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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Histórias do nº 5 - "Os amores de Juliana"

O bairro crescia agora na lateral e em altura. A electricidade prometida chegara por fim. O pátio térreo dava lugar a um outro, cimentado, onde cabeças se haveriam de partir nos intermináveis jogos de bola.

Com o decorrer dos tempos, as lutas entre vizinhas eram cada vez menos frequentes, até porque quase todas, em paralelo com as vidas domésticas, trabalhavam nas fábricas envolventes. Nalguns casos, famílias inteiras a laboral nas mesmas indústrias, o que, anos mais tarde se viria a revelar catastrófico, por variadíssimas razões a que não seriam alheias as mudanças sociais e políticas do próprio país, mas também, como é obvio, pelo facto das relações pessoais se virem a tornar endémicas e enquistadas.

A aldeia crescia a olhos vistos, expandia-se pelos outrora campos de cultivo e pelas várzeas, composta por vários bairros e pátios habitacionais. Prédios em altura começavam a surgir aqui e além. A heterogeneidade era a nota dominante. Das colónias chegaram os “retornados”, do Alentejo profundo continuavam a chegar e a partir famílias inteiras.

Algumas moradias indicavam outras origens, outras proveniências. Gaibéus, Beirões, Minhotos e Transmontanos, entre outros, confirmavam a dissemelhança do tecido social. Da anterior aldeia encimada no topo do monte a ver o Tejo, pouco ou nada restava. As originais famílias haviam-se dispersado ao longo da colina, ao longo da linha-férrea, ao longo da beira-rio, miscigenavam-se com os cagaréus, com os avieiros …

Juliana era das poucas que nunca havia emigrado, que se mantinha fiel ao lugarejo onde um dia nascera. Era dali mesmo, se bem que nem sempre tivesse habitado o mesmo espaço. Mas era da aldeia. Não aprendera costura, nem lavores, nem qualquer profissão. Andara ao campo, como tantas da sua idade, lavara no rio, amassara e cozera pão no forno de lenha. Fora a lavar as tripas dos porcos quando das matanças nas casas mais abastada. Fora a lavar ao rio roupa para fora… Sabia de lavar e de engomar, lá isso sabia!

Tal como os demais, as fracas habilitações (3ª classe não concluída) e a necessidade de ganhar a vida, fizeram-na ser mais uma entre dezenas de mulheres jovens campesinas a engrossar os caudais das fábricas. Quando a buza apitava para a entrada e para a saída, era vê-las então, aos magotes, aos bandos, ao longo da Estrada Nacional, de lancheiras na mão, cabelos ondulados aos vento (fruto dos papelotes da noite anterior), saias à godés, camisas de chita engomadas pela noite dentro no ferro do carvão, seios empinados nos corpetes bem apertados. As da serra faziam frente às do rio, disputavam os brilhos e os louros entre quem seria a mais vistosa, a mais cobiçada, a mais namoradeira…

As fábricas eram então o cortiço onde as obreiras teciam o néctar das suas vidas futuras. O trabalho sazonal, dependendo em grande parte das obras do regime e dos consumos das colónias para onde muita da matéria ali produzida era então canalizada, ora as ocupava, ora as dispensava e as fazia regressar aos campos.

Filha de uma família a viver no limiar da pobreza (como hoje em dia seria considerada), e não em pobreza extrema por viverem numa aldeia onde a troca directa era ainda moeda corrente, onde se trocaram serviços, amanhos de portões, de cancelas, caiação de paredes, etc., por bens de consumo, por exemplo, Juliana, a quinta de onze irmãos, era uma moçoila de falas atribuladas, de risos meios extemporâneos. “Levantada” como se dizia por ali. Contrastava com a irmã que lhe seguia em idade, essa comedida, contida no verbo e no riso, apurada nos saberes e nas atitudes. Os mais velhos não lhe agoiravam grande futuro, os mais sábios teciam-lhe recomendações:
- Juliana, Juliana, olha os modos, não queiras ganhar fama … não basta sê-lo, mulher, é preciso parecê-lo …
- Juliana, Juliana … “muito riso, pouco siso” … olha que “quem boa cama fizer nela se há-de deitar”… … e por ai adianta. Sempre os adágios populares a acompanharem uma espécie de premonição de que, à Juliana, a vida preparava cilada …

A todos Juliana respondia entre risadas. Não se importava. O que é que aquela gente dos montes sabia da vida? E mais, que se metessem nas suas vidas, que na dela não eram chamados.

