a Physalis(1) crescia no vaso de barro.
anunciava, em floração de invernos, o fruto próximo. de árvore em
árvore, de galho em galho, um bando de pássaros negros abanava as manhãs
num chilreio de ignomínias formando uma barreira contra o avanço da tempestade.
num trapézio de ensaiar vaidades, subiam de tom, alteavam-se. dispersavam-se,
porém, e depois a chuva retomava o seu curso, espessando a claridade,
que, no óbvio, diminuía francamente a visibilidade - o rio era então uma linha
leitosa, esbatida contra as margens, contra o cinza matriz do céu.
Sidónia encostou-se à ombreira da casa, embrulhada num robe azul-marinho
desbotado como as memórias, e que, àquela hora da manhã, já alta, por sinal,
quase meio-dia, ainda lhe aconchegava o corpo escanzelado de magro. era
assim, nos últimos tempos. sem ocupação conhecida, e sem projecto
de vida, sem quem a olhasse além dos olhos migalhados dos pássaros negros, os
tais que povoavam os campos metafóricos da vida, cada dia se aprontava
mais tarde, e, por mais que se tentasse convencer de necessárias ablações,
era-lhe inequívoca a urgência reclusa dos espelhos dos olhos. das
pupilas, das meninas dos olhos, razão de sua existência. ou não! Sidónia tinha
alma de pássaro e estava morta – teria sido talvez por isso que quando os rios
se juntaram em forma de cruz, no mouchão fronteiriço, as mulheres sangraram
pela primeira vez, e as lezírias foram searas maduras. dizia, para quem a sabia
ouvir, da democracia das águas e de como lavavam uns e outros sem atentarem às
origens. lavavam tudo, menos a má língua.
numa manhã de atrevimento, atreveu-se. olhou de frente o
céu, ele mesmo a atrever-se contra o espessamento da chuva, cada vez mais
próxima. era a hora de partir. deitou mão a alguns pertences, colocou a
capucha de burel a agasalhar-se nos ombros ossudos, subiu-a ao peito,
determinada, e contra o queixo, o mais que pode. resguardada
assim do frio da invernia rigorosa, saiu para a rua, sem destino concreto. os passos,
firmes, igualmente determinados, chão do seu próprio chão,
encaminharam-na para o palácio da sua meninice. mediu diferenças, se as
havia, afinou a esquadria. nada mudara, apenas envelhecera. o bulevar permanecia
intacto, o lago dos peixes vermelhos ladeado de árvores, as
laranjeiras em fila indiana formavam uma espécie de praça forte contra a rudeza
dos dias; e que dizer do o ar dali, macio, ungento, a vedar-lhe golpes na
própria casca? aspirou forte. isso, Sidónia, tu podes, tu
consegues. um passo em frente, dois atrás, um de novo, agora…
talvez devesse dar-se ouvidos – reconsiderar o que a movia
além dos passos, do verdete dos caminhos. talvez sim, quem sabe?
igual a sempre, a profusão de folhas e de cores formava com
o barro e com a bosta dos animais passantes uma pasta onde se enterrava,
prazeirosa; um emplastre calmante a que se dava, maçarica, esperançosa de
que, numa outra vida, alciónica quiçá, fosse luz além da barra. um dia, quando
seguia a bordo para a ilha, o mestre Carlos falara-lhe dos maçariços,
"almas-de-mestre", guias, as estrelas mais brilhantes das
Plêiades, segundo o próprio.
e não era isso que a minava? pólipos alciónicos? como cogumelos a proliferar nas vísceras...
tudo se conjugava afinal... conversa de merda... quanto tempo lhe
restava? querer alienar o tempo, dissera-lhe, era pois, uma impossibilidade -
ele deixa sempre marcas. por isso o remédio, se é que existe, está em
não haver remédio; enfrentar a besta pelos cornos de forma austera
e ríspida. as bestas não reconhecem outra linguagem, Sidónia. o
doce já não resolve, sabes? por essas e por outras é que este país está como
está, cravejado de diamantes em pano roto. fazes parte da "não pandilha" e
resistes, ou, pelo contrário, optas por chorar por dentro como as grutas,
criatura?
ainda te resta a escolha, o livre arbítrio…
um passo em frente, dois atrás; recorrente o ditado
americano "hell hath no fury like a woman scorned"
fustigava-lhe o rosto. tantas as formas de traição e tamanha a sua
passividade... ultrajante o frio que a varejava de vitupérios e injúrias.
seria bruxa, pois. que fosse!
