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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Morreu Serenamente



- gostava tanto de dançar, menina, tanto … dizia-lhe enquanto a percorria num sorriso de luz na memória revisitada naquela manhã de Inverno quase Natal..
- toma um chá quente, D. Anália?
- tomei um de manhã, menina, ao pequeno almoço…
- mas quer um de novo? só para me fazer companhia… vá lá ...
A cabeça a abanar afirmativamente. E um novo sorriso de gratidão imenso, rasgado, sereno. Pelo chá, pelos cinco dedos de prosa, que adivinhava ia ter…
- aqui tem. Com pouco açúcar. Desculpe … tem de ser, como sabe. O meu é mesmo sem nenhum, que gosto do sabor das ervas…
As mão tremelitantes num afagar de chávena. E as da interlocutora a tocarem as dela. E ambas em sintonia. Em rota. Em busca astronáutica da poeira e da poalha dos astros.
A cadeira de rodas encostada ao lado e a poltrona cheia de almofadas. Os pés poisados, os pés cansados, num pequeno banco a que chamava seu…
- ajeita-me o banco, menina? Só um bocadinho mais para trás, vai deslizando no mosaico… ai estes pés… tanto que dançaram menina, tanto…
- o que dançava D. Anália?… no rancho?
- no rancho? Não, não … danças de salão, tango (gosta de tango?), valsa, (e valsa, gosta?) … sabe, a vida é tão rápida, tão, mas tão rápida ...tenho tantas saudades, tantas… das tardes em que dançava, do meu par.
- seu marido?
O olhar agora enigmático, fugidio, volátil, a esculpir figuras cénicas na enseada. A ansiedade de saber o quanto já era tarde. O cabelo branco, tão branco, a emoldurar o verde-cinza do olhar. E o sonho misturado com a magreza da realidade.
- não menina, meu par na dança, apenas … O meu par real era outro. O meu marido não sabia nem gostava de dançar. Escolhi então aquele (e ele me escolheu a mim) e nos seus braços, menina, encontrei a liberdade… Era tão lindo o meu par… esguio, alto… nunca mais o vi.
O olhar agora longínquo beijava a memória dos tempos de que não havia retratos. O olhar de Anália girava em ciclos concêntricos parados nas rodas da cadeira de rodas. Na incontinência total, de fezes e urinas, que não raras vezes a tornavam alvo de chacota. Dos outros. Dos pares ali em sala...
- está toda borrada. Outra vez…
E as fezes, líquidas, incontidas, a chegar aos pés da mesa. Em poça. E o almoço de todos completamente estragado. O desconforto. A mágoa. A impotência face ao cruel da realidade.
- tão triste ser velho, menina. Tão triste…
Um afago breve - “esqueça, D. Nália, foi apenas um incidente. Já se limpa tudo, verá…. Fará a sua higiene, voltará aqui à mesa para fazer a sua refeição …”
A cabeça a abanar compulsivamente. Não. Não, nãoooo... Depois o olhar indiferente… ausente. Talvez algures a lágrima. Não chorava.

Agora a dança. Um sorriso de pássaro livre. Fora. Seria até ao fim.
- está bom o chá, D. Anália? Quer uma bolachinha de água e sal?
- não, obrigada, não se mace. Basta que fique por aqui… é bom conversar…

Morreu serenamente. Na mesa, ao pequeno almoço. Sem uma palavra. Acompanhada pelos pares da casa última antes da derradeira morada…



sexta-feira, 22 de julho de 2011

A RIQUEZA DAS NAÇÕES

Ao acordar, ao ouvir o noticiário,  veio-me à memória este texto, escrito e publicado aqui, há  três anos atrás... Entre as tristes realidades, a da ilha italiana povoada de clandestinos, o desespero a matar tanto quanto a fome num mar a virar barcos,  a voz indignada de um bispo que não se inibe de denunciar realidades, a arrogância dos ricos,  o fogo-fátuo de  vaidades, os lucros desmesurados dos bancos, os sem-abrigo ... Viajei no tempo ... O que é na realidade o tal conceito de "riqueza das nações"?...Simples - uma cadeia inequívoca de solidariedades - Porquê??... talvez porque,  
a(s) casa(s) fervilham de novo,  falam em várias línguas,  incluindo o gesto,
porque crianças e idosos, animais e pessoas, convivem e partilham espaços e vontades,
porque todos os cantos cheiram sempre a bolos e a compotas,  as andorinhas  olham espantadas o "entra e sai" e, mesmo assim, por cima da porta, no seu ninho de anos,  alimentam a nova ninhada  de bicos em trinados mansos (mais quatro),  os novelos de linhas brincam com a gata, os óculos da avó dormem esquecidos no sofá,  a areia,  a lama,  não se soltam dos pés dos que não têm força para os esfregar no tapete da entrada (pouco importa), os tapetes brancos ganharam os tons do giz azul  do quadro de ardósia e o chão geme riscado sob os pés das crianças, sorrindo,
a vida vale, digo eu, pelos afectos...
e porque,  acima de todas as coisas, esta é para mim a verdadeira,  a derradeira, "riqueza das nações", além da  senhora Ângela Merkel, de todas as cimeiras, de todos os pactos de (d)estabilização económica, do euro e do escudo.
Boas férias a todos, meus amigos ...
______________ 
 A RIQUEZA DAS NAÇÕES

