tomou-se de um tédio vagabundo quando se deu conta de que o pinheiro manso mordia a paisagem e que, por via disso, aquela última se desenquadrava perigosamente dos caixilhos - referiria mais tarde, em nota de rodapé (aquelas que ninguém lê, em letras bem miudinhas, nos contratos de promessa, compra e venda), a coincidência de, exactamente na mesma data, a "grande ceifeira" ter retalhado impiedosa a várzea a anunciar que Avelino tinha deixado de transparecer na inevitabilidade das estações da vida.
sem ter como nem recurso, girou trezentos e sessenta graus sobre os calcanhares a evitar o encontro anónimo de gentes que seguiam o camarada à derradeira estância numa ladainha lacrimosa. prosseguiu de regresso ao monte a solenizar impropérios - puta de vida, a decisão estava tomada - não iria porque sim. nem sequer porque não. negava-se, além do mais, a subir escadas rolantes ou a acompanhar turistas em “turismos infinitos” sobre tapetes rotativos cujo destino não era afixado claramente na placa de néon - detestava ambiguidades. partir é sempre morrer um pouco - se lessem Pessoa saberiam, mas que fazer se, na contingência de regressão definitiva o voo era sempre incerto? depois havia as dunas, os moliços e o lago e as lembranças, todas as falas partilhadas, mas isso era noutra peça. dele ficara-lhe apenas a gaiola, os nós de górdio e as asas de faz de conta. o bico também. e o monte. a cidade mais próxima a séculos de distância.
no ponto exacto em que as várzeas descansavam mais fundas no rio, sentou-se de cócoras, os antebraços a ocultar os joelhos, os meniscos. dali poderia, sem que a estreiteza dos lugares o retivesse mais do que se permitia a si próprio, tecer todos os cenários dos próximos dias, dos próximos meses, e, quem sabe até, se a inspiração não lhe fosse parca, dos anos-luz que, com toda a certeza, teria ainda pela frente. o sol trepava-lhe a pele muito além das linguagens físico-químicas em que o universo se manifestava ignorando o quanto ele tinha hábitos crepusculares - os trovões, os relâmpagos, os tremores de terra, porra, compadre, é disso que falo, a música do universo, bem se vê,
agachou-se, portanto. a última deixa, antes da partida, deixava-o inquieto "quando nos afastamos do nosso perto para o nosso longe, há um desejo de purificação e uma dor indefesa, similar à vontade de regresso ao útero",
olhou a gaiola que subornara por três vinténs para guardar ostras quando as asas das conquilhas se abriam, leves, fleumáticas, e a voz se içava em recriações escorregadias, esmaecendo depois, sem voar, a seus pés, em raivas de vagas contra a falésia - talvez voltasse…
vagarosamente solta pela cidade ela decompunha-se em notas.
vagarosamente livre na liberdade provisória das correntes, modelada na elegância dos gestos e sempre discreta, percorria pautas, tangente aos bicos de uns, ao focinho molhado de outros, e, para que constasse, aos lábios de terceiros, marginando o rio. detinha-se, por vezes, em precários palcos de tábuas mal escoradas onde ele parava, incerto, desenfreado, a fazer sapateado, a dançar o fandango - foi numa dessas viagens que se encontraram. numa espécie de aeroporto onde todas as vestes são possíveis e nada parece estar em desacordo com o cenário de fundo “um não lugar”, portanto.
sempre atento, falou-lhe da hora exacta, do ponto certo em que o rio se entornava para dentro da sarjeta, de quando a seca abria galerias ridículas no seu sítio, E tem nome? perguntava-lhe ela enquanto apertava a saia de alças, Claro que sim, todas as coisas têm nome, se não o têm não existem, o nome é que dá forma à matéria oca dos espaços que estão sempre entre o trilho da hora árida e o estado gasoso da erosão hídrica, Chama-se Cova de Alfarroba, mas eu chamo-lhe Cova do Lobo, Não te canses, retorquiu-lhe, para mim esse nome faz sentido se tiver uma lancha rápida, uma carruagem de sete-léguas, ou sete milhas, tanto faz, a cortar a tarde e a noite souber da tibieza dos bicos, da lentura dos focinhos, e as bocas (as bocas são muito importantes) não se rirem descarnadas de dentes sempre a assobiarem indivisíveis condicionamentos, e, ainda assim, tu me replantares alfaces e ervilhas no plúbeo acto dos sentidos e lentamente (me) respirares as cinzas mornas da lareira para que viva, e porque, seja inverno ou verão, como bem sabes, não prescindo de sopa e não daquelas de basta juntar água. além do mais, o borralho, como lhe chamas, faz-me falta, e a labareda dá uma cor especial à música oculta de "um não lugar",
ele a tudo anuía, abanando com a cabeça. antes que dissesse sim ela levantou-se. consultou o relógio de aço inoxidável - um tacho que boiava à tona de uma parede fronteiriça - arte moderna, seja lá o que for que isso quer dizer -, riu-se da sua inclinação maquiavélica de se repetir em palavras que nem o vento escreve nas searas e, por oposição à textura perecível do rasgão, riu-se da "grande ceifeira" que avançava nos campos de nenhum lugar, riu-se ainda mais da forma anquilosante (e disse-lho, claramente) como via centopeias de mil patas no movimento entorpecido dos espantalhos em searas vazias, Manqueiam, sabes? passam de uma pata para a outra, firmam-se na primeira, mas nem por isso o andar é mais ritmado, sofrem de ancilose, quase juro, os ossos, qual abutres, são uma espécie de gancho a gadanhar o rio...
ele a tudo anuía, abanando com a cabeça. antes que dissesse sim ela levantou-se. consultou o relógio de aço inoxidável - um tacho que boiava à tona de uma parede fronteiriça - arte moderna, seja lá o que for que isso quer dizer -, riu-se da sua inclinação maquiavélica de se repetir em palavras que nem o vento escreve nas searas e, por oposição à textura perecível do rasgão, riu-se da "grande ceifeira" que avançava nos campos de nenhum lugar, riu-se ainda mais da forma anquilosante (e disse-lho, claramente) como via centopeias de mil patas no movimento entorpecido dos espantalhos em searas vazias, Manqueiam, sabes? passam de uma pata para a outra, firmam-se na primeira, mas nem por isso o andar é mais ritmado, sofrem de ancilose, quase juro, os ossos, qual abutres, são uma espécie de gancho a gadanhar o rio...
Sem aviso, interrompeu-se a si própria. disse-lhe: é a hora.
saltou para a plataforma, apanhou a primeira linha - o comboio chegaria depois. quanto a ele, voltou todos os dias à encruzilhada a ruminar as falas na esperança de que se fizesse luz e que, se aclarasse em si, o exacto lugar onde enterrara a vida.
Imagem: Fefa Koroleva