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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

sábado, 25 de agosto de 2012

equilíbrios



No jardim um pássaro acende a tarde e é verão...
(Chamaste ou é o apelo da noite que aí vem?) (1)

o problema, disse-lhe, não é tanto o que tu és hoje, mas, essencialmente, aquilo que não queres ser. nem hoje, nem amanhã, nem nunca. trata-se, na verdade, de  uma questão de resiliência,
ou de princípios, como lhe queiras chamar - brumosos nos são os espaços em que o tempo se vigia  a si próprio, concluiu, melódica,  em pausa.

melissa olhou, frontal, o rio.  a dois passos, na colina ascendente, o fogo consumia campos de memória. impotente, levou a limonada aos lábios, prescrição antiga, herdada sua infância: “bem sabes, ensinei-te: espremem-se os limões,  e, para que não trave tanto, adicionas-lhes uma boa laranja.  da baía, se as tiveres. espremes tudo para um jarro de vidro; juntas o açúcar (pode ser moscavado, eu prefiro, é mais saudável); finalizas, por fim,  calmamente, vertendo sobre o preparado água a ferver,  e, claro,  não páras de mexer.  depois cobres  o jarro com um pano de linho branco. deixas arrefecer totalmente; quando frio, juntarás cubos de gelo... quanto à hortelã, não a esqueças..."
tomou o copo de um só trago;  o gelo das pedras, formas caprichosas do que já fora, horas antes, água, colocou-se, peçonhento,  à fala. desejou chorar como todas as fontes caladas da colina acima em esbanjamento de culpa,  mas apenas uma lágrima se atreveu, ácida de sal e dor, e,  logo ali, parou, estancada, na fronteira pestanuda do olhar,  foi-lhe,  apenas
cloreto de sódio.
desejou-se, a si própria, talentosa, ágil e hábil, capaz de contornar, um a um, liminarmente, todos os obstáculos,
desejou-se
distante do seu passado,  e, contudo, próxima do futuro de ser presente,
- o passado volta sempre, maria, dissera-lhe naquela tarde de Agosto.  "a solidão tem tanto Agosto"(2), e,   por isso, vamos íngremes pelo espaço da memória em busca de clareiras de segurança e tranquilidade, em busca de emoções equilibrantes.  talvez por isso tu me tragas aqui, e eu, apaziguada, solte a língua das pedras e do gelo das limonadas e  te fale de mim, de quando tinha numa cama amniótica a esperança perpétua de ser continuidade,
sabes, maria, um dia escrevi, quase te posso recitar em voz alta,
… no trapézio da vida, há, seguramente, uma nota simbólica.  e há, em absoluto,  simbolismo em tudo isto - tu estás aqui e poderias não estar. acreditaste.  és, do amor, prova inequívoca, semente a germinar em condições inóspitas. e força.  e determinação, e, por isso, também,  multiplicação do pão-palavra em minha boca.
sorriram ambas. cortaram as emoções num, vamos à Areia Branca comer um gelado? bora lá, eu pago...

que importava quem pagava, ou se até não pagava?  não mais esqueceriam aquela tarde. nem os livros, nem as cartas de marta a maria, nem do limoeiro, ou os limões, sequer das limonadas que as levavam de regresso aos pátios, às chácaras, e à infância.  aos cheiros dos verões, da roupa branca, do sabão, da simplicidade, da arte das gomas e das  barrelas, do cheiro do vime. de ambas.
de menta com pistácios? não, de manga com canela... igual para mim!
a tarde caia nas vagas sadias das suas mãos, na conversa lenta,
não podemos descer a Pai Mogo, devido à instabilidade das escarpas. não vá o diabo tecê-las. costumávamos ir na maré-baixa...
...
regressou a si. as labaredas contornavam a serra, estavam próximas do casario. uma nuvem de fumo espessava-se contra os vultos frios das pedras. humanizadas, tomavam uma cor de medo. e  nada que era humano lhe(s) era estranho. nem sequer o grotesco das labaredas a encarquilhar cepas,  a dizimar esperança de ser vinho, numa dança com os bagos,  pedúnculos e cachos, a arrancar-lhe(s) o sal, o mel, e as cinzas.
a morte não existe, disse, apenas da vida uma porta de passagem. como um portal, um arco-íris…
ou uma esquina,

tenho sede - determinou. sede. simples não é? nisso não há  qualquer novidade, é verão.
...pois, será por isso.

