…
- gostava tanto de dançar, menina, tanto … dizia-lhe enquanto a percorria num sorriso de luz na memória revisitada naquela manhã de Inverno quase Natal..
- toma um chá quente, D. Anália?
- tomei um de manhã, menina, ao pequeno almoço…
- mas quer um de novo? só para me fazer companhia… vá lá ...
A cabeça a abanar afirmativamente. E um novo sorriso de gratidão imenso, rasgado, sereno. Pelo chá, pelos cinco dedos de prosa, que adivinhava ia ter…
- aqui tem. Com pouco açúcar. Desculpe … tem de ser, como sabe. O meu é mesmo sem nenhum, que gosto do sabor das ervas…
As mão tremelitantes num afagar de chávena. E as da interlocutora a tocarem as dela. E ambas em sintonia. Em rota. Em busca astronáutica da poeira e da poalha dos astros.
A cadeira de rodas encostada ao lado e a poltrona cheia de almofadas. Os pés poisados, os pés cansados, num pequeno banco a que chamava seu…
- ajeita-me o banco, menina? Só um bocadinho mais para trás, vai deslizando no mosaico… ai estes pés… tanto que dançaram menina, tanto…
- o que dançava D. Anália?… no rancho?
- no rancho? Não, não … danças de salão, tango (gosta de tango?), valsa, (e valsa, gosta?) … sabe, a vida é tão rápida, tão, mas tão rápida ...tenho tantas saudades, tantas… das tardes em que dançava, do meu par.
- seu marido?
O olhar agora enigmático, fugidio, volátil, a esculpir figuras cénicas na enseada. A ansiedade de saber o quanto já era tarde. O cabelo branco, tão branco, a emoldurar o verde-cinza do olhar. E o sonho misturado com a magreza da realidade.
- não menina, meu par na dança, apenas … O meu par real era outro. O meu marido não sabia nem gostava de dançar. Escolhi então aquele (e ele me escolheu a mim) e nos seus braços, menina, encontrei a liberdade… Era tão lindo o meu par… esguio, alto… nunca mais o vi.
O olhar agora longínquo beijava a memória dos tempos de que não havia retratos. O olhar de Anália girava em ciclos concêntricos parados nas rodas da cadeira de rodas. Na incontinência total, de fezes e urinas, que não raras vezes a tornavam alvo de chacota. Dos outros. Dos pares ali em sala...
- está toda borrada. Outra vez…
E as fezes, líquidas, incontidas, a chegar aos pés da mesa. Em poça. E o almoço de todos completamente estragado. O desconforto. A mágoa. A impotência face ao cruel da realidade.
- tão triste ser velho, menina. Tão triste…
Um afago breve - “esqueça, D. Nália, foi apenas um incidente. Já se limpa tudo, verá…. Fará a sua higiene, voltará aqui à mesa para fazer a sua refeição …”
A cabeça a abanar compulsivamente. Não. Não, nãoooo... Depois o olhar indiferente… ausente. Talvez algures a lágrima. Não chorava.
Agora a dança. Um sorriso de pássaro livre. Fora. Seria até ao fim.
- está bom o chá, D. Anália? Quer uma bolachinha de água e sal?
- não, obrigada, não se mace. Basta que fique por aqui… é bom conversar…
Morreu serenamente. Na mesa, ao pequeno almoço. Sem uma palavra. Acompanhada pelos pares da casa última antes da derradeira morada…
- gostava tanto de dançar, menina, tanto … dizia-lhe enquanto a percorria num sorriso de luz na memória revisitada naquela manhã de Inverno quase Natal..
- toma um chá quente, D. Anália?
- tomei um de manhã, menina, ao pequeno almoço…
- mas quer um de novo? só para me fazer companhia… vá lá ...
A cabeça a abanar afirmativamente. E um novo sorriso de gratidão imenso, rasgado, sereno. Pelo chá, pelos cinco dedos de prosa, que adivinhava ia ter…
- aqui tem. Com pouco açúcar. Desculpe … tem de ser, como sabe. O meu é mesmo sem nenhum, que gosto do sabor das ervas…
As mão tremelitantes num afagar de chávena. E as da interlocutora a tocarem as dela. E ambas em sintonia. Em rota. Em busca astronáutica da poeira e da poalha dos astros.
A cadeira de rodas encostada ao lado e a poltrona cheia de almofadas. Os pés poisados, os pés cansados, num pequeno banco a que chamava seu…
- ajeita-me o banco, menina? Só um bocadinho mais para trás, vai deslizando no mosaico… ai estes pés… tanto que dançaram menina, tanto…
- o que dançava D. Anália?… no rancho?
- no rancho? Não, não … danças de salão, tango (gosta de tango?), valsa, (e valsa, gosta?) … sabe, a vida é tão rápida, tão, mas tão rápida ...tenho tantas saudades, tantas… das tardes em que dançava, do meu par.
- seu marido?
O olhar agora enigmático, fugidio, volátil, a esculpir figuras cénicas na enseada. A ansiedade de saber o quanto já era tarde. O cabelo branco, tão branco, a emoldurar o verde-cinza do olhar. E o sonho misturado com a magreza da realidade.
- não menina, meu par na dança, apenas … O meu par real era outro. O meu marido não sabia nem gostava de dançar. Escolhi então aquele (e ele me escolheu a mim) e nos seus braços, menina, encontrei a liberdade… Era tão lindo o meu par… esguio, alto… nunca mais o vi.
O olhar agora longínquo beijava a memória dos tempos de que não havia retratos. O olhar de Anália girava em ciclos concêntricos parados nas rodas da cadeira de rodas. Na incontinência total, de fezes e urinas, que não raras vezes a tornavam alvo de chacota. Dos outros. Dos pares ali em sala...
- está toda borrada. Outra vez…
E as fezes, líquidas, incontidas, a chegar aos pés da mesa. Em poça. E o almoço de todos completamente estragado. O desconforto. A mágoa. A impotência face ao cruel da realidade.
- tão triste ser velho, menina. Tão triste…
Um afago breve - “esqueça, D. Nália, foi apenas um incidente. Já se limpa tudo, verá…. Fará a sua higiene, voltará aqui à mesa para fazer a sua refeição …”
A cabeça a abanar compulsivamente. Não. Não, nãoooo... Depois o olhar indiferente… ausente. Talvez algures a lágrima. Não chorava.
Agora a dança. Um sorriso de pássaro livre. Fora. Seria até ao fim.
- está bom o chá, D. Anália? Quer uma bolachinha de água e sal?
- não, obrigada, não se mace. Basta que fique por aqui… é bom conversar…
Morreu serenamente. Na mesa, ao pequeno almoço. Sem uma palavra. Acompanhada pelos pares da casa última antes da derradeira morada…