Sobre mim ...

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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

... se todos os poetas, se todos os jograis, são meus irmãos

Igual à erva
à flor emurchecida
ao vento que arredonda paciente, paulatinamente, a dura fraga,
o tempo intimista perpassa a carne dos anjos
submisso ao gume metaliforme da tua espada.

Digo-te silêncio!
Digo-te olímpico canto
música anelar soprada nos alcatruzes p’los ventos.
Digo-te perfeição, plenitude imaculada.
Digo-te caminho, vereda, calçada, avenida reflorescida de lilases…
[digo-me nua, digo-me tua …]
Digo-te de novo e uma vez mais,
silêncio esculpido das águas, das águas esvaecidas p’las noras em lúpulos trevos, pés-de-galos e logo escorrido ao mar por todos os ralos.
Digo-te calma
[digo-me alma, digo-me alma desnudada, desventrada …]

Quedo-me em silêncio,
silenciada, serena, quase muda.
Igual à erva,
igual ao verde do musgo, ao verde do prato,
ao caule da flor entristecida,
à flor ogivada, síndrome de vida.

O dia nasce. É presença num tempo crescente de inocência inviolada.
Atravesso a inquietude da manhã, viajo sempre descalça, sem medo. Lateral, a fila interminável dos choupos e dos álamos de folhas em queda no alcatrão húmido da estrada.

As casas, brancas, simples, modestas, na Vala aberta. Das chaminés já acordadas, das fugas renascidas, erguem-se os fumos e as micas. Micas fragmentadas…
As que carregas no teu olhar, as que usas umbilical, ermitã ou jogral. As que soltas em fúrias d’arrebatado animal…
E contudo, sim!
São tuas todas as orquídeas despertas p’la madrugada, as buganvílias floridas e todas as demais flores que cuido com fervor no meu jardim.

Não, não me rasgues qual folha do tempo de esquadrias desalinhadas, não me retenhas, se me rejeitas, asfixiada no sangue que se escorre mesmo antes do cravar do bisturi. No rio de tinta, nas palavras encrespadas, desocupadas, ou quando, eriçado nas penas de ti, as usas codificadas em anagramas, em profusão penitenciada.·

Inclusiva, prossigo a veia cava da saliva e redescubro alimento em frutos robustos de sãos se todos os poetas, todos os jograis, são meus irmãos.
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Vala do Carregado, Nov. 2007

in "Textos Esparsos" © Todos os direitos Reservados

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

.. Porcos a pérolas


Sempre achei curioso o facto do centenário loureiro ser o sombreiro natural da pocilga dos porcos. Nunca deixei de me rir da curiosidade, dado que, quando ia o mercado e ao talho, era normal ver os enchidos engalanados com pernadas de louro. Ali tudo se antecipava. Ou seja, cobriam-se de louros os porcos vivos.

Corria o ano de mil novecentos e sessenta e sete, se não me falha a memória. Na aldeia as famílias mais costumadas, aquelas que ainda podiam dispor de um pedaço de terra, um quintal que fosse, iam criando os bicos e os porcos para seu governo. Num qualquer dia, tocava à matança, reuniam-se vizinhos, familiares e amigos e era um dia grande. Tão grande quanto o braseiro onde se assavam febras recém cortadas. Os métodos antigos: um monte de carqueja a arder, o porco a mudar de cor. Depois, um pedaço de telha, água corrente e de novo rosado. Mais tarde as papas de sarabulho, as tripas lavadas no Rio do Vale, viradas do avesso com uma cana verde apanhada ali mesmo e esbulhada a talhe de canivete, por fim cheias e suspensas na lareira ou, na falta dela, por cima do fogão a lenha na cozinha …

Disposta em socalcos, em desníveis por assim dizer, a pequena povoação acolhia desde as suas orlas ribeirinhas até ao cume do monte, várias famílias que rivalizavam entre si. As Engrácias, mãe e filha já casadoira, faziam parte dos nascidos e criados ali mesmo. Faziam parte igualmente, dos chamados pés rapados a quem a vida não tinha dado à nascença berço de ouro, antes bem pelo contrário. Mas os tempos haviam mudado. Um lugar nas fábricas e casas novas, se bem que de renda, haviam feito delas pessoas emproadas e enfatuadas, que, em dois tempos se haviam esquecido de onde provinham. Certo era que não havia que se lhes apontar, donas que eram de uma conduta irrepreensível, asseadas e poupadas. Ou seja, dotadas de atributos indispensáveis face à escassez dos tempos. Delas apenas se queixavam os vizinhos de serem vaidosas, altivas, de, se dado lhes fosse (porque não era) deixar de cumprimentar os conterrâneos, assim fariam. Mas não. Não havia quem na terra as não chamasse pela alcunha de família, fazendo disso gala e, usando o epíteto, dalguma forma, para lhes avivar memórias. Nada feria mais aquelas gentes que ver os seus iguais a armarem-se em “ilustres”. Os comentários eram do tipo “já se esqueceu de quando ia a casa da minha mãe comer uma malga de sopa”, “já não se lembra de quando não pode fazer o exame da 3ª por não ter um vestido capaz”… etc.

A todos ignoravam, as “D.” Engrácias. Criticas acérrimas das práticas ancestrais, a exemplo dos bicos a correr e a sujar pelo bairro fora, das capoeiras em frente às portas e, acima de tudo, das cortes a dois passos das habitações, pareciam que atraiam elas mesmas o cheiro e o mosquedo … De nada lhes valiam cortinas de fitas nas portas de entrada. De nada lhes valiam igualmente capachos na soleira. O cheiro da cera com que rebrilhavam a madeira dos tactos (aliás a sua era a única casa que tinha tactos de madeira…) misturava-se com o cheiro do esterco e dos fenos dos animais, com o cheiro nauseabundo das fossas cépticas para onde vazavam os intestinos do bairro. As lamas emporcalhavam-lhe a casa.

Nas tardes em que as vizinhas se cruzavam no caminho do poço, com as bilhas na ilharga e na cabeça, as Engrácias bem que lastimavam a sua vida:
- Tenho a casa que é um brinco, uma pérola… mas este cheiro, vizinha, não se pode … tresanda que fede. E as moscas? Um nojo só!!! Pior que viver lá no casal … E os porcos? Valha-me Deus, cortes de porcos no bairro… Uma pérola a minha casa, vizinha. Mas um cheiro…
Quando se separavam, as mulheres faziam a chacota: “…num mimo, num brinco, numa pérola … já se esqueceu de quando o ranho lhe escorria em pérola pelo nariz … ponto pérola, bem se vê. Vaidosas, as Engrácias são umas vaidosas, onde querem que a gente meta os porcos? Que os meta em casa e tranque as portas por via dos cheiros??? Ora, não faltava mais nada …

Era Inverno, um daqueles Invernos mesmo invernosos, passe-se o pleonasmo. Há muito que o caminho da fonte era de todo desnecessário. Sob bicas dos telhados, na frente das portas, pelo pátio fora, alguidares, latas, tachos e panelas, aparavam as águas. No início bem vindas, começavam agora a fartar.
- Isto ainda dá chatice e da grande. As terras já não sustêm as chuvas, estão uma papa só. Os combros não aguentam e ai é que vão ser elas… resvalam e estamos perdidos.

Naquela tarde a chuva recomeçou a cair. No começo, peneirada, como se fosse farinha, uma chuva molha tolos, depois cada vez mais forte, cada vez mais forte… Dos montes, pelas rigueiras, as águas vinham agora desgovernadas, procuravam o seu caminho nos leitos antigos. Trovões e relâmpagos rasgavam o horizonte até onde se podia avistar. A Lezíria era já um mar d’água só. Dos mouchões ao rio, não se distinguiam margens. Lamaçais cobriam o bairro provindos das ribanceiras. Os mais velhos rezavam a Santa Bárbara. De repente, um estrondo, como que o rebentar de um dique. Por detrás do loureiro um veio profundo de água embicava à corte dos porcos… Manuel da Silva de enxada em punho tentava a todo o custo desviar as águas noutra direcção. Tarde de mais. Da serra acima, a gola era agora maior que grande. O velho loureiro quase se via arrancado pela raiz, a corte dos porcos construída em madeira uma casca de noz a flutuar no caudal de lama… e nela, o porco. Por sorte apenas um, que o outro havia sido convertido em chouriços dias antes.

Na cota abaixo, no bairro propriamente dito, e no caminho das águas, a casa das Engrácias …
Em segundos aquele rio de lama, de esterco e o porco, galgaram os escassos metros que separavam a casa de Manuel da Silva da dos seus vizinhos. A força da água era tal que cavalgou o pequeno muro do quintal, rebentou com a porta da cozinha e, em minutos, o porco viu-se alojado em novo espaço, por sinal muito mais airoso que o anterior. Não saberia falar por certo, que senão muito teria para contar daquela tarde de trovoada … Com ele, e à sua volta, um monte de folhas e troncos de loureiro, uma espécie de coroa de louros.

Aterradas, as Engrácias, empurravam o porco e a lama à vassourada…
A chuva amainava por fim. Com grande dificuldade, vizinhos acudiam a ajudar. O bairro um atoleiro só. Limpar a palavra de ordem a que acorriam todos quantos por ali moravam.

Choravam as Engrácias, desoladas. Perante o inusitado do momento e porque não haviam outras perdas a lamentar senão o desmoronamento do combro cimeiro à corte dos porcos e a sujidade no pátio cimentado do bairro, aos poucos, uns e outros foram soltando umas boas risadas… Engrácia-mãe chorava-se:
- Onde é que está a graça, digam-me? Que graça têm uma porcaria destas? Tinha a minha casa num brinco, uma pérola…
Manuel da Silva, cansado de lutar com a água, esgotado de tentar evitar tudo aquilo sem êxito, segurava por fim o porco com uma corda. De botins atascados na cozinha dos Engrácios transformada em pocilga, irritado e já sem paciência, soltou a frase que haveria de marcar aquele dia:

- ora, e vá lá Deus dar Porcos a Pérolas. Oh vizinha Engrácia, tenha dó… Porcos a Pérolas …

in Colectânea "Contos de Mulheres" © Todos os direitos Reservados

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Caixa de Pandora

Confesso não me recordar sequer porque razão, naquele dia, optei por usar o autocarro no regresso a casa. Regra geral o percurso entre Lisboa e a minha residência era feito em viatura própria, maugrado as intermináveis filas, quer dentro da cidade, quer no auto-estrada.

Carregada de livros, portátil e mala ao ombro, amaldiçoei não ser capaz de me auto-regular de forma a transportar o estritamente necessário. Mas não, acabava sempre por me carregar indevidamente, o que, em horas de ponta, especialmente no metro, me catapultava para as margens da incerteza: seria capaz de dar conta de tanta coisa? Um abanão e cairia desamparada (ou amparada nas multidões), um safanão e lá se ia o meu preciso bem: o meu computador, onde dormia a minha vida inteira … Claro que devia fazer backup’s, mas ia sempre adiando para o dia seguinte. Mais ainda: as pens recentemente adquiridas, onde andavam alguns dos meus trabalhos (profissionais e afins), estavam igualmente na bolsa externa … Ridículo! A minha vida inteira, ali à mão de semear. Desprotegida!