encaixou-se na poltrona de verga, afundou-se, profunda,  até ser, desta,  quase parte; sem terra firme,  tomou o jarro, verteu de novo. reteve a forma. a limonada, de partículas antes suspensas, assentava o fundo do copo que, quente das palmas submissas de suas mãos, a transformavam: mais se assemelhava a água choca. bebeu-a, ainda assim - fruto do meu fruto, e, no meu ventre,  real e  reinventando, verbo - frase,  traço contínuo, recta sem ponto final. porquê? para quê? para quê????
da serra, o vento.
o fogo, a chama - à beira do fogo, crepita o fogo, a acha, a chama. e o vento. há, escuta bem,  um gemido fino neste vento. consigo ouvi-lo, maria, e, por isso, não nos foi possível ir à ilha - oiço-o aqui, tal como te oiço, a desfolhar trevos de memórias, trevos de quatro folhas.  naquela tarde, não nos foi possível a travessia (nem sempre os tempos são propícios)...
agora aqui,  na lezíria, percorro  palavras de Einstein - quando não há crise, todos os ventos são brisas.
quem dera, fossem!
e são, dirias, confirmo-to! brisas marinhas.
quando regressas? amanhã? no próximo verão? quem sabe? iremos comer gelados e ser de novo meninas no areal da praia. claro que sim. claro que sim…claro que sim.

melissa ergueu-se, recta. por essa altura, dirigiu-se aquele lugar só dela - nunca falara dele a quem quer que fosse.   como, jamais falou, ou falaria,  das  linhas subtis, e suas guias,  na noite escura.
subiu as escadas, degrau a degrau. escutou-se, atenta. sentiu apenas a poeira ao redor dos pés. o ranger dos dentes e do sobrado. o choro dolente das árvores consumidas, o gemido, fino,  pianíssimo: basta-me que respire. que respires, tão-somente,  na melodia breve de notas de rodapé, apelo uterino dos frutos tomados das árvores - as suas árvores, os seus frutos. simples. muito simples. na simplicidade das coisas simples que tanto a engrandeciam.

regressou ao pátio. os dedos, pesados dos dias em negação de afagos, demoraram-se no vidro grosso, nos contornos trapezoidais da estrutura a que se apoiava. abriu a janela, um raio de luz iluminou o sobrado.  de novo os olhos parados no vermelho acidulado das labaredas. de novo o fumo a tingir a copa das árvores, o negro viscoso das coisas indizíveis. de novo a crise segundo Einstein,
"... a criatividade nasce da angústia, como o dia nasce da noite escura",

encenou os passos.  de novo aquela fome das palavras próprias, capazes  de engolir nevoeiros e  labaredas.  apostou-se contra a estrutura. o barrote, trave mestra e estrutural, rangeu.  o sobrado, ferido das palmas e dos pés ausentes, iniciou o bailado de vésperas.  inúmeras, indispensáveis, as notas de um piano de cauda deram o mote. depois, afirmaria,  havia ali uma orquestra, íntima e  residente,  transparência das escamas e acervo de um casulo de peixes voadores,  que a abriga no contraditório de todas as coisas e si própria.

olhou o copo. estava vazio de coisas e pleno de graças. num pacto de sangue, afagou o ventre, dedicada. como quem gira em torno do mundo, subiu a mão, ao lugar de abrigo. aqui, estás aqui, entronizado. aqui, na furna que sopra,  
       "amar-te é antigo e não acaba"(3)...

melissa, maria, marta, imperatrizes de um templo salvífico, humanas e terrenas, sabiam-se distintas e comuns aos ciclos das colheitas. sabiam, de modo igual,  da audácia dos cardumes, da ordem das colmeias e da descoberta dos corpos.  e da elegância dos gestos novos,

            e de como o Outono acalenta a terra prescrita para a queda branda das folhas…



(1) Eduardo Bento, in “O nevoeiro dos dias”,  (65 Poemas), 2009, Ponte Editora
(2) Alberto  Pereira, in "Amanhecem nas rugas precipícios", 2011, Edium Editores
(3) Casimiro de Brito, in "Amar a vida inteira", 2011, Roma Editores 

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...