovelhas, um rebanho de mais de cento e cinquenta cabeças. Talvez fosse hora de vender também o gado. A mãe sozinha não podia pastoreá-las, a pedreira cada vez mais perto, bufava pedras desgovernadas, por pouco havia dias não a tinham levado desta para melhor. ..

Que fora por pouco, sim senhor, caíra-lhe aos pés um pedregulho, solto dos quintos dos infernos. Outra como esta, e nem o seu santo marido, que Deus haja, a salvaria de morte certa.

Concordou! Quando a filha lhe falou em vender o gado, abençoou-lhe a ideia, que sim senhor, estava muito bem, aquela Vida já não era para ela, as filhas estavam arrumadas, a mais nova a viver na casa que ambas, mãe e filha, com o dinheiro da venda do Casal haviam conseguído construir. Sem luxos mas suficiente. Igualmente nos “terraços do Tejo”, perto da fonte Graciosa, ao pé do Palácio e do Mato do Convento. Concordava, mas sem gado, o que iria fazer? Não fora talhada para a Vida de casa, salvo seja. Que saber fazer o essencial sabia, mas entretens de rendas e bordados não era para ela. Além do que, a parcela que lhe coubera de amanho no Casal da Oliveirinha, bem mais pequeno que o que vendera, era insuficiente para o seu sustento.

Que não havia problema, argumentava Linda. A "madrinha parteira", que morava paredes meias com o Palácio, sabia que o senhor Capitão, o novo dono, tinha a mania de aves, aves raras, vindas de várias partes do Mundo, de muitas cores, barulhentas como só elas. Que até tinha mandado construir umas gaiolas, capazes de serem lavradas por uma junta de bois, com rede toda à volta, da altura de dois homens em pé, cobertas por cima também de rede. Sim, mas o que tinha a mãe de Linda, Aurélia de seu nome a ver com esta história de pássaros? Ora aí está, tudo a ver. A "madrinha parteira" fora assistir ao parto da criada de fora, no Palácio, que se houvera enrolado com o tratador. O Capitão quando soube não gostou!
No Palácio, todos casavam à sombra de Deus, para isso se havia aberto as portas da capela a todos quanto lá quisessem ir rezar. Pouca vergonha, não, mil vezes não. A criada ficava, que ele não era de por porta fora mulheres e crianças, mas ele, o tratador, que se cuidasse, o melhor era fugir para bem longe, não fora o acaso de, algum dia, enquanto o Capitão treinava tiro ao alvo, por engano, sem querer, algum chumbo perdido encontrar o desgraçado.

Da estória restou uma gaiola sem tratador, e um monte de araras, papagaios, tucanos e demais espécies, alimentados a medo por entre as malhas da rede, que ninguém se lhes queria abeirar. Não era ela uma mulher sem medo, que agarrava cobras pela cabeça, capava porcos, fazia partos às vacas e cabras?
Não se dizia dela, que nas redondezas, os seus bigodes hirtos, faziam inveja a muitos mancebos? Pois provasse agora a valentia, entrasse sem medos na gaiola das araras.

Olhou a comadre, casada com o primo Fidalgo, madrinha da sua filha, com um olhar desafiador. As duas mulheres mediram-se. Se uma sabia fazer nascer crianças (não todas, bem se sabia, à sua neta não fora capaz de fazer nascer, não foram os médicos da cidade grande e, vá-se lá saber onde é que a esta hora, filha e neta, estariam - no quinto dos infernos, talvez!...), a outra, por vezes fio, era useira em vestir mortos, atar-lhe os queixos com um lenço branco e encomendar as suas almas ao criador.

Afinal, ambas, cada uma por seu lado, abriam e fechavam as portas das estações da vida...