Varrida por estes pensamentos consegui atravessar a multidão. Entrei no autocarro, já de motores em marcha. Finalmente sentia-me segura. Agora esperavam-me cerca de 45 minutos em que fecharia os olhos, depositaria bagagens no banco a meu lado, colocaria fones e o mundo lá fora haveria de correr sem mim…

Entrei no autocarro, como dizia. Procurei lugares vazios (dois). Mas não. Naquele dia, tal como eu, parecia que o mundo inteiro decidira deixar o carro em casa. Com os olhos feridos da claridade da rua mal conseguia destrinçar vultos. Avancei tacteando no corredor em penumbra. Na sua maioria, as janelas estavam cerradas pelas cortinas. Equilibrava pastas em desespero de, e o mais rapidamente possível, me conseguir sentar. O autocarro já em movimento, avançava. Repentinamente, senti um valente puxão pela alça do computador. Naquele momento, só pensei: “Bolas, será que é desta? Vou ser roubada aqui dentro??? Porra …”
- Estava a ver-te desde que atravessaste a passadeira … já não te via há séculos mas reconheci-te de imediato… senta-te, vá! Dá cá metade dessa tralha…
A voz era-me familiar. Cordial, acolhedora. Instintivamente esfreguei os olhos, como se conseguisse ver melhor depois…
- Não te lembras de mim? És a Márcia, não és?...
- Sim, claro… desculpa … claro que me lembro! Armanda, és a Armanda …
Sorriu. O rosto estava envelhecido, os olhos brilhavam pouco, mas continuava uma mulher muito bonita…
- Armanda … Que fazes aqui?
- Mais ao menos o mesmo que tu, presumo. Trabalho!
Sorrimos. Sim. Claro, trabalhávamos ambas….
Começaram as perguntas mútuas, afinal desde o nosso último encontro haviam decorrido mais de vinte anos. Uma vida inteira …

Conheci a Maria Armanda quando frequentava o 12ª ano, já em regime nocturno. Mais velha e casada, (bem casada) chegava à escola sempre num belíssimo carro, vestia-se bem, tinha um porte altivo, uma excelente figura. Não passava despercebida. Casada com um quadro superior de uma empresa, natural do interior, decidira, tal como eu, dar continuidade aos estudos. Não porque tencionasse exercer qualquer profissão (dizia que a sua profissão era esposa), mas porque reconhecia a necessidade de não deixar que o fosso cultural entre ela e o marido se avultasse. Queria estar à altura do papel a que se propusera: “não o quero deixar mal…”
Enquanto a olhava, recordava as nossas conversas desse tempo. Não pretendia trabalhar mas trabalhava…
- Sim, Márcia, trabalho … a vida dá tantas voltas, não é? Casaste?...
Falei-lhe de mim: - “Sim casei, tenho três filhos …”
- Continuaste a estudar? …
- Sim, não de imediato, mas sim… formei-me em Geografia, dou aulas, ou melhor, amiga… vendo, que não estamos em tempo de dar nada ... e tu?
Maria Armanda baixou os olhos. Quando os levantou em busca dos meus, um mar nublado de lágrimas varriam-lhe o olhar. Arrependi-me de imediato da pergunta.
- Desculpa… desculpa …
- Não faz mal, preciso de falar. Temos tempo…queres ouvir a minha história?
Não sabia que dizer. Afinal entre nós estavam muitos anos. Não a conhecia já e ela também não me conhecia, se é que alguém conhece alguém alguma vez. Todavia o timbre da voz era de súplica. De quem necessitava revelar-se… mostrar-se, desnuda.
- … se desejares contar … dispõe, conta.
Agarrou-me fortemente o braço. Os dedos crespos magoaram-me a pele. Começou:
- O meu casamento durou quinze anos, as minhas filhas ainda eram adolescentes quanto tudo terminou. Um dia o meu marido disse-me que ia sair de casa, que estava farto … Farto de quê? As explicações eram vagas, inconclusivas. Farto da rotina, farto de prisões, dizia. Descobri-lhe razões mais objectivas: tinha uma amante. Uma colega de trabalho, com quem viajava regularmente para o estrangeiro. Uma engenheira da empresa. Fiquei sozinha e com mais de trinta e cinco anos. Não sabia fazer nada, nunca tinha trabalhado, sabes? Depois do 12º ano, Frederico não me deixou continuar: “Estudar mais? Para quê? Nunca te irás empregar. O teu trabalho é aqui em casa…”.
Quando me vi sozinha, no início, foi o desespero. Com ele, muitas das mordomias se me acabavam. Claro que me era devida uma pensão, mas a minha vida parecia desmoronar-se como um castelo de cartas. Muitas das viagens, muitos dos jantares, muitos (ou quase todos) dos amigos, derivavam dele. Uma vez separados, via-me isolada e sozinha. Comecei a procurar trabalho. Respondia a todos os anúncios, mas a idade e a falta de experiência eram sempre factores de exclusão imediata. Finalmente, há cerca de cinco anos, dois depois de me ter separado, consegui o meu primeiro trabalho numa Clínica, como recepcionista. Ai conheci o Joel. Era lá cliente. Não te vou dizer que foi amor à primeira vista, porque não foi. No início nem simpatizava muito com ele. Mas a atenção constante, o sorriso franco, acabou por me conquistar. As minhas filhas já estavam na universidade (ambas fora de Lisboa) e estava literalmente sozinha. Começámos a sair juntos. Joel era o mais carinhoso dos homens, o maior amigo. Com ele visitei tudo o que era museu, tudo o que era galeria de arte, tudo o que era jardim… O belo e o estético eram o seu mundo (e passaram a ser o meu). Se ia à modista (sempre tive esta mania de alterar o que compro feito, ainda te lembra?...), acompanhava-me. Se ia ao cabeleireiro esperava-me à porta. Acabei por aceitar que viesse viver em minha casa (não sem que antes me tivesse questionado mil vezes se seria o mais certo, se daria certo). Iríamos arriscar. Joel era solteiro, tinha quase cinquenta anos, muitos deles vividos no estrangeiro. Na verdade, pouco ou nada falava desses tempos…
Começámos a viver juntos. Era o melhor companheiro que uma mulher pode desejar. Cobria-me de atenções, entendes? Nos fins-de-semana em que não saíamos era frequente acordar-me com o tabuleiro de pequeno almoço… a que se seguia uma manhã de mimos… Depois, amiga, almoço num restaurante perto do mar … Belos tempos, sabes? Vivi com ele o que nunca antes havia vivido com meu marido, em todos os aspectos. Todas as experiências…
Olhava-a sem saber que pensar. Teria morrido? Não dizia coisa alguma… ouvia apenas. Maria Armanda olhava agora a janela, o olhar parado na noite a cair lá fora lentamente. Lentamente progredia:
- Acabou! Acabou. Tudo acaba. Um dia, Márcia, a máquina de lavar loiça avariou. Joel fez questão de ser ele a arranjar um técnico. Não estranhei, era normal que sempre me tentasse poupar a todos e quaisquer constrangimentos. Deixei a seu cargo. Nem pensei mais no assunto – ele suprimia a máquina, lavando a loiça diariamente.
Num Domingo ainda cedo, tocaram-nos à campainha. Espreitei. Era um indivíduo que não conhecia. Não abri. Pelo ralo vi que usava o telemóvel. Ao mesmo tempo ouvi o do Joel a tocar no nosso quarto e, em simultâneo este a dizer-me de lá: “… deixa, querida. É o técnico para reparar a máquina … eu atendo, podes voltar para a cama, amor …”. Voltei. Joel beijou-me, vestiu um roupão e foi abrir a porta. Dirigiram-se ambos à cozinha. Virei-me para o outro lado, devo ter adormecido. Acordei sobressaltada era quase meio-dia. “bolas… meio-dia, estou atrasada”. Tínhamos combinado ir visitar uns amigos e juntos irmos almoçar à Costa. Descalça atravessei o hall. Descalça e semi-nua. Por momentos nem me ocorreu que não estávamos sozinhos em casa, acreditas?..
O silêncio era agora total. Armanda agarrava-me a mão com uma força estranha. Olhava-me como se o mundo estivesse prestes a acabar. O seu mundo…
- entendes?
- … claro. Tinhas adormecido, é normal que nem te ocorresse tal coisa. O Joel zangou-se de andares naquele estado, foi?...
- não …
- não? Então?...
Maria Armanda mordia lábios, sustinhas lágrimas, mas elas não se sustinham. Rolavam silenciosas. Tremia…
- ….pelo vidro fosco da porta da cozinha (estava semiaberta), consegui vislumbrar dois vultos. Parei. Eles nem deram por mim. Parei, não: estanquei, colada ao mármore do hall. Dois vultos, Márcia… abraçados. Não podia acreditar. Não podia. O roupão do Joel estava tombado no chão … Um vómito veio-me à boca, enchendo-me de um fel que não conhecia… nem no dia em que soube da traição do meu marido. Nem nesse dia! A dor era muito maior, muito maior, amiga. Traída de novo. Na minha própria casa, e desta vez por um homem. Joel fazia sexo (amor disse-me depois …) com um homem, na minha cozinha, enquanto eu dormia. Surreal. Não me estava a acontecer… não podia estar a acontecer!
- que fizeste?
Abraçava-a agora, sem saber que dizer, que fazer, que lhe dizer.
- Voltei para o quarto. Esperei que o outro saísse. Joel por fim veio acordar-me com o seu sorriso rasgado:
“Querida, acorda… olha, tens aqui um sumo … bebe, já é tão tarde…”.
Não, não lhe mandei o sumo à cara. Não, Márcia, sou, sempre fui, civilizada. Levantei-me, dirigi-me ao roupeiro, retirei a mala maior e comecei a enche-la com as roupas dele… “…que fazes? Que foi, querida?...” A face dele começou a alterar-se. Desatou a chorar, parecia uma criança. Não escondeu, apenas lamentou não se ter controlado ali em minha casa. Eram amantes há anos. Amava-o … mas também me amava a mim! Amava ambos, que não duvidasse nunca.

Não, Márcia, não consegui suportar. Separámo-nos nesse dia mesmo. Ainda tentou que reatássemos, disse-me que acabaria a relação com o Andrade (assim se chamava). Não consegui suportar a ideia de que era traída por um homem… Vivo agora de novo sozinha. A diferença é que agora trabalho. E faz toda a diferença, sabes?... Mas as saudades são tantas. Tantas …
Apenas o trabalho me ocupa. Sigo em frente. Talvez um dia volte a amar…
- Claro que sim! Claro que sim …

Naquele momento desejei dizer-lhe que a traição não se pode classificar por género. Não se deve classificar por género. Ou existe ou não existe. E se existe, há que tentar apurar razões, perceber das razões… Todavia não fui capaz de tecer qualquer comentário. Em boa verdade, creio que apenas se queria ouvir em “alta voz”. Libertar uma história que a atormentava…

A paragem de minha amiga aproximava-se. Mudamos de assunto… Banalidades. Maria Armanda parecia ter-se livrado realmente de um fardo. Beijámo-nos afectuosamente. Saiu. Da rua ainda me disse adeus …

Soube há dias que voltou a viver com o seu primeiro marido. Que foram residir no interior do país de onde são originários, que voltou à Faculdade. A vida é e será sempre uma Caixa de Pandora.

in Colectânea "Contos de Mulheres" © Todos os direitos Reservados

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Matilde, criada de fora

Os tempos iam difíceis. Aos dias e dias de chuva contínua, de fortes bátegas, em que era completamente impossível o trabalho do campo, seguiam-se agora nevoeiros impenetráveis em que se não via um palmo à frente do nariz.

O lume já havia consumido os últimos cavacos, as lenhas molhadas não garantiam aquecimento, a casa estava empapada como se de cartão se tratasse. O azeite da candeia fazia falta no prato, o do prato na candeia … Adivinhavam-se dias ainda mais complicados.

Aurélia determinou:
- Amanhã vou lá abaixo à vila. Por lá hei-de arranjar casa de gente de posses que tenham preciso de uma criada de fora, duma camareira, duma lavadeira ou seja lá o que for. Irás servir!
Matilde olhou a mãe pasmada. Servir? Deixar o casal? Deixar o seu cão, as galinhas, as cocós, os patos marrecos. Deixar a irmã e a prima Vitoriana??? Dormir em casa de estranhos? Não, não queria…
- Não tens quereres, rapariga. Achas que eu quero? Que quero ou alguma vez quis para ti e para a tua irmã a miséria desta casa? Que foi para isto que te pari negra que nem um tição? De tantas horas em trabalhos de parto? Que nem a tua madrinha, a Russa, te conseguia de fazer nascer? Julguei morrer naquele dia, ouviste? Se não morri e não morreste, não morrerás agora aqui de fome e frio neste casal onde o diabo se escondeu… Amanhã desço à vila. E tu vais comigo, é bom de ver …
- Eu? E a Vitoriana, quem toma conta da menina?...
- É lá da tua conta? Já queres determinar a vida, já? Se te digo que vais, é porque vais… para que as senhoras te vejam, te mirem e tenham para si que não és piolhosa nem estás tísica… Magra estás, mas isso até eu… é da raça, bem se entende….
- … a Vitoriana, Senhora minha mãe?...
Matilde esbugalhava os olhos negros na face avermelhada. Duas tranças que nem cordas caiam-lhe até à cinta. Magra, ainda sem formas de mulher, mais parecia um varapau. Assim lhe dizia o tio Veríssimo, quando lhe levava o almoço ao pasto onde apascentava o rebanho (nos dias idos, antes daquele Inverno em que as malvadas comiam até a manjedoura)…
- Matilde, oh rapariga, nem aparentas já a fazer doze anos, estás que pareces um varapau, uma forquilha.Nessas noites, Matilde quando se despia, à luz do candeeiro a petróleo ou da candeia, como fosse o caso,mirava-se e remirava-se em frente dum pedaço de espelho já quebrado, pendurado nas traseiras da porta do quarto dos pais… Não, não era varapau… umas pequenas nozes despontavam-lhe no meio do peito …
- Mudaste ou não te mudas? Sais do quarto hoje ou queres dormir ai e eu aqui?
- Já saio, Senhora minha mãe, é só maneiras uma pedaço… já saio, sim senhora…

