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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Canana

Canana...

Sempre me pareceu nome de código. Cifra estranha e “irreconhecível” aos meus ouvidos de criança. Depois havia a crispação de rostos, a contracção das mãos e dos braços na hora de cumprimentar, o esgaçar de más vontades, ou, em alguns casos, de palavras ditas em voz sussurrada, miudezas de que não entendia sentidos. Nunca abonatórias, nunca de boas vindas, nunca manifestações de lato agrado, ou, porque não, de agrado simples.

Excepção, a minha mãe. Saber da vinda da Canana a nossa casa era, para além de um rol de trabalhos acrescidos tendo em vista o bem receber “pobres mas arranjados, pobres mas arrumados, filha...”, que tantas vezes verbalizado e exemplificado em actos me incutia em espírito, e que, para além da sua morte, haveriam de se perpetuar em códices de conduta imperativos, legisladores dos meus hábitos rotineiros de forma inabalável, havia igualmente e sempre, no seu semblante, um prazer recatado, secreto, de poder, durante um ou dois dias, acolher Canana. Ser cúmplice de Canana… Desabafar com Canana.

Nunca lhe soube o verdadeiro nome. Nunca soube se era diminutivo ou alcunha. Mas isso, à época não tinha qualquer significado. Canana era Canana e tão só. No alto do seu metro e setenta e muitos (pelo que me recordo, mais coisa menos coisa …), impunha com um sorriso rasgado e uma voz máscula e suave - uma mistura estranha, devo confessar-, respeito. Vestia invariavelmente calças, tinha o cabelo ondulado e cortado curto a roçar as omoplatas largas, não usava adornos, nem rendas, nem laços. Não usava saltos… fumava.

Decorriam os primeiros anos da década de sessenta. Vivíamos na aldeia. A vinda de Canana, regra geral pelo Colete Encarnado, passava de boca em boca, como notícia de primeira página. Nos lavadores, na bica, na fonte…no reduzido comércio local. Gerava falatório. Ó se gerava!

Conhecera Canana na fábrica, dizia-me. No “Redol” como denominava (por relação directa com o nome de um dos seus proprietários…), aliás como as demais moçoilas da aldeia e colegas de jornada, a conheceram. Rapidamente se tornara sua amiga.

Canana era a ponte entre o masculino e feminino, era a liberdade, a criatividade, a força de vontade, a força física. Canana era solidária, experiente e esclarecida. Morava nos arrabaldes da capital, em parte incerta. Divorciada (ou largada do homem, como diziam…). Fosse o que fosse, independente. Não se escudada ao debate, ao confronto de ideias e (entendi muitos anos mais tarde) de ideais. Ideais políticos de emancipação, independência, da mulher. Defesa acérrima pelas condições dignas de trabalho, de salários justos, de horários justos; de respeito pelos “dias difíceis das mulheres”… “que a mulher não é menos que o homem, filha, mas há dias em que não se pode andar à chuva o dia inteiro, a mulher “escorre”… entendes, filha?”… Abanava a cabeça que sim. Já vira quando a mãe “escorria” e se contorcia pálida de dores. Estava “naqueles dias”.
“… Canana combinava com os homens para nos renderem, percebes?... para fazerem trabalhos mais duros. E eles a ela ouviam.”
Na altura percebia pouco. Mas percebia seguramente que, se a mãe dizia, deveria ser verdade… e, se as “mulheres escorriam”, então era muito feio andarem à chuva a revelar as suas intimidades.

Pouco se falava da vida da Canana em frente a nós, crianças. Apanhava, aqui e além, umas frases soltas… “meteu-se em tantas, que teve de fugir, senão era presa”… “uma mulher macho…má rês e má influência” …"qual era o homem que ia conseguir viver com uma mulher-macho”?

No meu intimo de menina, tentava colar aquelas frases ao rosto sereno de Canana. E não faziam sentido. É certo que tinha um ar diferente, mas era terna, amiga, trazia-me sempre uma caixa enorme de chocolates da Regina (nessa altura, trabalhava por lá …), e, os pequenos rectângulos, meticulosamente alinhados, duravam quase de ano a ano. A caixa, de cartão duro, quando esvaziada, fazia as minhas delícias. Era o guarda-roupa das minhas bonecas, minúsculas (as tais, da farinha Amparo, que, quando partidas, me negava a abandonar e, peça a peça, no “hospital de bonecas” readaptava… nem sempre com pernas e braços da mesma cor, do mesmo tamanho …). Diferentes, porventura, as minhas bonecas e Canana…

Quando Canana partia da aldeia, o verão parecia sempre chegar ao fim de forma antecipada e prematura. Como se um brilho, uma luz, que vinha dos lados do Bugio, do mar a sul e atravessava o nosso rio, o mar da palha e subia a encosta da serra, se apagasse sem aviso. Em regra, a mãe ficava mais calada, menos activa. O viço sempre provisório dos seus olhos esmaecia, como candeias em tempos escassos.E eu, eu mesma, me sentia mais sozinha.

Os demais pareciam libertos. Menos contidos, comentavam os despropósitos de Canana. Fumar e beber na taberna com os homens? Falar na rua? Valha-nos Deus, isso são exemplos que se dêem?
“…E é isto mulher da cidade…, ora, mais vale não saber uma letra do tamanho dum “quimboio”… só vem meter más ideias na cabeça das raparigas”.

Perdi-lhe o rasto… as visitas cessaram. Recordo-me vagamente de ter ouvido uma conversa de que estaria “onde devia estar”… Recordo-me de ouvir, nos fundos da casa, a mãe a chorar. Não perguntei nada. Para quê? Era uma miúda de tantos anos como dedos de uma só mão … e mais um.

Durante décadas "esqueci" Canana. As minhas fontes de informação destes tempos estão a partir, numa viagem sem retorno… A primeira delas, minha mãe, sua grande amiga, sua eterna amiga e companheira de jornada. No sol a sol de burilar a pedra das colunas de postes de iluminação para a Praça do Império ...

Dei comigo um dia destes a pensar que Canana, canoa do Tejo, mulher vela e luz, falua a brilhar, ainda se passeia no meu imaginário e, sem que disso tenha tido consciência, me marcou de forma altamente positiva. Deixou em minhas mãos, não só chocolates Regina, mas também, sementes de liberdade, de utopia, de verdade. Sementes de diferença e de igualdade …

Onde estás Canana?

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...