Juliana casou e casada habitou o nº cinco, primeiro andar, recentemente concluído. Casou com um colega de trabalho, Manuel Romão de seu nome e quase dez anos mais velho que ela. Homem de respeito e trabalhador, como dele se dizia.

Manuel Romão era, em boa verdade, o seu oposto. Calado, de passo lento e sempre fechado em si, ninguém conseguia entender como é que se tinha enfeitiçado com Juliana. A família não lhe aprovou o casamento, mas mesmo assim, Romão seguiu em frente, parecendo determinado a mudar a vida da sua Juliana. Trabalhavam então ambos numa das muitas empresas do concelho, numa daquelas em que a laboração era contínua.

O tempo foi passando e a vida do casal regia-se no desencontro dos horários. Romão trabalhava em regime de turnos, Juliana apenas o horário normal. Na fábrica e há boca pequena, comentavam-se dos amores de Juliana, das aventuras (e desventuras) de Juliana. Comentava-se a falta de dinamismo de Romão e, acima de todas as coisas, o facto deste não aparentar dar-se conta de que Juliana, agora casada, parecia querer competir pelas atenções dos homens com todas as moçoilas casadoiras da aldeia. Em terra de toiros os comentários eram, não raras vezes, galhofeiras da pior espécie: - “O Romão? É toiro manso…, anda no cabresto ….”
Nos balneários ou no refeitório, um ou outro, mais atrevido, mandava as ditas indirectas:
“se fosse a ti, com uma mulher daquelas, mudava para o turno de dia… quem o seu não guarda, o vento lho leva…”.

Romão nada dizia. Se calado estava até então, dai em diante passava ao estado de mudo. Mudo… mas não surdo. Mudo, mas não parvo, nem sequer cego. E o que não dizia, ecoava fundo dentro dele escoiceando-lhe a carne em golpes cada dia mais penetrante, cada vez mais dolorosos. Até porque a cada dia se sentia mais sozinho dentro da sua própria casa… e dentro de si mesmo. Os risos, as gargalhadas de Juliana, pareciam-lhe agora “gargalhadas nervosas” e, não obstante gostar dela, começava a encontrar-lhe os defeitos que os demais lhe viam desde sempre. Mas quem ele era para lhe colocar defeitos? Se também os tinha. E, verdade seja dita, Juliana, se defeitos tinha, qualidades também. Das portas para dentro era o puro do asseio e poupada como poucas por ali. E boa mãe! Então?... Não seriam “mais as vozes que as nozes?”. Não seria o despeito que falava na boca dos colegas?

A dúvida minava a alma. Dia a dia, noite a noite. Nas noites em que olhava da fábrica o bairro e pela madrugada julgava vislumbrar luz na janela do seu quarto de casado. No início não perguntava nada, não queria perguntar. Mas a dúvida cada dia maior ia abrindo roussos por onde a paciência se esgotava. A paciência, a confiança… roussos capazes de deitar por terra a sua vida inteira…

Romão confrontava Juliana:
- Sentiste mal de noite? Ou foi o Julinho? … pareceu-me ver luz aqui em casa…
- Não, deves estar a ver coisas …
Ria, num histerismo de meneios e de risadas que a Romão incomodavam cada dia mais …

Numa noite de luar, não teve dúvidas: havia luz na janela da sua casa. Não pensou em mais nada. Iria tirar a limpo as suas dúvidas, duma vez por todas. Se não estava doente, que razão havia para que, noite após noite, madrugada a dentro, a luz se acendesse?