O quarto dos pais era a única divisão com portas em toda a casa. As raparigas dormiam na casa de entrada, assim chamada por ser exactamente a casa de entrada, divididas por um cortinado de chita do restante aposento. Uma cama de ferro e uma pequena arca onde se guardam as roupas (escassas) eram tudo quanto dispunham para uso próprio. Matilde era a mais velha. Deixara a escola quando concluirá a 3ª Classe e ganhara uma “boneca”. Não uma boneca qualquer, mas uma boneca de carne e osso: a sua prima Vitoriana, agora com quatro anos. Recebera à sua guarda ainda não tinha oito anos. O medo de lhe tocar, de lhe dar a comida era aterrador… Mas não maior do que os arrepios que lhe causavam as palavras da mãe:
- Vou lavar para o rio, levo uma bucha, já sabes, a Vitoriana é tua responsabilidade. Se lhe acontecer alguma coisa eu mato-te!!! Mato-te, ouviste bem??...
Ouvia… ouvia por todos os poros, como se fossem estes ouvidos. Ouvia e morria antes da morte que lhe estavam a destinar: morria de medo. Medo que a Vitoriana, no início bebé, lhe escorregasse dos dedos, que lhe caísse depois no lume, quando este ficava acesso e a menina já gatinhava… medo. Medo e mais medo.Não lhe tirava olhos de cima o tempo todo. Quando dormia ou quando chorava…
Quando Vitoriana começou a falar, ai Matilde percebeu que a sua boneca era quase como ela. E que, com sorte, teria ali uma companhia preciosa. A sua irmã andava à escola e, no casal para além delas, só a criação, os cães e as ovelhas … ali não passava vivalma…
- … a Vitoriana, Senhora minha mãe?...
Aurélia olhou-a de novo e perante a insistência decidiu que lhe daria uma satisfação:
- Ficará com os teus primos, na casa da tua tia Germânica… só por amanhã, não virá mal ao mundo. E agora deixa-te de conversas, vou esquentar uma panela de água, tomarás banho e lavarás a cabeça. Não quero que digam que a filha da Aurélia anda enxovalhada.
Dizendo isto, tomou-se de trabalhos, buscou um tição no lume, colocou-o no ferro, abriu a arca retirando o único vestido capaz de sua filha. Já lhes estava apertado, mas outro não havia. Engomou-o soprando o ferro, espevitando o calor. Iriam à vila, sim senhor.
Não havia nada a fazer. Aurélia era assim mesmo. Quando se lhe encasquetava uma na cabeça não havia quem a demovesse. Sempre assim fora e sempre assim seria. Estava decidido, Matilde iria ganhar o seu sustento, que também ela o ganhara desde mais nova, se bem que no trabalho da própria casa. Os tempos haviam mudado… agora impunhasse trabalho fora de portas. Seria! Outras assim o faziam e ninguém era menos honrada por isso. Até que aprendiam o que ali não havia quem ensinasse. Eram casas “finas” dos Doutores e dos Engenheiros das fábricas da beira rio… Outros modos certamente haviam de ter…
Levaria a sua filha!

A manhã nascera ensolarada depois de mais de mês seguido de chuva.
Aurélia acordou as filhas, encomendou a mais nova ao irmão para que a encaminhasse à escola, não sem antes lhe ter dado, bem como a Matilde, uma caneca de leite da cabra engrossado com o farelo torrado.
- Senhora minha mãe… não gosto … arranha na garganta…
- Não me faltava mais nada, bebe o leite que doutra farinha não tenho…
Os farelos. Ainda há pouco tempo estavam destinados, à mistura com o milho, aos porcos e às amassaduras para as galinhas e agora eram o pouco que lhes restava. Farinha de trigo, torrada no forno de lenha (alourada) era luxo de que já se tinha até esquecido.
Não havia mais que fazer. A filha trabalharia. Era o melhor para todos, disso estava certa. Uma boca a menos para dar comer! E mais, nas casas dos senhores Doutores, fome não passaria.
Matilde caminhava à sua frente. Aurélia aconchegada o lenço ao rosto, aproveitava as pontas e com elas enxugava as lágrimas que teimosamente lhe turvavam o olhar. Enxambrados, sempre veriam melhor onde por os pés. Os dela e os de Matilde:
- Olha as poças, não metas os pés na água que chegas à vila num nojo só. Quero-te limpa e reluzente.
Dito isto, sacava de um bocado de saca, secava os pés da filha para que os sapatos cardados e de biqueira cortada afim de servirem mais um ano, não se desfizessem como folha de papel. E avançava.

Matilde era agora criada na casa do Engenheiro Bento Murteira. Despedira-se da mãe com um beijo na mão e um “Bênção, minha mãe …”. Engolira as lágrimas e subira ao sótão onde dai em diante seria a sua nova residência. Nem tivera oportunidade de voltar ao casal, beijar a prima, fazer uma festa ao cão!

Que não, que “a rapariga pode cá ficar hoje mesmo. A roupa também não é cá precisa: usará farda e, vestidos meus que não me servem ou das outras criadas que já enformaram…”.
Enformaram!!! O que seria isso de enformar? No casal da serra só se enformavam os queijos. Ou na casa da avó Maria, em dias de festa, os bolos de laranja. Ali na vila as raparigas enformavam!

Subiu ao seu quarto de sótão. Amplo, a toda a dimensão da casa de quatro águas, em telha Lusa, deixava filtrar o vento. Não muito diferentes do da sua casa, de telha vã… Quatro camas, marcavam e demarcavam os espaços. Um varão com um cortinado por cima, num dos espaços, anunciava-se “roupeiro”. Um bacio de noite, um lavatório de ferro, um jarro de água, eram os únicos elementos a preencher o vazio do espaço.

Chegou com o cair da tarde, depois de ter já batido a várias portas e não ter sido aceite em nenhuma. Subiu ao quarto depois de lhe ter sido dado um quarto de pão de mistura e uma caneca esfacelada de chá. Enregelada bebeu tudo num trago, devorou o pão com toucinho meio rançoso e sorriu agradecida à cozinheira. Recebeu das mãos da camareira a sua nova roupa, a camisa de noite, trocou-se, atou um lenço à cabeça por via das tranças não se desmancharem e, exausta, adormeceu. Lá fora o vento e a chuva fustigavam as várzeas e soltavam das amarras os pequenos barcos dos avieiros. Sonhou com o cheiro dos feijões a ferver no lume da sua infância. Com o calor da fornalha, as bolecas da avó...

- Acorda rapariga, tens de ir às compras….
Compras? Nunca tinha comprado nada… no casal não haviam ruas, quanto mais lojas…
- Vais ao mercado. Compras uma couve-galega, um molhe de cabeças de nabos …. Vais à senhora Margarida… a que está na 2ª banca, logo à entrada …
Mercado! Onde era o mercado? Não sabia. Recebeu os recados …
- Que é para a Senhora do Engenheiro Murteira Bento. Que dou ao rol …
Dar ao rol! O que era isso??? Não sabia. A tudo atentava… “uma couve, um molhe de nabos (cabeças) …. dado ao rol…”

Chovia, corria agora à toa. Perguntava a uma, a outra… “viras à direita” … “cortas à esquerda”…
Finalmente, couve na mão, cabeças de nabo na outra e a chuva a varrer o corpo, viu-se chegada a casa:
- Que porcaria de couve é esta? Uma pileca? Ora volta atrás … que me mande outra. Os nabos servem, não são dos melhores, mas servem…
Voltou, corria e chorava, os sapatos cardados resvalavam a chuva. Chorava e corria …
Na hora da refeição, os restos. Não sobrava quase nada do que ia à sala. Na cozinha comiam-se “os excessos”, o que sobrasse depois de alimentados os Bento Murteiras. Muitas e muitas vezes, enganava-se a fome com pão seco e toucinho salgado e rançoso… e chá!
O tempo ia passando. Maugrado a escassez de alimentos, Matilde ia “enformando”. Entre trocas de couves, de nabiças, de rabanetes ou de peros (ritual diário a que se via submetida) e mandados diversos, Matilde passava a maior parte do seu dia em corridas pela vila. Um dia, num daqueles dias em que a couve lombarda não havia agradado, em que voltava a trocá-la, encontrou uma vizinha antiga:
- Que fazes aqui Matilde? Não sabia que trabalhavas na vila…
- Trabalho sim, senhora Antónia ….
- e gostas de cá estar? …
Debulhou-se em lágrimas …
- Não senhor…. Passo fome, eu e as criadas lá de casa… e ando sempre a correr a trocar as coisas…
Antónia olhou-a de cima a baixo:
- Não passarás mais! Senta-te aqui, que te mando eu …
- Não posso, senhora Antónia… a minha Senhora quer a couve e depressa…
- Já lha levas! Ouve-me com atenção. Trabalho nesta casa vai para dez anos, aqui não se passa fome. De manhã levantaste primeiro que ele, não é?
- Sim senhor …
- Pois bem, tiras uma quarta de leite da cafeteira. Bebes! Puro. Enches de igual, com água, percebes? Tu bebes puro, eles bebem traçado … A carne, como é que fazem?
- A minha senhora conta os pedaços antes de serem cozinhados…
- Que conte. Antes de irem para o tacho cortas cada um em dois… e quando cozinhado, retiras os teus … a carne encolhe tanto. Teus e da cozinheira… bem se vê!...
Antónia continuava a instrumentar Matilde. Quando achou serem horas disse-lhe:
- Vai agora. Diz que a couve era a melhor que lá havia, que a senhora Margarida a escolheu a dedo, por ser para quem era …

Matilde tremia que nem junco de rio. Olhou Antónia e entendeu que teria de ser assim. Levantou a cabeça e foi, de braçado com a couve.
À porta, a senhora Benta (como lhe chamava a criadagem) já lhe rezava pela pele …
- Que demora foi essa?...
- Foi por mor da senhora Margarida escolher a melhor couve…
- Ah, mas valeu a pena. Esta sim!

Matilde na manhã seguinte bebeu leite puro. E em todas as restantes manhãs daqueles dois anos – o tempo que por ali ficou. A carne começou a encolher na panela, os torresmos já não davam a banha que era devida … As criadas enformavam e riam pelos cantos. A casa até parecia mais alegre …
Naqueles dias das trocas, Matilde sentava-se na soleira de Antónia (por sorte virada para um beco sem saída, donde não era vista) e esperava. Entretanto enchia-se de saberes transmissíveis na oralidade das coisas … e das servidões!

***in Colectânea "Contos de Mulheres" © Todos os direitos Reservados

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Histórias do nº 5 - "Os amores de Juliana"

O bairro crescia agora na lateral e em altura. A electricidade prometida chegara por fim. O pátio térreo dava lugar a um outro, cimentado, onde cabeças se haveriam de partir nos intermináveis jogos de bola.

Com o decorrer dos tempos, as lutas entre vizinhas eram cada vez menos frequentes, até porque quase todas, em paralelo com as vidas domésticas, trabalhavam nas fábricas envolventes. Nalguns casos, famílias inteiras a laboral nas mesmas indústrias, o que, anos mais tarde se viria a revelar catastrófico, por variadíssimas razões a que não seriam alheias as mudanças sociais e políticas do próprio país, mas também, como é obvio, pelo facto das relações pessoais se virem a tornar endémicas e enquistadas.

A aldeia crescia a olhos vistos, expandia-se pelos outrora campos de cultivo e pelas várzeas, composta por vários bairros e pátios habitacionais. Prédios em altura começavam a surgir aqui e além. A heterogeneidade era a nota dominante. Das colónias chegaram os “retornados”, do Alentejo profundo continuavam a chegar e a partir famílias inteiras.

Algumas moradias indicavam outras origens, outras proveniências. Gaibéus, Beirões, Minhotos e Transmontanos, entre outros, confirmavam a dissemelhança do tecido social. Da anterior aldeia encimada no topo do monte a ver o Tejo, pouco ou nada restava. As originais famílias haviam-se dispersado ao longo da colina, ao longo da linha-férrea, ao longo da beira-rio, miscigenavam-se com os cagaréus, com os avieiros …

Juliana era das poucas que nunca havia emigrado, que se mantinha fiel ao lugarejo onde um dia nascera. Era dali mesmo, se bem que nem sempre tivesse habitado o mesmo espaço. Mas era da aldeia. Não aprendera costura, nem lavores, nem qualquer profissão. Andara ao campo, como tantas da sua idade, lavara no rio, amassara e cozera pão no forno de lenha. Fora a lavar as tripas dos porcos quando das matanças nas casas mais abastada. Fora a lavar ao rio roupa para fora… Sabia de lavar e de engomar, lá isso sabia!