Quem se aventurou por algumas leituras sobre temas económicos, certamente conhece o título acima, “A riqueza das nações”, como a obra mais famosa de Adam Smith e não deixará de se recordar da metáfora a que está associada : “mão invisível”.

Extrapolando esta metáfora para um âmbito maior que o económico, tenho por quase certo que, em rigor, existe uma espécie de “mão invisível” que nos encaminha, nos direccionada, para esta ou para aquela vereda ou via aberta de uma estrada, a estrada da vida.

Quem me lê, saberá por certo que não sou dada a crónicas, talvez porque me falte alguma capacidade de síntese e as palavras se me embrulhem sempre em redundâncias “poéticas”. Todavia, existem momentos em que me dou conta duma espécie de necessidade estranha de partilhar o que me vai em mente. Para além do grupo dos que me rodeiam (famílias, amigos mais próximos). E este é um desses momentos.

A “Riqueza das Nações” que aqui vos deixo,  é pois, uma crónica de um dia real, de um tempo real.

**

Maggen chegou. Esperava-a no aeroporto sem estar certa de que a iria reconhecer. Vira-a apenas uma vez em Boston em Outubro passado quando visitei a minha filha. Estivera escassos minutos com ela, e, para além disso, vira algumas fotos. Da amizade que entre ela e a Rita, minha filha, nascera, numa convivência diária em partilha de casa no âmbito do estágio que ambas efectuavam no Instituto Oceanográfico de Boston, surgiu  então o convite para que nos visitasse no Verão. Os meandros da visita foram acordados entre ambas. A mim cabia-me a tarefa de tornar do ponto de vista logístico e afectivo a sua estada tão agradável quanto possível. Seriam dez dias repartidos entre a morada de família nos arredores de Lisboa e, a casa de praia, em Peniche.

Rita trabalhou o programa de visitas na cidade. A determinada momento vi-me incluída . Se estava de férias, poderia acompanhá-las. Confesso que hesitei: o que faria uma mãe “cota” junto de duas jovens, perfeitamente autónomas, perfeitamente adultas, pela cidade?  Rita nem admitiu recusa: - Vais sim, mamã. Está decidido! Vais!

Fui. Desde o aeroporto, até ao dia de ontem, em que Maggen partiu de regresso a casa, desde que chegou, estabeleceu-se entre nós uma “química” de mãe/filha. Maggen adoptou-me, e vice-versa. Se, nalgum momento, as não acompanhava, Maggen queria saber porquê. Se me via mais calada, inquiria porquê. A dado momento, num dos dias em que a minha saúde não me deu paz, Maggen, disse uma frase que jamais vou esquecer: - “numa casa, quando a mãe não está feliz, não está bem, ninguém está bem…”. E, ela, Maggen, porque me viu mal, não estava bem… percebi. Maggen tinha genuíno interesse pelo que escrevia, queria ver os meus trabalhos, por exemplo.

Os dias corriam, voavam, sem ter a sensação de que tinha uma “estranha” em casa. Não era, desde o primeiro momento. Usava-se o pijama pela casa, andava-se descalça(s). Mostravam-se cabelos desgrenhados se fosse o caso. Não haviam figurinos nem “faz de conta”. Éramos tão só quem éramos: uma família normal, com um dia a dia normal. À noite e na noite, a Maggen não contava com a minha presença… era o tempo dos mais novos….

No penúltimo dia metade da família foi fazer mergulho subaquático na Berlenga, Maggen incluída. Quanto a mim, que tenho com o o mar um idílio contemplativo, atravessei a distância entre Peniche e as Berlengas na cabine de comandos do Cabo Avelar Pessoa, usufruindo da companhia do mestre, que conheço há vários anos e que,  a  par com a restante tripulação,  me proporciona sempre preciosos ensinamentos sobre os segredos da ilha, ventos e marés - uma espécie de biblioteca viva a que recorro, ano após ano… os saberes dos homens do mar.

