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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

“marcos-falos” [republicação]


Enquanto viajava detinha-me sempre nos marcos quilométricos da estrada. Uma referência ao destino que, à falta de GPS, me ia conduzindo, dia após dia, a distâncias de mim (ou proximidades) na medida exacta que me aproximava do local para onde caminhava. No caso, o espaço onde trabalhava à época, numa perdida aldeia Ribatejana, vizinha do rio.

Era Inverno, no seu início. Os dias estavam já pequenos, bolorentos e tristes. Os frios sentiam-se dentro e fora de casa. E nas almas; e nas palmas das mãos e nas espinhas/esqueletos e nos corpos. E nos corações… no meu, no deles…; no frio congelavam os sorrisos e os afectos. Como conchas, cada um a seu modo, engolia o molusco que o habitava, num processo de pré-hibernação. Envoltos em mantas, uma espécie de múmias vivas. Ali!

“O Inverno aqui, Doutora,  é sempre muito triste, depois verá …”. Laura, a cozinheira foi-me adiantando logo nos primeiros dias que cheguei … Era então Verão, num Julho a torrar as uvas das vinhas circundantes. Num sol estuante e inóspito. Não saíam de casa; calor em demasia …, cansavam-se. afogueavam-se…, “...mas no Inverno então, verá… isto é um desconsolo. um dó de alma.”

Via-lhe a verdade do discurso no olhar e nos maneirismos do corpo. E temia que tivesse razão. Temia o Inverno, retinha estas e tantas outras conversas, retalhos amiúde com que ia construindo as mantas trapeiras da minha própria velhice, e que guardava, a contento, em baú de sândalo. Memórias que dançavam agora à minha frente.

Respirava fundo, bebia a estrada, focaliza os marcos. Concentrava-me nos pequenos paralelepípedos de topo boleado a emergir da berma, altivos … na estrada e na vida. Alguns jaziam quebrados no chão de alcatrão empapado pela neblina matinal, nalguns locais gelo, estado vítreo…

Um dia lera de um autor que, a ele, lhe pareciam falos. Falos decepados pela metade (mais ou menos esta seria a ideia, de que não me consigo sequer recordar onde e quando a imagem de “marcos-falos decepados” entrou na minha caixa de “parafusos desapertados" …). Pouco importa. Incorporou-se em mim, e, em ausência exacta de referência bibliográfica, perdura per si, imagem: “marcos-falos decepados” no rubor da tumescência, no ardor de uma qualquer paixão, ou à falta desta, de excitação induzida, vulgo masturbação.

Viajava, conduzindo maquinalmente, e, naquele dia, mais que em qualquer outro, os marcos e as conversas da tarde anterior com Bonifácio, queimavam-me os neurónios, ainda semi-despertos, à falta do café da manhã e na falta de respostas sociais e socialmente certas.

O que era o certo? O que são as (in)certezas livrescas perante as realidades pungentes da vida? O que é lá isso de “envelhecimento activo?”. Afinal não era esta a temática que me havia num qualquer dia da minha própria utopia, proposto a estudar? - “Envelhecimento activo”… a que níveis? Com que níveis e grau de satisfação? Em que condições? … “marcos-fálicos” …

“...menina, somos velhos mas não somos capados como os porcos, nem sequer nos cortaram o pirilau, entende …, mas olham-nos como se fossemos. Para a maioria desta gente, ser velho é o mesmo que perder tudo. Perder a identidade, perder a vontade, perder a dignidade, inclusive perder o interesse por uma mulher …somos quase robôs, autómatos… “vá para ali, chegue-se para acolá” … lavam-nos e vestem-nos como se fossemos bonecos desarticulados, e, tantas e tantas vezes não entendem que ainda somos gente…”

Dizia-me tudo isto num rompante de palavras, como se, se o não fizesse, perdesse definitivamente a oportunidade de o fazer, e, simultaneamente, a coragem de, num qualquer dia, numa qualquer tarde, abordar o assunto. Dizia-me enquanto bebia o sal das lágrimas que lhe incendiavam a espaços o olhar mortiço. Dizia-me enquanto as face enrugadas, vincadas aos ossos e aos registos dos tempos, se enrubesciam de genuína vergonha.

Jaime olhava-me fixamente, tentando entender sinais de mim, ao mesmo tempo que, olhava, estupefacto, o seu companheiro de quarto Bonifácio, sentado na cadeira a seu lado. Nos sofás em frente, outros idosos residentes olhavam distraidamente o ecrã da televisão, ou, em alternativa, dormitavam… não falavam, quase que não comunicavam entre si. Eram assim os dias de Inverno de que Laura me falara nos primeiros dias …

Bonifácio agarrava-me o braço num gesto de quem quer uma bengala, de quem quer, da parte de alguém a quem chama de “Doutora”, a afirmação lógica e científica do “não despautério” que acabava de dizer …, então não lhes diziam sem dizer que já estavam meio-mortos?