Tal como os demais, as fracas habilitações (3ª classe não concluída) e a necessidade de ganhar a vida, fizeram-na ser mais uma entre dezenas de mulheres jovens campesinas a engrossar os caudais das fábricas. Quando a buza apitava para a entrada e para a saída, era vê-las então, aos magotes, aos bandos, ao longo da Estrada Nacional, de lancheiras na mão, cabelos ondulados aos vento (fruto dos papelotes da noite anterior), saias à godés, camisas de chita engomadas pela noite dentro no ferro do carvão, seios empinados nos corpetes bem apertados. As da serra faziam frente às do rio, disputavam os brilhos e os louros entre quem seria a mais vistosa, a mais cobiçada, a mais namoradeira…

As fábricas eram então o cortiço onde as obreiras teciam o néctar das suas vidas futuras. O trabalho sazonal, dependendo em grande parte das obras do regime e dos consumos das colónias para onde muita da matéria ali produzida era então canalizada, ora as ocupava, ora as dispensava e as fazia regressar aos campos.

Filha de uma família a viver no limiar da pobreza (como hoje em dia seria considerada), e não em pobreza extrema por viverem numa aldeia onde a troca directa era ainda moeda corrente, onde se trocaram serviços, amanhos de portões, de cancelas, caiação de paredes, etc., por bens de consumo, por exemplo, Juliana, a quinta de onze irmãos, era uma moçoila de falas atribuladas, de risos meios extemporâneos. “Levantada” como se dizia por ali. Contrastava com a irmã que lhe seguia em idade, essa comedida, contida no verbo e no riso, apurada nos saberes e nas atitudes. Os mais velhos não lhe agoiravam grande futuro, os mais sábios teciam-lhe recomendações:
- Juliana, Juliana, olha os modos, não queiras ganhar fama … não basta sê-lo, mulher, é preciso parecê-lo …
- Juliana, Juliana … “muito riso, pouco siso” … olha que “quem boa cama fizer nela se há-de deitar”… … e por ai adianta. Sempre os adágios populares a acompanharem uma espécie de premonição de que, à Juliana, a vida preparava cilada …

A todos Juliana respondia entre risadas. Não se importava. O que é que aquela gente dos montes sabia da vida? E mais, que se metessem nas suas vidas, que na dela não eram chamados.

Juliana casou e casada habitou o nº cinco, primeiro andar, recentemente concluído. Casou com um colega de trabalho, Manuel Romão de seu nome e quase dez anos mais velho que ela. Homem de respeito e trabalhador, como dele se dizia.

Manuel Romão era, em boa verdade, o seu oposto. Calado, de passo lento e sempre fechado em si, ninguém conseguia entender como é que se tinha enfeitiçado com Juliana. A família não lhe aprovou o casamento, mas mesmo assim, Romão seguiu em frente, parecendo determinado a mudar a vida da sua Juliana. Trabalhavam então ambos numa das muitas empresas do concelho, numa daquelas em que a laboração era contínua.

O tempo foi passando e a vida do casal regia-se no desencontro dos horários. Romão trabalhava em regime de turnos, Juliana apenas o horário normal. Na fábrica e há boca pequena, comentavam-se dos amores de Juliana, das aventuras (e desventuras) de Juliana. Comentava-se a falta de dinamismo de Romão e, acima de todas as coisas, o facto deste não aparentar dar-se conta de que Juliana, agora casada, parecia querer competir pelas atenções dos homens com todas as moçoilas casadoiras da aldeia. Em terra de toiros os comentários eram, não raras vezes, galhofeiras da pior espécie: - “O Romão? É toiro manso…, anda no cabresto ….”
Nos balneários ou no refeitório, um ou outro, mais atrevido, mandava as ditas indirectas:
“se fosse a ti, com uma mulher daquelas, mudava para o turno de dia… quem o seu não guarda, o vento lho leva…”.

Romão nada dizia. Se calado estava até então, dai em diante passava ao estado de mudo. Mudo… mas não surdo. Mudo, mas não parvo, nem sequer cego. E o que não dizia, ecoava fundo dentro dele escoiceando-lhe a carne em golpes cada dia mais penetrante, cada vez mais dolorosos. Até porque a cada dia se sentia mais sozinho dentro da sua própria casa… e dentro de si mesmo. Os risos, as gargalhadas de Juliana, pareciam-lhe agora “gargalhadas nervosas” e, não obstante gostar dela, começava a encontrar-lhe os defeitos que os demais lhe viam desde sempre. Mas quem ele era para lhe colocar defeitos? Se também os tinha. E, verdade seja dita, Juliana, se defeitos tinha, qualidades também. Das portas para dentro era o puro do asseio e poupada como poucas por ali. E boa mãe! Então?... Não seriam “mais as vozes que as nozes?”. Não seria o despeito que falava na boca dos colegas?

A dúvida minava a alma. Dia a dia, noite a noite. Nas noites em que olhava da fábrica o bairro e pela madrugada julgava vislumbrar luz na janela do seu quarto de casado. No início não perguntava nada, não queria perguntar. Mas a dúvida cada dia maior ia abrindo roussos por onde a paciência se esgotava. A paciência, a confiança… roussos capazes de deitar por terra a sua vida inteira…

Romão confrontava Juliana:
- Sentiste mal de noite? Ou foi o Julinho? … pareceu-me ver luz aqui em casa…
- Não, deves estar a ver coisas …
Ria, num histerismo de meneios e de risadas que a Romão incomodavam cada dia mais …

Numa noite de luar, não teve dúvidas: havia luz na janela da sua casa. Não pensou em mais nada. Iria tirar a limpo as suas dúvidas, duma vez por todas. Se não estava doente, que razão havia para que, noite após noite, madrugada a dentro, a luz se acendesse?

Na hora da “bucha”, picou o cartão e saiu da fábrica. O guarda-portão estranhou e adivinhou. Aquilo ia dar caldeirada. Ó se ia. E o peixe era de rio, ó se era… E peixe do grado (do agrado de Juliana). O “alerta” correu a fábrica de lés-a lés – o Romão ia meter-se em alhadas, ó se ia.

Em pouco minuto trilhou a distância que o separava de casa. Suava por todos os poros, sentia o coração a saltar-lhe pela boca, a boca sem conseguir respirar.
- De hoje não passa!!! Olá se passa ...

Juliana ouviu os passos na escada exterior, ouviu-os a passarem no corredor externo que servia as diferentes habitações e julgou-se perdida.
- Alberto, Alberto … valha-me Deus, vem ai gente… Veste-te, veste-te… sai pela janela, salta pela janela… tou perdida, ai Alberto…

A chave rodava agora na porta e não a conseguia abrir. Por dentro, uma outra, atravessada, impedia o intento.

- Abre Juliana, abre senão arrombo esta merda … Abre, Juliana…

Pontapés e murros acordavam a vizinhança. Em camisas e em pijamas, uns e outros assomavam agora a portas e janelas… a tempo de verem um vulto semi-despido e descalço, de sapatos na mão a correr pelo páteo do bairro …

- Abre Juliana…
- Já lá vou, Romão, já lá vou… estou na casa de banho… ai homem, deu-me uma “caganeira” daquelas, deve ter sido dos melões …

De faces mais que vermelhas, a suar por quantos poros tinha, desgrenhada e meio nua (apenas de camisa de dormir), Juliana abria por fim a porta …

- Juliana, fala, merda de mulher: quem tinhas tu aqui em casa? Fala ou acabo com a tua raça….
- Ninguém, Romão, porra, homem … estou de “caganeira”, já te disse…

Romão olhou em redor… no bengaleiro da entrada um casaco que desconhecia … avançou ao quarto. A cama desfeita contava a “diarreia da noite” … e, misturados com os seus pertences, na cadeira, umas calças cinzentas olhavam descaradas em sua direcção …

- Fala, Juliana. De quem são estas roupas? De quem, mulher???....Fala que te rebento de porrada senão falas …
- Do meu irmão, Romão, do meu irmão Zeca… veio cá ontem à noite depois de tu saíres…
- … do teu irmão??? Deixou aqui as calças? Foi nu?...
- levou umas tuas… sujou-se …
- 'tava de “caganeira”, Juliana? Dos melões, é Juliana??? Sai mulher, sai desta casa antes que eu volte de manhã, porque se te encontro aqui, quando voltar do trabalho, então Juliana … não respondo por mim. Sai, antes que saibas quem é o “toiro manso do Romão …”
Juliana já não ria agora. Chorava e olhava a casa e o marido. O filho por Deus não tinha acordado…

Lentamente o dia nascia no nº 5. Lentamente Juliana descia as escadas rumo à cidade próxima onde se acolheu numa pensão de má fama … Continuou na empresa por mais uns meses. Alberto fingia que a não conhecia. Era peixe graúdo “bem casado e pai de filhos”. Peixe graúdo!!!
- Com a Juliana? Eu??... Devem estar mas é todos malucos … Logo com a Juliana que o marido trabalha cá … não faltava mais nada.

Com a Juliana! E Com todas as Julianas de riso fácil. Mas sempre “bem casado”!.
Mas sempre na negação da duplicidade!
Todavia, aqui e ali sempre ia afirmado, à laia de quem não quer deixar créditos por mãos alheias… “mas um homem não é de ferro. Elas oferecem-se, porra…”.

Romão entrou e saiu de cabeça erguida na empresa naquela manhã e em todas as que se lhe seguiram. O silêncio era total…
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in Colectânea "Contos de Mulheres" © Todos os direitos Reservados

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Histórias do nº 5 - "Cândida, a toureira"