Quem conhece as Berlengas saberá da exiguidade de espaços para toalhas e afins. Num Agosto no seu auge, com um tráfego de barcos constante a transportar pessoas, a paz, a beleza daquele santuário da natureza, são, em muito, devassadas.

Com apenas um restaurante e um pequeno bar, quem visita a ilha sem a devida informação, vê-se a braços com a escassez de sombras, com a escassez de água, de bens de consumo. Não existe sequer multibanco...
E, em oposição, filas intermináveis para adquirir uma garrafa de água que seja. Para beber um café...

Conhecedores de tudo isto, abastecemos-nos em terra, e lá vamos nós, de geleiras e chapéu de sol…

Éramos um grupo de mais de uma dúzia de pessoas, adultos e jovens adultos. Portugueses, todos e, claro, a Maggen. De viola em punho, o meu filho João alegrava o grupo, a Ana cantava, fazia “tererés” no cabelo dos amigos… enfim.

A determinado momento olhei e vi que, junto a mim, uns pés buscavam ávidos a sombra. Nem me tinha apercebido da sua chegada. Uma mãe (admiti) e dois filhos adolescentes. Dois rapazes. Olhei com mais atenção e percebi: ingleses, porventura. Brancos como leite, sob o sol escaldante do meio dia, no funil das falésias… Não resisti, aconselhei que usassem chapéus, t-shirt… Não tinham chapéus. Não tinham nada, percebi depois. Haviam chegado ao cais de embarque, viram da possibilidade de ir à ilha e, sem que tivessem a ideia de que a ida implicava permanecer das 11.00 da manhã às 4.30 da tarde, foram. A viagem que presumiram de uma hora, era afinal … de um dia.

Estabeleceu-se o diálogo. Juddy, a mãe, era oriunda da Escócia, a viver em Amesterdão. Visitara Portugal nos anos oitenta e voltava agora. Estava espantada com a mudança do país, com a mudança de mentalidades. Dizia que os Portugueses de oitenta eram fechados, sorumbáticos. Os de hoje, de rosto mais aberto, de trato fácil. Mais cultos, mais disponíveis. Questionou sobre Maggen… que se apresentou como “nossa filha americana”… Rimos todos.

O dia decorreu, entre mergulhos e partilha de empadas, de sumos e sandes diversas. Entre troca de experiências, de vivências e, por fim, troca de e-mails.

A determinada altura, disse-lhe: - "O mundo é mesmo muito pequeno… Rita irá brevemente para a Escócia, fazer o seu Doutoramento."

Riu. Na Universidade para onde Rita irá, lecciona um familiar de Juddy... “não há coincidências", pensei … a tal mão invisível a comandar quem cruza com quem nesta longa estrada da vida, verbalizei.
Juddy respondeu-me: - “se não bates à porta, não sabes se dentro está alguém morto ou vivo…”.

Claro, Juddy, tens toda a razão. A questão é que, tantas e tantas vezes, temos receio de abrir a porta, ou melhor, de bater sequer… e, por fim, dei comigo a pensar que a “riqueza das nações” é, indiscutivelmente, as pessoas. O seu recurso maior, o que marca e faz a diferença, o seu cartão de visita. Para além da beleza das coisas, da natureza, dos museus, a arte natural ou construída. São as pessoas o seu bem maior. O que os habita, a capacidade de se revelarem, de se darem aos outros…

Quando voltei a terra, no Cabo Avelar, revi os meus últimos dias, um a um. E achei-me mais rica. Indiscutivelmente mais rica. Tão mais rica. Não sendo crente num só Deus, mas na força cósmica, intimamente, agradeci ...

Maggen foi fazer umas compras de última hora. Quanto a mim, entretanto, preparei o jantar. O seu último jantar desta temporada. Desejava que fosse a seu gosto. A campainha tocou. Era Maggen, com um ramo de flores. Esticou-mas.
Olhei-a sem perceber…
“ flores?...”
“sim, para a minha mãe portuguesa …” . Abraçámos-nos, ambas já saudosas. Penso que Meggan interiorizou o conceito de "saudades"...