_
saiu sem rumo. havia dias, vários, e que a Cremilde seguramente pareciam meses, que perdera a vontade de se
mimar, de se cuidar, de ser quem fora, ou cuidara ser, até então.
só a espaços, cada vez mais abetesgados e raros, é que, e por
efeito dos tachos e as panelas, dos cheiros das compotas fumegantes ou
das sopas, todos eles fortes e revigorantes, sempre diferentes e feitos
a olho, sem medida, sem regra pelas suas próprias mãos intuitivas, as imagens do futuro se lhe revelavam, vaporíferas.
surgiam-lhe ora recortadas e figurativas, ora exactas em geometrias
bruxuleantes, contra as paredes. em
ambos os casos despertavam-na para um sentimento a que chamava,
plagiando sabe-se lá quem, de "saudades de futuro". ainda assim, conservam-na numa espécie de banho-maria.
nesses momentos inalava profundamente a vida nas coisas breves consciente de que havia, algures, instalada num lugar distante, uma espécie de metanóia que a penitenciava em clausura e a mantinha prisioneira sem pulseira electrónica, sem apelo, sem agravo, na face oculta das coisas e se transformava na expressão corriqueira do seu sentir. e havia, constatava vidente, alhures, um tanque, piscina olímpica, de lágrimas não choradas, que, como um vento ronceiro, lhe impunha a mudança no pensamento...
nesses momentos inalava profundamente a vida nas coisas breves consciente de que havia, algures, instalada num lugar distante, uma espécie de metanóia que a penitenciava em clausura e a mantinha prisioneira sem pulseira electrónica, sem apelo, sem agravo, na face oculta das coisas e se transformava na expressão corriqueira do seu sentir. e havia, constatava vidente, alhures, um tanque, piscina olímpica, de lágrimas não choradas, que, como um vento ronceiro, lhe impunha a mudança no pensamento...
talvez devesse pôr-se em causa - reconsiderar o que a
movia, além da cor. do imediato do seu mundo de folhas amareladas, dos
silêncios e dos uivos dos cães, que, em ablação, a entristeciam, talvez
devesse. mas não...
foi mais ou menos por essa altura que se avistaram em
espelho. Cremilde baixou os olhos. Sidónia, pelo contrário, não tinha nada a
perder, olhou-a bem de frente. nunca se soube de que falaram, mas o que quer
que fosse durou horas, prolongou-se além do inimaginável. o gelo da noite,
como farpas, chispavas-lhe os olhos. na calada, Sidónia, envolta em
burel, uivou e era loba, embrenhada na floresta,
Cremilde retornou os passos. na cesta de vime carregava
as laranjas de todos os pomares que nunca haviam sido enxertados, bravos
como ela mesma. sem pressas, abriu um a um cada fruto, retirou-lhes os
caroços, colocou-os a salvo, prestativos os sabia em pectina, cola natural
e consistente. e o quanto necessitava dela para realinhar os cacos - a
vida era-me de vidro e partiu-se, disse. quanto às laranjas laminou-as em juliana, cobriu-as com
água, macerou-as de forma demorada. no fim trancou as portadas...
uma luz súbita rasgava o ventre da terra, o leito era-lhe
desconforto e ansiedade. ergueu-se,
soprou o dia, a noite e a madrugada. por fim, na manhã já
alta, banhou-se, aprimorou as vestes, enrolou o cabelo na nuca, colocou a rede
e as travessas. teria perto de cem anos. abeirou-se da cozinha; rigorosa nos
seus próprios preceitos e princípios, inflexível consigo mesma, retomou a
feitura dos dias de laranja amarga...
Nota:(1) Physalis