No número cinco sempre se viveram vidas cheias. Que o diga quem, por meados dos anos setenta habitou paredes meias com Gervásio e Maria Augusta, quem teve o privilégio de conhecer e partilhar as vivências de uma família alentejana emigrada para as orlas norte do rio Tejo, ali, onde as industrias cresciam mais que os cogumelos em cascas.
 Medrados os rebentos, Jeremias e Afonso, Manuela e Rosália, amparados por sortes casamenteiras, acharam-se os Quintelas a caminho das Galveias, por onde uns pedaços de chão de sobro os aguardavam, herdados agora por via do falecimento dos pais de Maria Augusta e feitas as partilhas e dadas as tornas – tornas, sim, para que também a casa do monte ficasse deles. Os irmãos tinham casas próprias. Acertaram então os Quintelas que as cortiças do ano seguinte seriam para pagar o que lhes competia pela mais valias que herdavam, que o pé de meia que haviam “ajuntado” daria para o sustento de ambos, e que, deles se haveria ainda de falar. Que, se a lavradores não chegassem, certo era que fome em terra de pão, também não passariam.
 Se bem o pensaram, melhor o fizeram. Encaixotaram tarecos e pertences em caixas de papelão – as do sabão Clarim (refugo bem se entenda, passadas ao portão traseiro da fábrica), alugaram uma camioneta de caixa aberta, com motorista e tudo, vestiram-se a preceito – Maria Augusta com o casaco de fazenda à três quartos, obra da sua Manuela, lenço amarrado em volta dos queixos, e Jervásio, antecipando a posse das terras, de colete e de jaqueta, obra sua Rosália. Rematava a indumentária a samarra do sogro, que herdara igualmente, e que, em viagem anterior, por via das traças, trouxera desde logo até ali, donde partia agora, depois de mais de vinte e cinco anos. A samarra… que, a despeito de todos, chamava sua e que lhe abrigava o corpo para além dos joelhos. Numa manhã de Primavera, disseram adeus à vizinhança, pegaram na gaiola ferrugenta do canário, na corrente mais que gasta do Piruças e desapareceram para sempre no pó da estrada.
A casa viu as janelas com escritos, à moda da época. Que se arrendava, sim senhor, e que agora, o bairro já tinha esgotos em substituição da fossa acética para onde os dejectos comuns eram lançados a céu aberto, usados como fertilizante nas hortas circundantes. Luz eléctrica estava prometida!
 Arrendava-se então o “T1”, acrescentado para o pátio comum, com uma minúscula casa de banho. Melhorado que estava, paredes caiadas do branco dos “Alentejos”, ainda guardava nas memórias a barra amarela, uma espécie de cinta, entre o barro do pátio e o alvo das paredes.
 De Mértola, chegava agora a nova família desconhecida de quantos por ali viviam – ao todo 11 famílias, uma molhada de crianças. Bolas nos vidros e rixas de vizinhas, eram, para além das tardes de futebol em que se ia ver o A-dos-Potes, o A-dos- Melros, ou o A-dos-“qualquer coisa”, divertimentos a que ocorriam eles e elas, incitando, ou à reposição, à reprimenda, ao puxão de orelhas bem assente, ou, não menos vulgar, a que, as mulheres envolvidas nas rixas se arranhassem, se esgatanhassem, se injuriassem, em suma, arrancassem da pele aos cabelos … A risada era geral. No fim tudo parecia não passar de mero divertimento, uma espécie de luta de galos em que se faziam apostas sobre qual das intervenientes venceria. As causas, quando as havia, estavam em coisas de nada, mais do tipo “diz que disse …”. E no dia seguinte já ninguém se lembrava de nada e tudo voltava à forma habitual.
 Chegaram numa tarde estanhada dos fins de Outubro. A escola já tinha começado e a Feira de ainda durava. Chegaram bem a tempo de que o Mértola, como viria a ser conhecido, visse na praça o que até ai só via nos campos. Os toiros. E desde logo tenha atentado para si, que seria toureiro (e dos bons). Não se pouparia a esforços, bem se vê! “Um homem que faz a guerra, faz um toiro, oh se faz…”. Os dias seguintes passá-los-ia, não a aconchegar o lar, mas a aturar nas jaquetas, nas meias arrendadas, nos tricórnios dos toureiros. Sempre que a muleta se elevava no ar e o estoque simulava a morte na “sorte suprema”, Mértola eleva-se do chão, exaltava e jubilava. Ser toureiro era, a seu ver, ser uma espécie de Deus e o toiro a entidade de que poderia dispor na vida e na morte.
Fixava-se na indumentária, no traje de luzes e lantejoulas, no brilho da praça a bolir de gentes nas arquibancadas, nos camarotes, na arena onde o homem enfrentava a fera, na calça impecavelmente justa, uma espécie de segunda pele… E a tudo achava que se lhe ajustava. E em tudo cuidava estar-lhe predestinado - aquela “era” a sua vida. De lides, bem se vê. De lides …
Mulher de poucas falas, Cândida, de feições cerradas, de mãos pequenas e já calosas, não enganava a proveniência – o trabalho do campo, o varejo da azeitona, a apanha do cogumelos, da cortiça, etc. Dos saberes da sua bagagem faziam parte estes e outros tantos, mas todos eles adequados à terra onde nascera iam já mais de vinte e sete anos. Não sabia de bordados nem rendas, não era cozinheira de mão cheia. Sempre andara ao campo, desde que findara a 4ª classe. Isso ainda fizera, sim senhor, mas não mais que isso. Para a ceifa do trigo não carecia de ser letrada, bem se via! E nunca pensara em casar…
Casara com o “Mértolas”, de seu nome José Carabita, por procuração. Madrinha de guerra, por mor de uma primo que por lá andava também no batalhão do Mértolas, encantara-se com a figura esguia e fardada que lhe chegara um dia num envelope com o carimbo de Angola.
Durante os mais de dois anos que se seguiram, desdobrou-se em longas cartas, escritas à luz do “pitromaxe”. Nelas, numa letra tremida e redondinha, falava da sua vontade de virar costas à planície onde tudo era escasso e ir colher farturas nas “Lisboas” das fábricas. Que por lá tinhas as primas Lizete e Hilarina, as duas bem casadas e a ganharem a vida honradamente. Que escreveria uma carta às primas (breve, nesse mesmo dia …) e que, se o Zé fizesse fé de casar com ela, muito lhe agradaria a ideia das “Lisboas”.
Casaram por procuração, como se disse. O feitor da Casa Vaz acompanhou-a à capela em representação do noivo, que haveria de chegar no final de Agosto. Era Julho, de início ainda. O fato de noivar, tirado da arca da sua recém finada mãe, estava-lhe acatitado, quase não se podia movimentar por dentro dele. Um ramo de jarros brancos emoldurado a folhas de oliveira compunha o “decôr”. O primo Zacarias, irmão do que andava na guerra das Angolas, tirou a única fotografia do momento, numa Kodac emprestada. As cigarras no restolho foram a única música que por ali se fez ouvir à mistura com os soluços da noiva solitária e os balidos das ovelhas.
A noiva (já esposa) suspirava agora pelos cantos e contava as horas que faltavam para ver o seu Zé e, mais que isso se possível fosse, de ir com ele na garupa do sonho destino à cidade grande. Aos arrabaldes, bem se via, mas era melhor que nada, e dos arrabaldes à cidade propriamente dita, a distância mediasse nos quartéis dos dias. Quaisquer quartéis chegavam. A este pensamento, atendia Cândida de olhos em tição e securas de boca. Já se via na cidade rodeada de filhos e de braço dado com José, bem posta na vida:
- “D. Cândida para cá, D. Cândida para lá…”
D. Cândida, como tratavam a sua madrinha, a senhora da Casa Vaz (guardava as distâncias, mas soava-lhe bem aos ouvidos…) “D. Cândida Matos Carabita”. Muito bem, sim senhor…

No dia aprazado José chegou. Em nada defraudou a imagem que dele tinha. Bem-falante e melhor apessoado, desde logo se encaminhou a ela e, de braço dado com a sua já mulher, desfilou galã a praça da Vila. Cândida não lhe passava do cotovelo. José parecia-lhe ainda mais homem que nos postais que recebera. A noite de núpcias tiveram-na na casa do Monte, pertença da prima Engrácia emigrada em França. As restantes dos três meses que se seguiram, na casa da mãe de José que nunca aceitou de bons olhos que o seu único filho varão – um rapaz de se lhe tirar o chapéu, para ninguém botar defeito -, casasse com uma moça já com idade passada: “se nunca casou, defeitos há-de ter… desonrada certamente… ”. Não tinha, não era (nunca conhecera homem antes do seu Zé - se nem pensava de casar!!!) , mas isso a Isolinda Carabita pouco importava. Se não tinha … tivesse. Da fama não se livraria: “sei lá donde saiu … ora, mulher por procuração, se isso é lá amor…”. Seria! Sim, Cândida apaixonara-se pelo Zé desde o primeiro dia que lhe recebera carta …
Chegaram ao nº 5 numa tarde estanhada. A jovem esposa pôs-se de arrumos pela noite a dentro à luz do candeiro a petróleo. Esperou o marido. Esperou e desesperou. Numa terra estranha não sabia a quem recorrer a saber do seu Zé. A aflição começava a tomar conta dela. Então não ficara ele na terra dos toiros? Não se apeara da camioneta que os trazia, mais’los pertences? E não lhe dissera que o motorista sabia o caminho? E não lhe dera a chave com a recomendação de que não e entortasse logo no primeiro dia? Desastrada que era, sem habilidades, que visse como cuidada de abrir a porta…
Cândida esperou a noite toda. E esperou ainda mais quatro noites e quatro dias seguidos … o tempo da Feira de Outubro … Por fim, viu o seu Zé chegar… e não o reconheceu. Tinha um olhar alucinado, um andar balanceado, de várias noites mal dormidas. Tresandava a suor e a urina. O cabelo colava-se em melenas à cara. Não lhe perguntou nada. Dirigiu-se à cozinha, colocou uma panela no fogão, aqueceu a água, buscou das malas ainda por acabar de arrumar uma muda de roupa e, em silêncio, estendeu-lhas, mais a um bocado de sabão azul e branco. De banho tomado, dormiu quatro dias seguidos, embalado em lides gloriosas e “olés” entusiastas …
Os filhos começaram a nascer. Primeiro um rapaz, depois uma rapariga. Cândida zelava a casa, os filhos, o marido. Esticava os dinheiros sempre escassos, comia fiado da loja. Vestia os catraios com roupas que lhe iam dando as vizinhas à socapa. Não trabalhava fora, que o marido não consentia (que sabes tu fazer? Nada!!!). Zé trabalha de vez enquanto nos intervalos da “preparação para as corridas”. Estabelecia contactos com bandarilheiros afastados das corridas, ia às tertúlias taurinas (pela porta das traseiras, como moço de fretes, de recados, de…) e sonhava.
Os mundos de ambos não se cruzavam. O mundo de Cândida era o nº5 e só. A Lisboa em vários anos nunca fora, os filhos tivera-os em casa, pelas mãos duma curiosa. Zé não lhe aprovava as primas. Por isso também estava proibida de as visitar ou ser visitada. Da vizinhança pouco sabia. Zé não gostava que tivesse intimidades com vizinhos: “só querem é saber da tua vida, se te “assisto”, se te bato… a casa é que é para as mulheres, é o lugar delas, se não tens que fazer… dorme”. Seria, não queria discussão… aliás porque cada dia mais o “seu Zé” estava mais tempo por fora. A amiúde um amigo vinha buscá-lo num carro “bom”: - “vou p’ra Espanha, por via das touradas”, já sabes, nada de conversas onde fui, onde me encontro”
Nada diria. Cândida, a "toureira", como era por ali conheciada, nada diria.Dizer o quê? Não sabia! Não sabia de nada. Apenas dos fatos de luzes que o Zé guardava “… Deram-me, são usados …”. Não, não sabia… e da falta de pão em cima da mesa, e da solidão na cama vazia. E das lágrimas choradas, inconfessadas.
Um dia, num dia de Outubro igual aquele em que havia chegado, partiu! Não porque o tenha desejado (pelo menos não o havia verbalizado…) mas porque, sem anúncio prévio, o seu Zé, lhe disse de rompante: “amanha as coisas, mulher: As malas, as roupas. Tuas e dos catraios. Vou levar-te “à" da tua falecida mãe. Não me serves para nada, mulher. És um estorvo na minha vida … Quero-te pronta amanhã de manhã, ouviste? Já falei ao carro de praça… lá sempre sabes trabalhar, ainda te ajeitas, ou não és capaz?...”.
Era! Talvez até fosse, talvez ainda fosse! Não sabia, não sabia mais nada. Não chorou, não questionou … Aprontou-se, mais aos filhos. Despediu-se das vizinhas: “vou p’ra terra, vizinha Maria, por mor de tratar daquilo que é meu … o Zé fica por cá (têm cá o trabalho, bem se vê … mas não nos “apartemos”, não senhor …). De cabeça erguida, sem olhar para trás, embarcou os filhos e foi-se. Nunca mais seria "Cândida, a toureira". Nunca mais ... nem ali, no número cinco nem na China ... (onde era mesmo a China???).
 Quando passou junto à Praça de Toiros ouviu o barulho da multidão, imaginou o seu Zé na arena e deu consigo a pensar que era de novo uma mulher livre. E não lamentou …

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in Colectânia "Contos de Mulheres" © Todos os Direitos Reservados

2006

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Histórias do nº 5 - "Maria Augusta"

