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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

de um "não lugar"

tomou-se de um tédio vagabundo quando se deu conta de que o pinheiro manso mordia a paisagem e que, por via disso, aquela última se desenquadrava perigosamente dos caixilhos - referiria mais tarde, em nota de rodapé (aquelas que ninguém lê,  em letras bem miudinhas, nos contratos de promessa, compra e venda), a coincidência de,  exactamente na mesma data, a "grande ceifeira" ter retalhado impiedosa a várzea a anunciar que Avelino tinha deixado de transparecer na inevitabilidade das estações da vida. 

sem ter como nem recurso, girou trezentos e sessenta graus sobre os calcanhares a evitar o encontro anónimo de gentes que seguiam  o camarada à derradeira estância numa ladainha lacrimosa. prosseguiu de regresso ao monte  a solenizar impropérios - puta de vida,  a decisão estava tomada - não iria porque sim. nem sequer porque não. negava-se, além do mais,  a subir escadas rolantes ou a acompanhar turistas em “turismos infinitos”  sobre tapetes rotativos cujo destino não era afixado claramente na placa de néon - detestava ambiguidades. partir é sempre morrer um pouco - se lessem Pessoa saberiam, mas que fazer se, na contingência de regressão definitiva o voo era sempre incerto? depois havia  as  dunas, os moliços e o lago e as lembranças,  todas as falas partilhadas, mas isso era noutra peça. dele ficara-lhe  apenas a gaiola, os nós de górdio e as asas de faz de conta. o bico também. e o monte. a cidade mais próxima a séculos de distância.

no ponto exacto em que as várzeas descansavam mais fundas no rio, sentou-se de cócoras,  os antebraços a ocultar os joelhos, os meniscos.  dali poderia, sem que a estreiteza dos lugares o retivesse mais do que se permitia a si próprio, tecer todos os cenários dos próximos dias, dos próximos meses, e, quem sabe até, se a inspiração não lhe fosse parca, dos anos-luz que, com toda a certeza, teria ainda pela frente. o sol  trepava-lhe a pele muito além das linguagens físico-químicas em que o universo se manifestava ignorando o quanto ele tinha hábitos crepusculares - os trovões, os relâmpagos, os tremores de terra, porra, compadre, é disso que falo, a música do universo, bem se vê, 

agachou-se, portanto. a última deixa, antes da partida, deixava-o inquieto "quando nos afastamos do nosso perto para o nosso longe, há um desejo de purificação e uma dor indefesa, similar à vontade de regresso ao útero",

olhou a gaiola que subornara por três vinténs para guardar ostras quando as asas  das conquilhas se abriam, leves, fleumáticas, e a voz se içava  em recriações escorregadias, esmaecendo depois, sem voar,  a seus pés,  em raivas de vagas contra a falésia - talvez voltasse…

vagarosamente solta pela cidade ela  decompunha-se em notas.
vagarosamente livre na liberdade provisória das correntes, modelada na elegância dos gestos e sempre discreta, percorria pautas, tangente aos bicos de uns, ao focinho molhado de outros, e, para que constasse, aos lábios de terceiros, marginando o rio. detinha-se, por vezes, em precários palcos de tábuas mal escoradas onde ele parava,  incerto, desenfreado, a fazer sapateado, a dançar o fandango - foi numa dessas viagens que se encontraram. numa espécie de aeroporto onde todas as vestes são possíveis e nada parece estar em desacordo com o cenário de fundo “um não lugar”, portanto.
sempre atento,  falou-lhe da hora exacta,  do ponto certo em que o rio se entornava para dentro da sarjeta, de quando a seca abria galerias ridículas no seu sítio,  E tem nome? perguntava-lhe ela enquanto apertava a saia de alças, Claro que sim, todas as coisas têm nome, se não o têm não existem,  o nome é que dá forma à matéria oca dos espaços que estão sempre entre o trilho da hora árida e o estado gasoso da erosão hídrica, Chama-se Cova de Alfarroba, mas eu chamo-lhe Cova do Lobo, Não te canses,  retorquiu-lhe, para mim esse nome faz sentido se tiver uma lancha rápida, uma carruagem  de sete-léguas, ou sete milhas, tanto faz, a cortar a tarde e a noite souber da tibieza dos bicos, da lentura dos focinhos, e as bocas (as bocas são muito importantes) não se rirem descarnadas de dentes sempre a assobiarem indivisíveis condicionamentos, e, ainda assim, tu me replantares alfaces e ervilhas no plúbeo acto dos sentidos e lentamente (me) respirares as cinzas mornas da lareira para que viva,  e  porque,  seja inverno ou verão, como bem sabes, não prescindo de sopa e não daquelas de basta juntar água. além do mais, o borralho, como lhe chamas, faz-me falta, e a labareda dá uma cor especial à música oculta de "um não lugar",

ele a tudo anuía,  abanando com a cabeça. antes que dissesse sim ela levantou-se. consultou o relógio de aço inoxidável - um tacho que boiava à tona  de uma parede fronteiriça - arte moderna, seja lá o que for que isso quer dizer -, riu-se da sua inclinação maquiavélica de se repetir em palavras que nem o vento escreve  nas searas  e, por oposição à textura perecível do rasgão,  riu-se da  "grande ceifeira" que avançava  nos campos de nenhum lugar, riu-se ainda mais da forma anquilosante (e disse-lho, claramente) como  via  centopeias de  mil patas  no movimento entorpecido dos espantalhos em searas vazias,  Manqueiam, sabes? passam de uma pata para a outra, firmam-se na primeira, mas nem por isso o andar é mais ritmado, sofrem de ancilose, quase juro, os ossos, qual abutres, são uma espécie de gancho a gadanhar o rio...  

Sem aviso, interrompeu-se a si própria.  disse-lhe: é a hora
saltou para a plataforma, apanhou a primeira linha - o comboio chegaria depois. quanto a ele, voltou todos os dias à encruzilhada a ruminar as falas na esperança de que se fizesse luz e que, se aclarasse em si, o exacto lugar onde enterrara a vida.


Imagem: Fefa Koroleva

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...