Volta Maggen. A casa é tua, a família é tua. A riqueza das nações, são pessoas como tu, como Juddy, como os filhos... pessoas que ousem partilhar afectos.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

basalto

quando te talhei no basalto dos meus dias, pedra angular onde despertam verbos de cansaço, procurava a linha original do beijo porque ansiavam os meus lábios, o antídoto,  a sombra clara das dunas em poças de marés,

quando te bordei, epigrama, no linho colhido na estepe selvática,  respeitei o rigor do ponto, a bordadura antiga –  à luz da candeia estilhacei cada pálpebra ou membrana ocular,  todas as pestanas do silêncio,  todas as palavras desnecessárias, todos os desconfortos implacáveis da expulsão do paraíso.  num jogo de tesoura papel ou pedra fui  peleja desabrida quando,  fora de mim o mundo dormia e acordava louco,  e eu  imaginava a minha pele na tua,  a renovação boreal das horas,  as quatro estações de Vivaldi, os lóbulos das orelhas, os  labiais,  carnudos, vagarosos,  pássaros  cor de lima –  a coisa nomeada –  insulas onde a língua  tivesse o sabor a sal e menta, a saliva se profanasse a adentrar a simplicidade terrestre e eu fosse,  da tua cítara a nota final intentada,  pianíssima nota de partitura adquirida a desfolhar primaveras,

na espuma de teu olhar leio o tardio desta hora  –  tão velhas as palavras, como ângulos, cabos rasos sem luz quando, os dedos das fadas roxas gemem na ombreira das portas,  o zimbro tomou conta das roldanas dos estendais,  e [me] gemem e guincham como ratos à beira do precipício em cordas aflitas,  ao mesmo tempo que as meadas multi-cores fenecem por tecer  no horizontes das coisas raras  um singelo arco-íris, e eu não estou certa de que ainda me recorde, do macramé básico,  ou  a forma elementar de realizar
o nó de cotovia,

e ainda assim jurei de acreditar que a fala d'alva era a semente, a consistência da luz  anterior aos ciprestes,  a água igualada a semi-colcheia  que nos brota,  nubífugos, em mapeamentos mentais dos punhos,  compassos abertos de emoções em rocha ígnea, dura e escura,  a mesma que [nos]  incendeia os olhos  no mistério das ondas e nos faz ser crentes de que,  o limite dos homens será sempre o local onde se precipitam as aves e desaguam os rios.  na efemeridade dos instantes  -   lugar da partilha, a incensar, galhardamente, o vento.
sem dúvida que me dirás - há um certo bucolismo em tudo isso, e te respondo, por certo sim, são apenas margens  no poema do teu corpo onde me repousam as claridades de uma certa calma tão necessária, e é, creio,  quanto nos  basta para que não se melancolizem os lábios e as palavras vitais,
as que,  antes de todos os nós, sabiam dos carreiros das formigas, do maturo das colheitas e das vinhas da ira,
e nos conduziram, cândidos e fundíveis,  pelos caminhos do amor,  trilhos de Santiago,
          ... descalços. 


“De todas as coisas, a menos susceptível de se comunicar é o amor; mas a fé no amor, essa age  sempre com um conhecimento acessível a todos os homens” 
Agustina Bessa-Luís, Aforismos.

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segunda-feira, 11 de julho de 2011