Cinco. Sempre tive um fascínio pelo número cinco, vá-se lá saber porquê. Desde criança que, e sempre que era solicitada a dizer um número (nas rifas de quermesse, por exemplo), lá vinha, invariavelmente o número cinco. Não raras vezes minha mãe me dizia: “filha, escolhe outro número…”. Mas não, queria, porque queria o cinco. Era uma espécie de número mágico onde tudo podia acontecer. Cinco os sentidos, cinco os Continentes, cinco os dedos em cada mão, em cada pé. Cinco os naperons que enfeitavam a cozinha da minha meninice, cinco os lugares do carro, as divisões da casa onde morava. Cinco e ponto final!
Era um bairro pobre, de habitações que hoje em dia se chamariam de sociais, situado no limite oeste da nossa casa, construído por volta dos anos sessenta, quando o êxodo rural se acentuou e, dos diferentes pontos do país, chegaram à cintura da grande cidade, famílias inteiras de fracas posses. As fábricas – do sabão, do ferro, do arroz, da tecelagem -, as linhas de montagem e o trabalho em série absorviam mão de obra não qualificada, em sistema de rotatividade de horários. Trabalhava-se vinte e quatro horas por dia, o que, obviamente, impunha períodos de descanso diurno a quem por ali ganhava o sustento.
Maria Augusta habitava o número cinco, um exíguo “T1”, sem casa de banho. As necessidades fisiológicas eram satisfeitas com recurso a uma pia, ao canto da cozinha, circundada por uma espécie de cortinado. Os banhos semanais realizavam-se ali mesmo, num alguidar de menos de cinquenta centímetros de diâmetro em folha de zinco. Em alternativa, os balneários públicos, distantes de cerca de três quilómetros e meio e pagos. Nos dias de Inverno, a higiene fora de portas não atraía os demais e, malgrado as condições precárias e sempre permanentes do número cinco, Maria Augusta e a sua prole revezavam-se na guarda da cortina (amovível) para que, e com alguma dignidade, pudessem tomar o seu banho semanal.
Mulher quarentona, gorda, grande, enorme, de voz estridente a encher a casa e o bairro do cimo do seu metro e oitenta, à beleza dissera não. Os seus chamamentos pelos filhos corriam pela encosta, desciam até ao rio, atravessavam os carreiros das formigas em que Jeremias e Afonso consumiam os dias, ora arrancando-lhe asas, ora colocando pequenos obstáculos para que as coitadas não conseguissem avançar. Quando não as esborrachavam propositadamente só para lhe verem a cor dos intestinos… Manuela e Rosália, essas, ainda que adolescentes, já aprendiam um ofício: ambas “andavam à costura”, uma, a mais nova, com a modista D. Lucrécia e a outra, com o Senhor Arcanjo, alfaiate.
Maria Augusta era a “generala” de serviço. Mandava e desmandava, gritava e vociferava, obrigando filhos e marido ao carrego das águas da fonte próxima, em latas de tinta, nalguns casos maiores do que a distância das mãos ao chão, de quem as transportava. Em alternativa, usava-se a canga, um varapau de cerca de oitenta centímetros, extremado com duas correntes e dois ganchos, onde as ditas asas das latas metálicas se suspendiam.
Pé aqui, pé acolá, trôpego e vergado ao peso, Gervásio Quintela, de metro e meio mal medidos (coisa menos coisa), quando não estava na fábrica, ocupava os dias, as horas e os minutos em que o corpo lhe pedia descanso, em idas e vindas sucessivas afim de encher o tanque, recolher água para a pequena horta, para a pia, para os gastos infindáveis do dia a dia daquela família.
Refastelada na cadeira alentejana já esburacada, Maria Augusta impunha o ritmo da demanda, mês após mês, ano após ano, com um sorriso maquiavélico emoldurado pela sombra do bigode (buço, que nada, bigode mesmo …).
No bairro todos sabiam quem usava calças lá em casa. Fazia-se chacota, gozava-se o prato, lentamente, nas reuniões de homens, tal se chupavam os molhos dos caracóis apanhados na rigueira das águas escorridas do Mato do Convento.
Gervásio encolhia-se ainda mais, metia-se por dentro da sua própria casca, engolia a saliva e a mágoa, amaldiçoando o dia em que nascera nu, careca, sem dentes e sem vontade própria. É certo que andava vestido, tinha cabelos (ralos, mas tinha), tinha dentes (já lhe começavam a cair, mas tinha). Porque porra de destino nunca se apessoara dele a vontade de fazer frente aquela a quem um dia, perante o Padre Maurício, no Alentejo que o vira nascer, jurara fidelidade e respeito? E não lhe tinha ela jurado coisa igual???
Neste estado d’alma os dias iam dando lugar às noites, aquelas em que quase adormecia à frente da linha de montagem, a colar as caixas de sabão Clarim. Um dia foi por um triz … o corpo pendulou e quase tombou na mesa de trabalho. Valeu-lhe a voz do camarada de bancada “Gervásio… home essa… vossemecê tá a dormir, ou quê?”…
Estava, estava a dormir em pé! E se lhe fosse dado escolher, dormiria o sono dos justos para sempre. Farto! Farto da linha de montagem e dos carregos da água. Farto da voz de Maria Augusta e da chacota dos vizinhos …
Farto da canga que era o seu próprio casamento!
Era Domingo, dia dos banhos semanais. Naquele dia, Maria Augusta acordou virada do avesso. Não, não seguraria mais o cortinado, que tomassem banho nos balneários, que tomassem como quisessem. Com ela não contariam. Gervásio magicou a solução. Foi ao vizinho do lado, um serralheiro de profissão, pediu um escadote, uns camarões, um arame, um martelo e voltou decidido a acabar com a confusão. Suspenderia o cortinado e o assunto estava resolvido. Pensava ele!!! Deu início aos trabalhos, com esforço. O corpo pequeno varejava no topo dos cinco degraus – o suficiente para chegar ao tecto baixo, onde Maria Augusta tocava sem qualquer dificuldade com as palmas das mãos. As raparigas ainda dormiam no divã, os rapazolas já andam pelo bairro em algazarras e gritarias infernais, montados num cavalo de pau: “Eh toiro, eh toiro lindo… eh bicho, eh toiro …” em lides de toureio aprendidas nas lezírias ali ao lado
- Maria Augusta, ó mulher, “assegura-me" aqui o escadote, não vá o magano “trocer” as patas e um homem cair… vá lá, mulher, “assegura-me" aqui…Maria Augusta, do género “nem lá vou nem faço força”, esboçou um sorriso trocista, abeirou-se do escadote e, ao inviés do segurar, encostou o corpo anafado ao dito. Gervásio já se via estatelado no chão. Pediu de novo:
- … mulher, faz o que te digo, “assegura o escadote…ajuda-me lá, mulher”.
Maria Augusta, encheu-o de mimos:
- Não prestas para nada, não me serves para nada, anão dum corno! Eras bom era para o circo, para o circo da Feira d’Outubro…
Naquele ensejo, Gervásio não ouviu mais nada, não pensou em mais nada. Relâmpagos e trovões assolaram-lhe o corpo, varejaram-lhe a mente. O martelo que segurava na mão, saiu disparado na direcção da cabeça de Maria Augusta, atingindo-lhe um olho. Por sorte, por sorte apenas, não lho vazou. Um edema descomunal ocupava-lhe agora quase a face esquerda toda. O silêncio tinha a cor do alcatrão que ainda não chegara à aldeia.
- O que foi isso, ó vizinha? Olhe que está feio, já foi ao hospital?.. Como é que isso aconteceu? Ó mulher…
Ninguém suspeitaria de Gervásio. Jamais! Gervásio não tinha coluna vertebral, era invertebrado e acéfalo. Sem vontade própria!!!
- Escorreguei, Senhor Jaime, escorreguei … ali na horta. Bati na borda do tanque, bem vê …
Gervásio encarou-a de frente. Encarou os demais e, numa voz que nunca ninguém tinha ouvido por aquelas bandas, apenas disse:
- “Olha o martelo …”.
Desde esse dia as latas não mais bateram o chão térreo do caminho da fonte, nem sequer por ali se ouviu a voz a despropósito da generala. Gervásio cresceu três palmos … (ou seria que Maria Augusta havia minguado???). Como nos contos de fadas … viveram juntos e foram felizes para sempre!
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quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

"A Janela de Amaralis"

Doze semanas. Doze semanas em que contei todos os dias, todos os minutos, todos os segundos desta inexistência. Doze semanas em que a luz se reteve por detrás da cortina do tempo, em que o sol não me afagou a pele. Doze semanas, Julião, desde aquela manhã em que fechaste, obstinado, a janela ao nosso rio. Em que me deixaste a olhar o desabitado da solidão com uma frase sem nexo “estou mal disposto, até logo…”.
Sim, tentei ainda, desesperadamente, que a ventania não quebrasse vidros e caixilhos, tentei ainda que os fechos permanecessem afinados, que todos os teus gestos futuros se realizassem sem esforço. Embrulhei o sal das minhas lágrimas na esperança vã de que o dia de hoje pudesse fazer esquecer o dia pretérito. Busquei dentro de mim, forças que não sabia ter, concertei cadeiras antigas e sentei-me, em espera, dia após dia, noite após noite. Esperei que a ventania dentro de ti amainasse e que, voltasses. Não te diria uma palavra, não buscaria razões, não estenderia um só dedo para te acusar. Mas estenderia o corpo inteiro para te abraçar, Julião … para te abraçar.
O amor, Julião, é isto, sabes? É entender razões onde a razão as não encontra.
O amor, Julião, é ser maior que a dor, maior que a mágoa. E eu, acredites ou não, amo-te, amo-te como nunca julguei ser possível amar alguém. Não porque me ames, mas porque EU te amo. E esse sentimento, de tão intenso, basta-me. Alimenta-me e mantém-me viva, em espera. Doze semanas … Fechei o que de nós resta lá no fundo do baú e tento (tento, Julião) seguir em frente, sem o calor virtual da tua mão. O frio retorceu-me a alma, encarquilhou-me o pensamento. Não consigo sequer trabalhar, não consigo produzir nada de que me orgulhe. Onde foi que me perdi, Julião?Os cabelos, cada dia mais brancos, cada dia mais longos, aguardam o afago dos teus dedos, a boca espera a tua. Esperará para sempre, Julião. Doze meses, doze anos … doze séculos (que importa o tempo???).Um dia, naqueles dias em que as distâncias não ecoavam dentro de nós, perguntei-te: “Julião … não me deixarás de novo, não me deixarás nunca?" (era tanto o medo, o medo que não soubesses entender o rio - onde Lampreias desovavam e o Sável crescia - esse rio mesclado e tão nosso, que, impetuoso, corria virgem em nossa janela…). “Não, Amaralis … nunca mais te deixarei”… ainda te disse: “és um pilar em minha vida, Julião, és o meu muro, a minha sustentação!”… sorriste: “tonta, és tão tonta”…
Deixaste, deixaste-me como um farrapo sem préstimo, um pano amarfanhado… Deixaste-me e fugiste. Fugiste do que estava a crescer dentro de ti e que não conseguias mais controlar.
Naquele dia, Julião, julguei que o mundo se fechava ao meu redor. Julguei que, definitivamente, apenas o rio ali ao lado aguardava por mim. Nada, sabes, nada, me fazia sentido. Tu eras o meu sentido, a razão pela qual eu havia renascido e, contudo, de ti não mais recebi que um amor intangível, sem toque, sem forma física… Se existe? Afirmo agora, categoricamente, que sim. O amor a Deus, também não é palpável, não é verdade??? Amar é algo tão sublime que só quem é abençoado com essa ventura pode falar dela. E eu fui, Julião. Encontrar-te, foi, na vida, um dos melhores presentes que alguma vez recebi…
Todos os lugares me falam de ti: este, mais que qualquer um, mas todos! Os momentos em que a tua voz era o meu mundo, em que bebia embevecida cada palavra, cada acorde, cada mimo ou ousadia (nada me parecia demasiado, nada era por demais ousado, nada, Julião… sabia-te louco “louco varrido” e desejava-te infinitamente louco, independentemente de toda e qualquer condicionalidade, de toda e qualquer norma social ou outra). Desejava mimar-te, acarinhar-te, cobrir-te de ternuras e de afectos. Sonhava, adolescente, com coisas infinitamente pequenas – um livro, um poema, uma música -, o meu corpo no teu colo, a tua cabeça no meu regaço. Desejava entrelaçar os meus dedos nos teus dedos, Julião … a minha na tua vida. Para sempre! Ainda que à distância, ainda que só, na virtualidade deste amor. Pouco me importava. Saber-te do outro lado da janela era-me suficiente. A janela ...
Não, Julião, não era sexo que procurava (seria tua, se fosse o caso, porque te amava…), mas não, de todo não. Amei-te desde o primeiro segundo em que as nossas asas se roçaram na imensidão de um mundo que desconhecia. Amei-te sem te conhecer a forma, o cheiro, a textura da pele, o jeito do olhar ou talhe de andar. Amei-te depois, mais ainda, dia após dia, mês após mês. Aos poucos ganhavas feição. (Re)conhecia-te variações de humor, mudanças temperamentais… e tudo amava. Tanto, tanto!Confiei-te a minha vida, Julião. Por ti, por nós, enfrentaria o mundo. Por ti, por nós, escancarei o horizonte e fui mais eu. E fui tua, na alma e no corpo, sem que entre nós se gerasse físico contacto; e porque, como sempre afirmei, só conjugo o verbo amar num tempo – eternamente -, amo-te para sempre… para sempre!
Conduzo, chove! Cada espaço desta estrada me fala de ti. Das vezes (tantas e tantas) em que estanquei o carro na berma do alcatrão e te liguei. Das vezes (tantas) em que me desligaste o telefone, em que a chamada “caiu” ou que (se de maré) me atendeste com um sorriso e um “olá…” ou um “olá querida”… ou ainda “ ia-te ligar agora mesmo, Amaralis, tive um dia de cão…”. Depois, Julião … o mundo lá fora não existia mais, nada mais existia. Nem sequer a distância de mais de 500 Km que nos separavam. O meu mundo eras tu, Julião … em alta voz dentro do carro, ou, ao meu ouvido, fundido no meu ouvido (onde te guardo para sempre) … o meu mundo, Julião eram as tuas palavras, os teus sorrisos as tuas loucuras e as minhas (tão loucos, meu amor, tão loucos …) “… és louca, Amaralis” … “sou? E tu, Julião?” … Rias… "semos querida … semos, gosto de tu …". Brincavas com as palavras… e até isso, Julião, eu recordo nesta hora, nesta saudade de ti.
Conduzo, chove… não vejo nada lá fora, nada, sabes? Faço os 50 Km que me separam de casa sem saber de estrada … maquinalmente. Chove em mim para sempre, hoje, como em todos os dias destas doze semanas de solidão. Chove! Chove tanto, em fio e logo em pranto … Puxo o teu número da memória do telemóvel (ocultei o meu… Julião, necessito de ouvir a tua voz, uma última vez que seja, uma última vez) …
...
- Nada a fazer, esta vinha desgovernada, enfiou-se de frente… passou todos sinais vermelhos lá atrás e o separador central … vinha alucinada…
- A identificação, procurem a mala dela, malas de mulheres, só tralhas … deve ter ai o telemóvel… verifiquem para quem ligou … Julião Pedrosa! Quem será?... Bilhete de Identidade … Amaralis Costa Macedo, 46 anos, casada … Natural de Alcácer do Sal …
- Senhor Julião Pedrosa? - Sim, quem fala?
- Brigada de Transito de Setúbal, desculpe, conhece a Dª Amaralis Costa?-
- Conhece? Pode dizer-nos a morada da senhora… aconteceu um acidente, ao Km 20 …
- … não, não conheço ninguém com esse nome…
Doze semanas, Julião …
Chove! Atende Julião, por favor atende, necessito de ouvir a tua voz … por favor, Julião … Para sempre!!! Amar-te-ei para sempre! Adoro-te Julião … atende …
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domingo, 10 de fevereiro de 2008

Porquê, Madalena?