Agarrei-lhe a mão. Transpirava abundantemente, gélida. Olhei-o nos olhos, não sabia que dizer. Envolvi-o num afago de olhar, apenas. Não lhe disse nada… Continuou:

“...sabe, a minha mulher que Deus haja – que a tenha em bom descanso, que já se me foi há quase dez anos -, era uma companheira e pêras, percebe Doutora? Entre nós havia amor, e, nem a Igreja, nem o Senhor Padre (o que morreu, bem se vê...) nos viesse dizer o que, entre a cal das nossas paredes, podíamos ou não fazer… éramos crentes a Deus e casámo-nos e amámo-nos à luz dos Sagrados Mandamentos mas também muito para além do que nos queriam fazer querer ser a palavra de Deus para o matrimónio: gerar família, procriar, cuidar dos filhos e da fé...
Só para procriar? Não, Senhora Doutora (sorria)…, sempre que podíamos, ouviu? Às vezes – tanta vez -, vinha numa corrida à hora da janta aqui a casa por via de poupar a minha esposa a canseiras de ir levar-me a merenda ao campo. Vinha àquela casita além, que a Doutora sabe, onde antes vivia, e, perdão da palavra … que se lixasse a sopa, porra… que se lixasse ...  Comia um naco de pão seco na volta com um punhado de azeitonas … a gente a modos que se devorava um ao outro…. Ai menina … só se perderam as vezes que não foi assim (sorria de novo…); fui feliz menina, com perdão, Senhora Doutora, mas e agora? Como quer que me resigne a esta solidão, a este desamparo? Não fiz voto de castidade, não sou padre, e, mesmo eles, vossemecê acredita que são castos? Ora, ora … Valha-me Deus que tudo superintende… nos céus e na terra, nos mares e na guerra santa...
Não acha normal que ainda sinta vontade de amar, de namorar outras mulheres? Que ainda sinta vontade de abraçar e beijar outras mulheres? Ora diga lá, que a senhora deve saber se, por um homem ser velho – tá certo, tenho quase oitenta anos -, não tem coração? …”

Bonifácio não sustinha as lágrimas. Tremia. O lado esquerdo estava-lhe paralisado de um AVC, ia para mais de seis anos, mas em termos cognitivos e de memória estava lúcido. Gastava o tempo a fazer palavras cruzadas. Tinha feito o exame da 3ª já homem, à luz do candeeiro de petróleo - contara-me noutra ocasião. Ao lado Dulce, sua mulher, que o acompanhava noite a dentro enquanto remendava as calças farpadas dos trabalhos do campo, e que, nem sempre entendera aquela vontade de conhecer letras. Queria que se fosse a deitar. Entende, menina... perdão, Doutora? ... mas que mais tarde, quando ele já sabia ler e ela não, era pelas letras dele que ouvira lindas histórias…

“...contei-lhas, Doutora. Li-lhe as Farpas, O Cavalo Espantado… conhece, Senhora Doutora??? Ela gostava tanto... Nunca aprendeu as letras, nem grandes nem pequenas, não andou à escola em menina, em adulta não tinha tempo, pensou aprender quando fosse mais de idade ... e depois padeceu de cataratas, ainda menos … ”;

Homem capaz de enumerar factos e datas, suas e da sua aldeia, sem vacilar. Capaz de ordenar rigorosamente quem havia chegado e partido do Lar depois de para ali ter entrado… A biblioteca a que as funcionárias recorriam quando queriam confirmar este ou aquele dado… mas, pese embora esta realidade, eram, tantas e tantas vezes, ainda que sem consciência do quanto o magoavam, elas as primeiras as que, em surdina, censuravam os seus olhares sobre uma mulher quando saiam em passeios, por exemplo. Na Festa da Flor, no Magusto... escassos momentos em que se viam rostos outros que não os dos residentes como ele e os delas próprias a quem guardava respeito como se fossem suas filhas. Suas irmãs. Sem sexo e sem corpo. "sabe Senhora Doutora, nas noites, nos turnos, oiço-as ali na sala a falarem umas com as outras, a rirem das vidas delas. Fico feliz, são a minha família agora ...". Mas troçavam em surdina, sim... E disto Bonifácio, como de todas as outras realidades, se apercebia e com isto se magoava. E nada dizia. E tudo calava. E morria todos os dias um pouco. Agora estava Lícinia no Lar. Tinha sido sua parceira na dança no Rancho de Folclore Espigueiros do Tejo. Agora o seu coração palpitava de novo. Agora queria dar-lhe a mão e levá-la a ver o jardim em frente… e, porque não, ler-lhe a Morgadinha dos Canaviais, ou o Crime do Padre Amaro ...

        “Acha o quê, Senhora Doutora? Que pensa? ...Bem sei que estamos os dois aqui, que não devemos dar maus exemplos … mas gosto dela, Senhora Doutora… vossemecê, que me diz? Diga-me, por amor da Santa Senhora D’Alcamé, … É mau um velho ainda amar? É?..”…

            “marcos-falos”… Espigueiros do Tejo, 1Km. …
                                                   A quantos o fim da estrada, Bonifácio?

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Publicado aqui, em 25/09/08, e, posteriormente cedido (1) para inclusão na   Antologia "Quem acrescenta um ponto ....", 2009. 
(1) vidé 
"Sinopse: Colectânea de contos escritos por alunos da Escola Secundária Avelar Brotero e que conta com a colaboração de cinco escritores que disponibilizaram histórias e poemas para a mesma. A organização desta antologia foi efectuada também por alunos desta escola de Coimbra."

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...