“… palerma, chapéus há muitos”…
Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são
meus e nunca estabeleci com eles uma relação de afecto…
A história deste conta-se em meia dúzia de palavras.
Comprei-o em Boston, corri o ano de 2006. Em pleno Dezembro fui para os
“States” desacautelada. Se a minha avó fosse viva e me visse, dira :“tens a
mania de andar em corpinho bem feito”, o que, para ela e na linguagem dela,
significava mal agasalhada sem um abafo que alargasse as formas mas aquecesse a
alma.
Bom, comprei-o. A ele e a uma gabardina que mantenho até
hoje. Ambos e “marca”!. [tudo tem marca, costumo dizer…]. Ok. Este era de marca,
mesmo. Loevenich, Caps &Acessories. Foi amor à primeira vista e para a
vida. Um investimento, portanto!
Viveu comigo e perdurou existência fora, desde então, ora
para me proteger da chuva, ora para, naqueles dias soalheiro me proteger do
sol. Estava ali, sempre à mão, no bengaleiro da entrada. Até que, no mesmo dia
em que a Elsa (Depressão Elsa, 2019.12.20) se abateu sobre Portugal e me havia
destruído integralmente o meu amado chapéu de chuva “dos cães”, em plena
Alverca, deixando-me completamente desabrigada, como se não bastasse, ao chegar
a casa, na urgência de salvar bens expostos no terraço e na varanda, deitei mão
dele. Haveria de me abrigar da intempérie, por Deus. Fiz-me à chuva. Num segundo,
dei-me conta do erro da minha escolha - o meu “velho Loevenich” que tinha atravessado
comigo o Atlântico voou como uma ave afoita para fora dos meus olhares … No meio da chuva e do vento não houve mais
vislumbre do dito. Praguejei raios e coriscos, blasfémias e outros tantos
impropósitos dignos de uma senhora. Muito menos de uma senhora que usava
chapéus …
Recolhida a casa, matutei nas perdas do dia. A tal frase,
“palerma, chapéus há muitos”, não me saía da cabeça. Essa e a outra “quem o seu
não cuida, o vento e leva”. Bom, naquele dia, dois dos meus chapéus tinham partido
para o Reino dos Chapéus Perdidos…
Como tudo na vida, vamos arrumando lá mais atrás os
incidentes que nos assolam a pele, na certeza de que “O passado é um buraco
negro, a que, se te abeiras demasiado, corres o risco de ser engolida…”.
Tempos depois, alguém a quem havia contado a história,
presenteou-me com um novo chapéu de chuva, desta vez de gatos… Um gesto maior,
generoso e inesperado que dulcificou a perda de outro e uniu pontas de uma
outra história. Há gestos que nos marcam…
Mas o meu velho Loevenich não foi substituído. No bengaleiro
permanecia vazio o seu lugar.
Passaram cinco meses sobre a Tempestade Elsa. Esta semana,
uma trovoada incomensurável abateu-se sobre a casa, as árvores, as terras,
lavando e varrendo tudo ao redor. No dia seguinte o sol brilhou desmedido.
Havia que proceder à recolha das
nêsperas, não fora uma nova trovoada dar cabo do ouro que a natureza me
oferecia de bandeja, e eis que, se não quando, como que a dizer
“estive sempre aqui, não te abandonei, tonta, e vou continuar a proteger-te nesta tempestade
maior”, lá estava ele, o meu Loevenich. Incrivelmente, não tinha manchas
notáveis ou marcas de destruição. Uma sujidade ligeira perfeitamente removível
numa lavagem a 60º. Cinco meses aninhado na copa das árvores a ver mais alto a
vida. E a sábia metáfora do meu professor de Sociologia, o saudoso Prof. Doutor
Bettencourt da Câmara: “Amélia, nunca se esqueça, o anão às costas do gigante,
vê mais alto…”. Exacto, Senhor Professor, o meu chapéu entendeu às costas da
nespereira, a amplitude dos tempos e a necessidade do regresso. Entendeu a utilidade
do gesto.
Hoje voltou ao seu lugar: a minha cabeça.
Pois… “chapéus há muitos”. Mas este conhece de cor as raízes do meu pensamento. Estou daqui a ouvi-lo “palerma, chapéus há muitos…sorri!”
Pois… “chapéus há muitos”. Mas este conhece de cor as raízes do meu pensamento. Estou daqui a ouvi-lo “palerma, chapéus há muitos…sorri!”
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