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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

domingo, 21 de setembro de 2008

Entarde(ser)

Entardecia lentamente. Mau grado tudo fazer para manter janelas abertas a nascente, verificar o nível dos afluentes sobre o seu espaço primordial, lançar redes às lampreias barrigudas que subiam o rio em busca da desova, às tainhas cabisbaixas com olhos de carneiro mal morto que lhe pediam acalentos de navalha, afagos de vísceras, o facto era que o o Ti’Manel dos Anzóis, assim conhecido nas redondezas da Vala, se sentia a entardecer todos os dias… como o sol poente em busca do bucho do mar.

Naquelas tardes em que Florival não o acompanhava na jogatina das damas no café do Teixeira, em que nem o Bartolomeu da fruta aparecia para dar fé do modo como, nos casais a norte do Tejo se anunciava e entregava às viúvas desvalidas de cio ou às moçoilas que, castamente ainda mantinham esperanças secretas de que, nos seus mais de setenta anos, de artroses e má vida, se aninhasse definitivamente na plumagem fulgurante dos seus desejos e que lhes “ensinasse as artes de embelezar maçãs gold”, naquelas tardes, dizia, Ti’Manel colocava a boina preta gasta e surrada das mãos e das ventanias. Avançava a beira rio, em passos lentos por entre juncos e rãs ensurdecedoras.

Era debaixo de um choupo centenário que fumava o cachimbo das memórias – as vividas e as inventadas -, era ali que recordava e desfolhava, uma a uma, todas as suas conquistas, todas as suas amantes…, e, não raras vezes, como quem escreve uma lista destinada a um qualquer evento social, no receio de não querer esquecer alguém, puxava de um bloco de notas quase gasto, tão surrado como a boina, tão desbotado como a sua pele rugosa, de um lápis com pouco mais de três centímetros que afiava a canivete e anotava os nomes, as alcunhas, os títulos nobiliários, destas e daquelas e daqueloutras, que, desordenadamente, lhe vinham à memória.

Não sabia de “Excel”, claro que não, isso de computadores era coisa dos tempos modernos, do neto que andava nas “Lisboas” e “estudava nos computadores”, como o da canção da rádio…, mas sabia de traçar uma espécie de rede (ou grelha), onde, à direita de cada nome, colocava uma data, um atributo…

“Em terra de toiros, quem não é toureiro é toiro … ou lá se é, ou lá se é…”, ditote antigo que, vezes sem fim, no carrascão a escorrer a garganta seca, soltava de rompante… Coisas dos galegos, que vinham do Norte à apanha do tomate e que, em jeito de provocação lançavam aos naturais da Lezíria.
Se não era toureiro, nem campino..., mas toiro não seria… então era o quê?
Levantava a boina, coçava a cabeça e detinha-se em conjecturas … Olá, lá ...

Recentemente ouvira falar de um livro na rádio em que o autor referia que escrevera sobra “encornados, encornadores e pássaros avisadores …”. Ora bem! Nem mais. Estas três categorias eram-lhe familiares. Pássaros avisadores. Grilos falantes. Aqueles que não queremos ouvir mas que nos livram de tantos dissabores… Como o da história do Pinóquio, o boneco de madeira. Fora o caso do Pinóquio ter escutado o seu “grilo falante” e, certamente não iria parar à barriga da baleia…

No entarde(ser) das sua memórias, Ti’Manel dos anzóis, começou a riscar, de cima para baixo a sua lista infinda de mulheres… Ana Madalena, Beta do Sino, … Flávia dos cestos, Florivália, Graziela, Micaela …, .
Parava, respirava fundo, bebia o rio e as lezírias, decalcava-se em regulações temporais, nos suores que lhe empapavam a camisa, amainava a tempestade que lhe avassalava a alma em turbilhão, soltava uma fumaça do cigarro de mortalha, travava outra… riscava mais uma, hesitava na seguinte, enchia-se de coragem e zás: riscava também.

Entardecia. No final do dia, quando apenas os pirilampos beijavam a noite no vagar do tempo escuro, Ti’Manel dos Anzóis meteu chaves à porta.

Aquela era a sua casa, de beirado certo onde os pássaros migrantes vinham ano após ano fecundar-lhe os olhos de excitação, encher-lhe os ouvidos nos tinidos costumeiros. Nos cantares de acasalamento. Ali se sentia seguro, com ou sem bloco de notas… Ali amara de verdade e fora amado. Ou nem isso?...

Meteu chave à porta, a chave que sempre trazia amarrada a um lenço por via de a não perder … o lenço com que limpava o suor da testa e as lágrimas que, teimosamente, lhe beijavam a boca (só as lágrimas já o faziam …).

Entardecia. Jogou-se vestido e sem ceia na tarimba feita de caruma de milho. Uma nuvem de pó encheu-lhe as narinas. Um ataque de tosse encheu a casa vazia, misturou-se com o cheiro do tempo e da demora. Demorou a aceitar a vida, pois então … “nós somos o que somos, menina Mel… quem gosta, gosta sempre … e, se não tem… inventa”, disse-lhe naquela tarde, quando lhe falou de si, do tempo antes de ali chegar…

Finalmente adormeceu. No seu sonho misturavam-se agora valetes e damas de copas, bichos da fruta e formol de conservação…. entardecera afinal. Num ciclo que, definitivamente teria de aceitar, sem fantasmas outros que não aqueles que o Sol do meio-dia desenhava em sombras… ou seja,nenhuns. E não era belo o Sol Poente, diga lá, querida Mel?, perguntara-lhe.

Sorriu. Era, definitivamente era. Abraçou-o. Afagou-lhe a alma e o cabelo escasso…

Naquela manhã, quando içou redes do mar da palha, no seu barquito de madeira, viu um objecto estranho a brilhar no emaranhado dos detritos habituais. A custo guindou-o para dentro da embarcação. Quando finalmente conseguiu chegar-lhe descobriu uma lanterna antiga, daquelas que no início do século usara tantas vezes. Com a ponta da manga da camisa esfregou-a vigorosamente … e, olhando de frente o dia, formulou um secreto desejo …

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...