Porquê, Madalena?Porque nunca me disseste que tinhas olhos tal areia e só por isso eu não via as lágrimas que choravas em silêncio? Tal areia, por onde na madrugada o sal se esvaia? Não, Madalena eu não podia saber. Como poderia suspeitar que não eras feliz? Tinhas tudo, Madalena, tudo!!! Madalena, bem sei que não tinhas máquina de lavar loiça e que por isso não podias usar aquele verniz cor de sangue de que tanto gostavas e que, segundo me dizias, se escamava com as lavagens dos pratos. Mas, Madalena, aquele outro o transparente também nem te ficava mal… Porquê Madalena? Porquê? Não, nunca entendi que não eras feliz. Sabes, posso até ser um pouco desatento, mas confesso que não entendi. Nunca te queixavas de nada Madalena. Também é certo de que não íamos ao cinema, nem ao teatro – recordo que, no início do nosso casamento falavas nisso: “António, podíamos ir ao cinema este fim-de-semana”… e esboçavas um sorriso (tinhas um sorriso bonito, Madalena…). Podíamos… até que podíamos, Madalena, a verdade, verdadinha é que, ao longo destes mais de vinte anos, contam-se pelos dedos duma mão e sobram dedos as vezes que fomos. Mas Madalena… fomos dos primeiros aqui da rua a ter um leitor, gravador de vídeo. Podias gravar os filmes da televisão, Madalena. E até chegámos a alugar alguns… não, Madalena, não íamos ao cinema, mas tu podias ver filmes. Nunca te proibi, Madalena! O que importa afinal? Não é o filme em si? Ou querias ir ao cinema para ser vista? Para dar nas vistas? Madalena, sabes que nunca gostei de ajuntamentos… e o cinema estava sempre cheio! O teatro? Bem isso é outro assunto. Aqui não há teatros, Madalena, que bem sabes. E Lisboa não é logo ali. Podias gravar também, Madalena… na TV passam teatros de vez em quando. Porquê, Madalena? Porquê? Eras infeliz e eu não sabia? Devias dizer, Madalena. Tinhas tudo, Madalena. Tudo. Também é certo que não saíamos juntos amiúde (ou quase nunca). Mas porra, Madalena, tu não gostas de futebol, nem de hóquei, nem sequer de caça. Como poderias sair comigo? E além disso, Madalena, as crianças também não podiam ficar sozinhos (nem tu acharias jeito a tal coisa, Madalena…). Porquê, Madalena? É certo que há muito me parecias murcha, assim como as flores das jarras. Acho até que começaste a ser meio desmazelada com a casa, Madalena. Mas também nunca quis perguntar, podias ficar ofendida. Não, Madalena, a gente é o que é. E eu sempre achei que tu estavas a murchar antes do tempo. E Madalena, a culpa era tua, Madalena, porque não te organizavas para cuidares de ti. Sei, Madalena, que trabalhavas, que não tínhamos empregada, que os miúdos eram muito desarrumados, mas porra, Madalena … as outras conseguem, Madalena: são mães, são trabalhadoras, são esposas e algumas são até amantes. Dos maridos, Madalena, obviamente. Tu também podias ser! Quem falhou foste tu, Madalena. Eu dava-te tudo, Madalena. Lembras, até te dei no Natal passado uma varinha mágica que a antiga estava estragada. Dava-te tudo, Madalena… Foste-te embora porquê, Madalena? Porquê? Bolas Madalena, nunca entendi o que escreveste naquele papel em que dizias “António, vou para o pé do mar, para longe deste lago gelado a que chamas lar… sabes, António, os meus olhos são areia, areia fina, tão fina que tu nunca viste como me desfaço lentamente em sal… Vou António. Vou antes que de mim nada subsista. Vou enquanto ainda sou capaz de te olhar sem desejar não te ver! “Porquê, Madalena? Eras infeliz?".
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sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Como pode acontecer, Cidália?



Ainda te sinto nas minhas mãos, Cidália. Ainda sinto a quentura da tua pele, o bafo quente do teu beijo, a tua língua enrolada na minha. E o teu desejo, Cidália? O teu desejo… a hora em que eras mais tu, e logo mais minha. Cidália… Como pode isto acontecer ? Eu acreditava em ti, eu queria o melhor para ti, o melhor para mim, o melhor para nós. Como pode isto acontecer? Em que é que falhei, Cidália? Porque fui eu que falhei, Cidália…

Sabes, Cidália, enquanto atravessava o país de lés-a-lés, enquanto atravessava as horas de todos os dias, os dias de todas as semanas, as semanas de todos os meses, os meses de todos estes anos, era em ti que pensava, era no calor do teu corpo que descansava, era o desejo que via nos teus olhos que me guiavam na madrugada. Tinha fome de ti, Cidália, fome, Cidália, fome!

Às vezes, às vezes – confesso-te agora, que não importa mais -, parava num qualquer Club, bebia uns copos… Sim, Cidália, sim, isso mesmo que estás a pensar… Saciava a carne, a fome da carne. Mas nunca te trai, Cidália. Nunca, ouviste? Nunca amei nenhuma delas, nunca desejei mais que o instante em que o corpo se esgotava. Ai, Cidália, fechava os olhos e eras tu que eu via, os teus seios pequenos nas minhas mãos, as tuas ancas a ondular na fome do teu prazer… tinhas prazer, Cidália, que eu sei… Ou fingias??? Tu fingias Cidália??? Não, Cidália, não posso acreditar que todos estes anos fingias orgasmos, que me mentias… que me enganavas. Cidália, diz-me que não, que esta suspeita não tem qualquer fundamento… que eu, o teu marido, te dava prazer… Cidália, fala, fala … não me deixes nesta incerteza, não deixes que esta dúvida me torture para o resto da vida… tens a noção de que isto é a honra dum homem? Um homem, Cidália!!! Cidália, vais-me dizer que não era homem para ti? Que quando te possuía não te dava o que um gajo deseja dar a uma mulher, à mulher que ama… eu sempre te amei, sabes? Tudo menos isso, Cidália, tudo menos isso! Sempre fui macho, Cidália, antes de ti, tive várias mulheres e, Cidália, sei que foram felizes comigo, sei, percebes? Um homem sabe, Cidália, um homem sente… ou não sabe, Cidália??? Ou pensa que sabe e não sabe coisa nenhuma? De que natureza são feitas vocês, mulheres? Cidália…

Ainda te sinto nas minhas mãos, Cidália. A estremecer, a vibrar… e agora Cidália, a chuva que cai lá fora, a chuva que empapa a noite, cai pesada dentro do meu corpo, cai desgovernada dentro do meu cérebro. Sinto-me a afogar, as águas a subir, os caniços da margem cada vez mais longe, cada vez mais longe… estou agoniado, Cidália, não sustenho o vómito, o vómito tem a cor do alcatrão, o alcatrão de todas as estradas, de todas as noites que não dormi na febre de ir dormir a teu lado… como naquela noite em que depois de ter enganado o taquímetro, fiz mais de mil quilómetros. Cheguei inesperadamente, entrei no quarto, dormias, as crianças dormiam, tirei os sapatos e possui-te, vestido, sem te ter acordado sequer… Tinha fome, fome de te ter, Cidália, entendes? Não te tinha há quase dois meses … Apenas os primeiros raios da manhã iluminavam o nosso quarto. Sonhavas, aceitaste-me e quando abriste os olhos… não sei, Cidália, não sei dizer o que vi nos teus olhos… disseram-me … Sei lá, Cidália… que estavas a sonhar, pensei! Embrulhaste-te tão rapidamente, Cidália … sonhavas, pronto! Com quem sonhavas, Cidália? Com quem?...
Dói-me o peito, a luz baralha-se-me na mente, relampeja-me em trovões, e estes zumbem-me nos ouvidos… Oiço-te claramente, numa voz que nem é mais a tua, que não reconheço… e, contudo, és tu! Tu! Só tu…
A chuva ensopa-me a memória, a sopa escaldou-me a boca, os vomitados ensopam o sobrado, o nojo sou eu, o nojo é a vida, esta vida de enjoo… Como pode isto acontecer, Cidália? Tenho de dormir, dormir mil anos antes de puder entender a mensagem que me mandaste para o telemóvel ontem quando jantava … Bebi, bebi sim. Bebi até perder o norte de mim, até não distinguir o norte do sul, nem sei como vim parar aqui…
Oiço agora as risadas do Tomás, do Henrique, do Alfredo e sei lá de quem mais. Vejo toques de braços, olhares zombeteiros... “Vais para casa hoje, Miguel? Telefona antes, pá … não vás ter surpresas… As mulheres fazem surpresas a um gajo… dormem por casa das mães, têm medo do escuro, do bicho papão …”
E riam, Cidália, riam e acotovelavam-se se como que a passarem mensagens em código morse… nunca liguei, Cidália. O que eles tinham era dor de corno, as mulheres deles não eram como tu, Cidália… não tinham o teu viço, o teu brilho… Tínhamos uma vida bonita, uma casa um carro … E continuava, Cidália, trabalhava o mais que podia, queria o melhor para ti, o melhor para nós. Não, Cidália, não te ligava, como bem sabes… Não queria que pensasses que desconfiava de ti, que te estava a controlar. Telefonava ao Domingo, Cidália, sempre. Nunca me esquecia de ti, nestes anos todos de estrada, Cidália, e quando vinha, Cidália … ai, Cidália, tu sabes…
o vento zumbe, as árvores secas mergulham galhos na tempestade. O camião está lá em baixo, por debaixo da sacada, o destino do frete o Norte de Espanha, parto amanhã daqui d’Elvas…
Cidália, como é que esta merda foi acontecer???
O quarto cheira a vómito, eu sou vómito, eu sou esterco, bosta humana. Olho de novo e não acredito no que vejo … devo ter alucinado de vez, Cidália… cegado de vez… Como pude ser tão cego? Leio uma vez mais...

“estou no hospital … nasceu o meu filho. Os nossos filhos ficaram na casa da tua mãe… não me procures mais”…

Cidália… ainda sinto as tuas mãos, a tua boca, o teu corpo … como é que isto pode acontecer?


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domingo, 3 de fevereiro de 2008

"Vitalina, para a vida..."