Hélder ou a encenação do diálogo

somos o lugar e o domicílio de todas as solidões"
Constantino Corbain

Na "hora do lobo" escreveu, quando lhe entregaram para que preenchesse, um formulário complicado.   No espaço destinado ao "local" , campo exíguo por sinal,  apertou as palavras, contraindo-lhes o ar "domicílio de todas as solidões". Deslizou a mão não fosse esborratar a folha e no fim, no campo das Observações, declarou: Morte natural, nada mais a declarar. Para que constasse.  
Levantou-se rígido, encaminhou-se direito ao galinheiro, sangrou o galo capão, molhou o indicador. Depois colocou no local da assinatura, a sua marca própria, de analfabeto funcional.  Olhou o impresso, transparente como a linfa, última invenção da sociedade burocrática. Max Weber haveria de jubilar se conhecesse tal incremento da tecnologia. Sorriu de antecipado gozo. Cumprida a missão. Leu [se] em voz alta. Havia falha de informação – não sabia a hora ou sequer a data exacta  a averbar em certidão, o dia de morrer – o seu.  Juiz em causa própria, morrera em todos eles,  como vivera. Disso tinha convicção plena. Sabia que, águas depois,  marés mais tarde, que o cão fiel companheiro de olhos doces de saudade (também ele há vários anos solitário), seguidamente  à hora da  gata de olhos de porcelana e miar de fogo.  A tartaruga, inexpressiva, como convém a tartaruga que se preze, mantinha a obrigação de exigir a cabeça fora das costas a arrastar na tijoleira a  carapaça.  Contudo, o brilho dos olhos estava há um horror de vidas riscado de solidão. Não contava, portanto. Companheira, essa, voara como um fumo em dias vendaval -  não lhe sabia nem queria saber o onde ou para onde nem com quem. Ficara-lhe apenas dela o cheiro em todas as fendas da casa, em todas as gavetas que se recusava a abrir. Em todas as roupas que ela usara e deixara suspensas em cruzetas, dobradas a rigor dentro de cómodas, a par com saquinhos cheios de lavanda e alfazema. Ficara-lhe dela  os pentes, as escovas ainda com resquícios de cabelos (eram de fogo os cabelos, talvez de cobre, não sabia muito bem…), ficara-lhe ganchos, travessas, elásticos e bijutarias de algum valor,  sobre a cómoda de nogueira em  caixas pintadas pelos seus dedos – via claro agora que nunca os beijara, nem chupara. Teriam sabor diferente dos da Filipa ou dos da Joana? Os dela, de Rosália, a que saberiam? Inquietou-se. Um nó estranho apertou-lhe a maça do pescoço. Desapertou-se. Dela  ficara-lhe o cheiro impregnado na cozinha das suas compotas, dos bolos, das iguarias com que durante anos o mimoseara  e aquela mágoa a que chamavam dor de corno, por não ter sido homem para a segurar. Não lhe faltara com nada a não ser com o que, raios as parta, desejam as mulheres – um beijo ao amanhecer e outro, se possível mais longo e mais profundo, antes de dormir, Afinal, homem, podes nem acordar. Ou eu, quem sabe? Ou eu….
Em certos dias nem lhe respondia, noutros, Sim, sim, tá bem, até amanhã, dorme que se faz tarde,
Virava o rabo, olhava as frinchas das portadas, contava carneiros se não adormecia de imediato  – o que era raro –, Que falasse. Quanto a ele,  em dois tempo roncava,  C'os diabos era lá homem de lamechismos?  Beijos dava-os às moçoilas quando rapaz, se as apanhava a jeito num esconso em que as subia e as trepava por todas as colinas, em que lhes prometia a mesa farta do seu corpo.  Desse tempo, ficou-lhe o gosto, retomado a cada dia. Rosália era virgem quando a tomara sua e nunca passou desse estado a seus olhos ainda que neles bailassem luares a agourar a experiência íntima do excesso. Hélder era, por conseguinte canónico com a mulher e putanheiro com as demais. A sua era santa, e, se vinha em mácula – bebido ou tocado pelo pecado da carne fora de portas, não lhe tocava ao de leve,  nem para o beijo de boa noite, Tu vives no Paraíso, Rosália, sabes lá o que é o mundo. É cão, morde as canelas dum gajo, o mundo é mar traiçoeiro a virar traineiras mesmo quando se anuncia mar-chão,
Às vezes o Paraíso, respondia-lhe em surdina, mata mais que o Inferno, mata mais profundo que o mar de onde vens,  e tudo o mais. O fogo é lento e a água ferve em banho-maria, por anos e anos,
Tens tudo, nada te falta, Falta-me a vontade, Pois bem, sim, sim,  faz rendas e bordados, não te obrigo a fazeres mais nada. Já te olhaste em espelho? Não tens marcas de esforços,  estás lisa e luzidia, nem rugas tens (no corpo dela, havia,  sem que as visse, marcas intrigantes de violência –  iam e vinham, a espaços, como as marés  –  amareladas, pardacentas...)

Morreu quando tudo à sua volta começou a morrer, o bolor tomou conta do frigorífico, as plantas do jardim secaram em pleno Inverno, as orquídeas deixaram de florir, o lixo se acumulou pelos quatro cantos da casa.  Morreu no dia em que a viu no jornal na coluna da necrologia. A custo leu a notícia de letras demasiado pequenas para a graduação dos óculos. Recriminou-a, palavroso – era obrigação dela,   só dela, ter providenciado a consulta atempada do oftalmologista, as mulheres têm papeis destinados desde a nascença - cuidar dos pais, dos filhos, dos maridos, Vês Rosália, agora nem sei se estou a ler em condições ou se as letras bailam a enganar-me como tu,  mulher sem préstimo. As lentes estão desfocadas, que bicho ruim não morre nunca, Rosália, o que leio é maquinação tua, mandaste escrever estas palavras para te ilibares e me incriminares a de mim,   puta que te pariu,  ingrata,
                 “Hélder do Carmo encenou a morte de Rosália Lira durante mais de trinta anos de vida conjunta mas foi pelas mãos da própria que a peça subiu a palco", puta que a pariu, repetia para se ouvir,   foi ela quem assim escolheu.

Pela primeira vez em muitos anos sentiu a face molhada. Não chovia. As águas da ria subiram o sobrado onde se encimara. Por ali ficou. Puta que a pariu...


Imagem da net, autor desconhecido.

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...