Na hora da “bucha”, picou o cartão e saiu da fábrica. O guarda-portão estranhou e adivinhou. Aquilo ia dar caldeirada. Ó se ia. E o peixe era de rio, ó se era… E peixe do grado (do agrado de Juliana). O “alerta” correu a fábrica de lés-a lés – o Romão ia meter-se em alhadas, ó se ia.

Em pouco minuto trilhou a distância que o separava de casa. Suava por todos os poros, sentia o coração a saltar-lhe pela boca, a boca sem conseguir respirar.
- De hoje não passa!!! Olá se passa ...

Juliana ouviu os passos na escada exterior, ouviu-os a passarem no corredor externo que servia as diferentes habitações e julgou-se perdida.
- Alberto, Alberto … valha-me Deus, vem ai gente… Veste-te, veste-te… sai pela janela, salta pela janela… tou perdida, ai Alberto…

A chave rodava agora na porta e não a conseguia abrir. Por dentro, uma outra, atravessada, impedia o intento.

- Abre Juliana, abre senão arrombo esta merda … Abre, Juliana…

Pontapés e murros acordavam a vizinhança. Em camisas e em pijamas, uns e outros assomavam agora a portas e janelas… a tempo de verem um vulto semi-despido e descalço, de sapatos na mão a correr pelo páteo do bairro …

- Abre Juliana…
- Já lá vou, Romão, já lá vou… estou na casa de banho… ai homem, deu-me uma “caganeira” daquelas, deve ter sido dos melões …

De faces mais que vermelhas, a suar por quantos poros tinha, desgrenhada e meio nua (apenas de camisa de dormir), Juliana abria por fim a porta …

- Juliana, fala, merda de mulher: quem tinhas tu aqui em casa? Fala ou acabo com a tua raça….
- Ninguém, Romão, porra, homem … estou de “caganeira”, já te disse…

Romão olhou em redor… no bengaleiro da entrada um casaco que desconhecia … avançou ao quarto. A cama desfeita contava a “diarreia da noite” … e, misturados com os seus pertences, na cadeira, umas calças cinzentas olhavam descaradas em sua direcção …

- Fala, Juliana. De quem são estas roupas? De quem, mulher???....Fala que te rebento de porrada senão falas …
- Do meu irmão, Romão, do meu irmão Zeca… veio cá ontem à noite depois de tu saíres…
- … do teu irmão??? Deixou aqui as calças? Foi nu?...
- levou umas tuas… sujou-se …
- 'tava de “caganeira”, Juliana? Dos melões, é Juliana??? Sai mulher, sai desta casa antes que eu volte de manhã, porque se te encontro aqui, quando voltar do trabalho, então Juliana … não respondo por mim. Sai, antes que saibas quem é o “toiro manso do Romão …”
Juliana já não ria agora. Chorava e olhava a casa e o marido. O filho por Deus não tinha acordado…

Lentamente o dia nascia no nº 5. Lentamente Juliana descia as escadas rumo à cidade próxima onde se acolheu numa pensão de má fama … Continuou na empresa por mais uns meses. Alberto fingia que a não conhecia. Era peixe graúdo “bem casado e pai de filhos”. Peixe graúdo!!!
- Com a Juliana? Eu??... Devem estar mas é todos malucos … Logo com a Juliana que o marido trabalha cá … não faltava mais nada.

Com a Juliana! E Com todas as Julianas de riso fácil. Mas sempre “bem casado”!.
Mas sempre na negação da duplicidade!
Todavia, aqui e ali sempre ia afirmado, à laia de quem não quer deixar créditos por mãos alheias… “mas um homem não é de ferro. Elas oferecem-se, porra…”.

Romão entrou e saiu de cabeça erguida na empresa naquela manhã e em todas as que se lhe seguiram. O silêncio era total…
***
in Colectânea "Contos de Mulheres" © Todos os direitos Reservados

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...