Encontrei-a por acaso, num daqueles dias em que aguardava à porta do S.O. informações sobre o estado de saúde de um familiar. Entrei na sala, a luz não abundava e tudo parecia demasiado tétrico. Provavelmente o tétrico estava em mim, na repulsa íntima de, e de novo, estar ali, naquele hospital onde ainda há tão pouco tempo dissera o último adeus a alguém… Sentia-me meio perdida, meio desamparada…
No conjunto amorfo de rostos entristecidos, enfadados, constrangidos ou, simplesmente conformados, o seu, porque familiar, configurou-se-me desde logo como um porto de abrigo. Tal como eu, estava ali sozinha.O olhar, ainda que temeroso, encontrou o meu. Sorri-lhe, sorriu-me, encantada por se ver reconhecida. Atravessei rápida o espaço que nos distanciava, perfurando por entre o hall apinhado de gentes, como um breve “… com licença, perdoe...". Toquei-lhe o braço ao de leve, sorrindo sempre:- Como está a senhora? Faz tanto tempo que a não via …
Beijámo-nos amistosamente.
- Nem eu a si, menina, como o tempo passa, até já tem cabelos brancos …quem é que tem cá?
- Meu pai … e a senhora?...(lamentava, mas não me ocorria o nome… conhecia-a há décadas e, contudo, não me recordava o nome … intimamente pensava: “Mel, estás a sofrer de Alzeimer, mulher … já te esqueces até dos nomes dos vizinhos antigos…”
- O meu marido …
Cada vez mais confusa, olhava-a agora sem saber que dizer (Mel, não só te esqueces do nome da senhora, como deves estar a fazer uma confusão daquelas… O marido??... Mas o marido não faleceu há mais de dez anos?). Mentalmente tentava encontrar referências temporais … correlações factuais. Sim. Faleceu!... No ano em que faleceu a D. Doroteia a que vivia na Casa das Hortênsias … ou será que não?Mel, Mel, estás “passadita”, mulher!... Mas sim, recordava-me até da noite do velório de D. Doroteia em que, entre um soluço e uma chávena de chá, o tema de conversas era exactamente que o Senhor Maximiano, o taxista, estava gravemente hospitalizado com um problema pulmonar. Que faria muita falta, que se falecesse, não haveria quem quisesse o seu lugar na praça e, mesmo que algum outro viesse para a aldeia, já não era a mesma coisa. O Senhor Maximiano conhecia toda a gente e todos o conheciam a ele. Pronto para a altas horas da madrugada levar fosse quem fosse ao hospital, a ir aos montes por onde não se via vivalma acudir a quem o chamasse. E até, a acompanhar funerais às lonjuras onde mais ninguém se dispunha … e por “tuta e meia”. Enquanto todo o filme me passava em mente, no rosto magro e pequeno da minha interlocutora, até ai, semicerrado, abria-se um sorriso mais largo, ainda que envergonhado …- A menina está a pensar bem (avançava, como se pudesse ler-me o pensamento). Sim, menina, o meu marido, o Senhor Maximiano, faleceu já lá vão onze anos. Dos pulmões, não se lembra a menina? À menina, não me lembro de a ter visto nas exéquias fúnebre, mas a sua santa mãezinha, - que Deus tenha em descanso -, passou comigo a noite. Grande perda a sua mãezinha, menina Melinha, grande perda, uma senhora tão nova, parecia que vendia saúde … Bem parecida a sua mãe, menina…grande mulher…grande mulher -, não, menina, está certa no que estava a pensar, (e de novo senti que me lia a alma, aquela mulher pequena que sorria tímida à minha frente…). O meu marido, Senhor Maximiano já lá está na paz do Senhor há mais duma década … Que Deus o tenha no seu Santo descanso! O meu olhar continuava incrédulo. Olhava e tentava atingir o que me estava a ser dito. Ouvira correctamente: a senhora, da qual obstinadamente a minha mente, teimava em não me facultar o nome, dissera-me que estava ali à espera de informações sobre o estado de saúde do marido…- Perdoe-me … não me consigo recordar o seu nome… ando muito cansada, minha amiga, perdoe… são tantas coisas, tantas … (tentava justificar o que, a meu ver, só poderia ser uma grande descortesia). Caramba, conhecia-a há décadas, desde sempre, desde os tempos em que passava à sua porta a caminho da Escola Primária, e, sorrateiramente, colhia rosas cor-de-chá para o Altar de Maria …, que as não roubava, não senhor … apenas as “deslocava” para os pés de Maria … e, também não eram dela as rosas, eram da D. Natália, a senhoria da casa de que ela era apenas rendeira, que similarmente era a beata mais fanática da aldeia e que era, conjuntamente dona da única mercearia … Como é que não me recordava o nome, caramba???. E não era um nome vulgar, disso ainda me ia recordando… Vitália? Vicência?...
- Vitalina, menina, chamo-me Vitalina …
Claro, Vitalina!
- Sim, sim…. D. Vitalina, desculpe-me … Dizia a senhora então que estava aqui à espera de informações sobre o estado de saúde do seu marido …
- Sim, sim, menina…
Compulsivamente, como se o mundo fosse acabar naquele instante, como se emanasse dela uma necessidade maior de contar a sua história, D. Vitalina, agora acolhida no meu sorriso, avançava:
- Como lhe estava a dizer, o meu marido Senhor Maximiano faleceu … quem está lá dentro no S.O., é o meu segundo marido, Manuel da Graça… casámos há cinco anos, pela Santa Igreja – com o Senhor Maximiano era só casada pelo Civil, ele era divorciado, como sabe… (não sabia, mas continuava a sorrir, incentivando a confidência. A minha mão continuava pousada no seu antebraço, o meu olhar no seu olhar, ela de cabeça erguida...). Continuava: - Sabe, menina, a vida tem destas coisas. O Manuel foi o meu primeiro namorado. Namoramos durante três anos, lá na minha aldeia, perto de Tomar. Íamos casar … (se gostávamos um do outro…). Mas ele partiu, para o Congo, para fazer fortuna, sabe?... Pensávamos ser o melhor… Partiu e por lá ficou. As cartas perderam-se, deixei de receber notícias dele e ele minhas, pelos vistos… Ouvi dizer até que tinha morrido! A família dele foi toda para lá, e de lá para outros países vizinhos … perdemos o contacto. Nessa altura, menina, sofri muito. Tinha estudado, consegui a efectivação numa secretaria de uma escola no Porto, e por lá conheci o Senhor Maximiano … Casámos e, de praça em praça, viemos até aqui, onde nos conheceu. Nunca pensei por aqui ficar, menina, não tinha por cá as raízes … mas a vida é assim mesmo. Não, menina, também não tive filhos, Deus não quis. Depois … fiquei sozinha. É certo que tenho cá a minha irmã, que nunca se casou, mas senti muito a morte do Senhor Maximiano …
Enquanto D. Vitalina falava, interiormente ia assimilando aquela história … “Senhor Maximiano”… referia-se sempre ao falecido marido por “Senhor Maximino” e, contudo, ao actual por “Manuel” …
- Nunca pensei em me casar de novo, bem vê… na minha idade. Mas olhe, o destino está-nos marcado, menina, e dele, queiramos ou não, não nos podemos desviar…
Na sala começavam agora a chamar, um a um, pelos familiares dos doentes. Percebi que, por ordem alfabética… Do meu familiar, de nome começado por “M”, deveriam dar informações quase de seguida ao familiar de D. Vitalina …Um misto de ansiedade, de dupla ansiedade, apossou-se de mim naquele instante: queria que, e rapidamente, chegasse à hora de saber do meu doente, mas, paradoxalmente, desejava retardar esse momento. Queria ouvir aquela história a todo o custo …
- Senhor Anselmo Simões … familiar de Anselmo Simões …
Conta, Vitalina … conta depressa. Vitalina, atentava aos nomes e prosseguia:- Como lhe acabei de dizer, menina, nunca pensei em me casar de novo… mas um dia, numa tarde de Primavera, por altura da Páscoa (vou sempre à minha aldeia na Páscoa, sabe?...).
Bolas, não sabia … Conta, Vitalina, avança os pormenores, salta os detalhes … poupa-me às giestas e às fragrâncias das margaridas em flor… mas conta, Vitalina… por favor…
- … ora por altura da Páscoa, depois do almoço, decidi ir apanhar um bocadinho de ar fresco no coreto. Levei um livrinho, anda sempre um comigo, quer ver? – abria a mala e mostrava… “A velha casa… José Régio” … -, e fui. Sentei-me por lá, na calmaria do Senhor … E, menina, de repente, no banco ao lado, quem eu vi? … não vai acreditar, foi mesmo assim, menina… O Manuel!!! O meu Manuel. Vivo, ali, cinquenta anos depois. Cinquenta anos… uma vida, que as há bem mais curtas!
Repetia, e repetia de novo: - Cinquenta anos …
Duas lágrimas desciam agora, lentamente p’la cara de Vitalina. Mudas! Sem alvoroço. Na tranquilidade de quem revela um segredo ou conta um conto de fadas… Senti que, nos meus olhos, também mudas, as lágrimas teimavam em brilhar … estavam a dar-me um presente, estava ali alguém que me falava de sentimentos em estado puro…
- … olhámo-nos, ambos. Não podia ser, sabe?... Ouvi até dizer que já tinha morrido por lá, como lhe contei... (afinal foi o irmão mais velho, soube depois…). Levantei-me, o Manuel levantou-se… era Sexta-feira Santa. … ficámos tanto tempo de frente um com o outro… parados. Não, não sabia que fazer, menina …nem o meu Manuel, acho que sabia …
- Francisca Rosa de Assunção, familiar de Francisca Rosa …
- Hermenegildo Soares, familiar de Hermenegildo Soares …
Os nomes galgavam os minutos, os médicos prestavam esclarecimentos … a sala, lentamente, ia-se esvaziando, os rostos alternavam-se em sorrisos e lágrimas … as emoções alternavam-se por dentro de mim.
- … então, menina Melinha, o Manuel esticou as mãos … e eu as minhas, bem se vê!!! Abraçámo-nos tanto, tanto… nem imagina…
Um sorriso tímido, ternurento, maroto, bailava agora na face levemente rosada da minha amiga.
- Olhe … decidimos casar. Concordámos nisto, naquele mesmo dia! O Manuel estava viúvo, estava sozinho, os dois filhos estão na Bélgica… E assim foi. Casámos já lá vão cinco anos …
Não resisti! Perguntei-lhe:
- D. Vitalina, a senhora está muito bem mesmo, mas perdoe, não é correcto perguntar a idade a uma senhora…
- Deixe-se disso menina, esteja à vontade: tenho oitenta e dois anos … e o meu Manuel oitenta e quatro.
Oitenta e dois anos! Uma lucidez espantosa, uma vontade de viver invejável …Estava sem palavras. Se estigmas tivesse a respeito do que pode ser o amor, da força do amor, da durabilidade, da elasticidade do amor … capitulariam por terra naquele exacto momento…
- Maria Margarida Telles, familiar de Margarida Telles…
Ainda ousei uma segunda pergunta: - É feliz, D. Vitalina? Perdoe-me de novo, não me leve a mal, estou mais que sensibilizada com a sua história. Lindo, lindo… eu, que tenho a mania de escrever uns textos, estou seduzida com o que me acabou de confidenciar… Acha que posso contar um dia esta história?- Esteja à vontade, menina. Conte sim. Fui abençoada por Deus. O senhor Padre quando fomos falar com ele, olhou-nos e disse-nos isso mesmo: “Fostes abençoados, meus filhos. Estava escrito que um dia haveríeis de ser marido e mulher…”. Sim, menina, sou feliz. Muito feliz. Só a doença nos tira um pouco essa felicidade. Mas note, menina… também nunca fui infeliz com o meu primeiro marido, o Senhor Maximiano. Foi um companheiro de uma vida, quase quarenta anos de casamento. Se o amei, menina? Amei sim, mas de maneira diferente, compreende? Existem tantas formas de amar!...Sorria… sorriamos ambas, cúmplices. Sem que pudesse evitar, dei por mim a imaginar como poderia ser o reencontro de e com alguém, volvidos cinquenta anos. O reencontro de dois seres que, no auge da juventude se amam e projectam uma vida em comum. E que a vida separa e volta a reunir… O reencontro sob todos os primas da dimensão humana. O reencontro físico, carnal, quando a idade é, como no caso, avançada. D. Vitalina, sábia, ainda foi acrescentando:
- … é muito mais calmo agora, menina Melinha, no campo dos afectos, se me entende! Agora dispomos de todo o tempo do mundo! (Sorria …). O meu Manuel, quando falámos de nos casarmos, disse-me: “Vitalina, para a vida …”. Será, menina… para a vida, enquanto a vida nos permitir…
- Manuel Gervásio da Graça, familiar de Manuel da Graça …
Rapidamente, D. Vitalina se despediu de mim com o olhar e avançou. Fiquei ali, durante os minutos seguintes, colada ao chão, colada às palavras, a tactear os limites daquela história de amor. E não os encontrei …“Vitalina, para a vida …”
***
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“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...