Iria lá, sim, e as araras que se cuidassem, era mais certo saírem mordidas do que morderem, era mais seguro perderem todas as penas do que ela um único cabelo, que lhe eram muito caros, os seus cabelos, que cuidadosamente escondia num carrapito, por baixo do lenço preto de viúva. Pagavam bem? Era o que bastava, aquela tarefa não havia de lhe levar o dia todo, sempre gostara de madrugar, que as araras madrugassem também, que não iria admitir molezas, estava treinada para dar o primeiro passo, à frente de um rancho de mulheres à ceifa, sobre o Sol de Agosto, marcar o compasso com os homens, no lagar do vinho, não seriam um grupo de cinquenta passarinhecos pintalgados com a cor dos demónios que a haviam de intimidar.

Se bem o disse, melhor o fez. Na manhã seguinte, ainda o Sol não despontara no horizonte, chegou ao Palácio. Pediu para ser recebida pelo capitão, que era com ele e só com ele que queria falar.

O caseiro quis saber ao que vinha, alguma ovelha destrambelhada tinha entrado no perímetro do mato do Convento, nos terrenos do Paço e não tinha de lá saído? Se era isso, tudo se arranjaria, podia procurar a vadia... Que não, já não tinha ovelhas, se isso lhe importava saber. Queria, porque queria falar como o Senhor.

Esperou horas a fio, sem cruzar a ombreira da porta, que a casa acordasse e o Capitão descesse. Finalmente, quando da cozinha já vinha um cheiro a assados, capaz de fazer levantar do caixão os mortos que estava habituada a preparar para a viagem, o Senhor chegou, envolto numa espécie de gabão de seda vermelho sangue. Não se intimidou também. Nem com a figura, nem com a aparato. Recuou no tempo e veio-lhe à memória a figura desenxovalhada do seu amada pai, e foi quanto lhe bastou para ganhar alento e falar ao que vinha.

A princípio o Capitão nem a queria receber, aquela tarefa era para homens, e de barba rija, que maricas não teriam lá guarida. Mas depois, perante a determinação da candidata ao lugar, ousou deixar que entrasse no recinto. O Palácio parou para ver tamanha provocação. As cabeças de dragão, talhadas em pedra, por onde minutos antes jorrava água, como por encanto, quedaram-se mudas. Empunhando uma vassoura, tal uma bruxa, entrou cantarolando, começou a limpar a gaiola, encarando os bichos um a um nos olhos. O resto, forma anos a fio de amena cavaqueira, numa língua e num código desconhecida, entendível apenas pelas aves.

Anos mais tarde, quando deixou aves decorativas por aves comestíveis, utilizou os códigos para as adormecer, ao mesmo tempo que as enfiava, de cabeça para baixo, segurando-as pelas patas – tal como fizera a parteira na hora do nascimento – fincando-lhe de um só golpe a navalha na goela. Fazia tudo isto, sem hesitações, lamúrias ou clamores.

Numa sequência só, matava, enviava as ditas nos caldeiros de água fervente, e ainda fumegantes, quase a queimar as mãos, de um golpe só, apanhava uma mão cheia de penas, e outra e outra. Em segundos, uns atrás dos outros, os galináceos iam sucumbindo ao poder da sua mão. Depois, com um golpe certeiro, rompia-lhes a pele por de cima do papo, outro na zona de baixo, esventrava-lhes as entranhas, retirava os pertences comestíveis – fígado, moela, coração – enfiava-lhes as pernas sem pés na ranhura que fizera, as asas dobradas, alinhava-as num tabuleiro, coberto por um pano xadrez, repetia a cena, horas a fio, dias a fio, meses e anos a fio, até que a lei veio proibir, finalmente o abate caseiro de animais para fins comerciais. Mas isso foram anos e anos depois já Lia andava no Liceu… A casa ganhou telhado - sacrificadas as cabeças de gado -, e janelas e portas. Mas estava longe de estar pronta....
***

in "Apenas um conto, cerzido ponto por ponto na cadeia dos sentidos" © Todos os Direitos Reservados

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...