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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Histórias do nº 5 - "Cândida, a toureira"

No número cinco sempre se viveram vidas cheias. Que o diga quem, por meados dos anos setenta habitou paredes meias com Gervásio e Maria Augusta, quem teve o privilégio de conhecer e partilhar as vivências de uma família alentejana emigrada para as orlas norte do rio Tejo, ali, onde as industrias cresciam mais que os cogumelos em cascas.
 Medrados os rebentos, Jeremias e Afonso, Manuela e Rosália, amparados por sortes casamenteiras, acharam-se os Quintelas a caminho das Galveias, por onde uns pedaços de chão de sobro os aguardavam, herdados agora por via do falecimento dos pais de Maria Augusta e feitas as partilhas e dadas as tornas – tornas, sim, para que também a casa do monte ficasse deles. Os irmãos tinham casas próprias. Acertaram então os Quintelas que as cortiças do ano seguinte seriam para pagar o que lhes competia pela mais valias que herdavam, que o pé de meia que haviam “ajuntado” daria para o sustento de ambos, e que, deles se haveria ainda de falar. Que, se a lavradores não chegassem, certo era que fome em terra de pão, também não passariam.
 Se bem o pensaram, melhor o fizeram. Encaixotaram tarecos e pertences em caixas de papelão – as do sabão Clarim (refugo bem se entenda, passadas ao portão traseiro da fábrica), alugaram uma camioneta de caixa aberta, com motorista e tudo, vestiram-se a preceito – Maria Augusta com o casaco de fazenda à três quartos, obra da sua Manuela, lenço amarrado em volta dos queixos, e Jervásio, antecipando a posse das terras, de colete e de jaqueta, obra sua Rosália. Rematava a indumentária a samarra do sogro, que herdara igualmente, e que, em viagem anterior, por via das traças, trouxera desde logo até ali, donde partia agora, depois de mais de vinte e cinco anos. A samarra… que, a despeito de todos, chamava sua e que lhe abrigava o corpo para além dos joelhos. Numa manhã de Primavera, disseram adeus à vizinhança, pegaram na gaiola ferrugenta do canário, na corrente mais que gasta do Piruças e desapareceram para sempre no pó da estrada.
A casa viu as janelas com escritos, à moda da época. Que se arrendava, sim senhor, e que agora, o bairro já tinha esgotos em substituição da fossa acética para onde os dejectos comuns eram lançados a céu aberto, usados como fertilizante nas hortas circundantes. Luz eléctrica estava prometida!
 Arrendava-se então o “T1”, acrescentado para o pátio comum, com uma minúscula casa de banho. Melhorado que estava, paredes caiadas do branco dos “Alentejos”, ainda guardava nas memórias a barra amarela, uma espécie de cinta, entre o barro do pátio e o alvo das paredes.
 De Mértola, chegava agora a nova família desconhecida de quantos por ali viviam – ao todo 11 famílias, uma molhada de crianças. Bolas nos vidros e rixas de vizinhas, eram, para além das tardes de futebol em que se ia ver o A-dos-Potes, o A-dos- Melros, ou o A-dos-“qualquer coisa”, divertimentos a que ocorriam eles e elas, incitando, ou à reposição, à reprimenda, ao puxão de orelhas bem assente, ou, não menos vulgar, a que, as mulheres envolvidas nas rixas se arranhassem, se esgatanhassem, se injuriassem, em suma, arrancassem da pele aos cabelos … A risada era geral. No fim tudo parecia não passar de mero divertimento, uma espécie de luta de galos em que se faziam apostas sobre qual das intervenientes venceria. As causas, quando as havia, estavam em coisas de nada, mais do tipo “diz que disse …”. E no dia seguinte já ninguém se lembrava de nada e tudo voltava à forma habitual.
 Chegaram numa tarde estanhada dos fins de Outubro. A escola já tinha começado e a Feira de ainda durava. Chegaram bem a tempo de que o Mértola, como viria a ser conhecido, visse na praça o que até ai só via nos campos. Os toiros. E desde logo tenha atentado para si, que seria toureiro (e dos bons). Não se pouparia a esforços, bem se vê! “Um homem que faz a guerra, faz um toiro, oh se faz…”. Os dias seguintes passá-los-ia, não a aconchegar o lar, mas a aturar nas jaquetas, nas meias arrendadas, nos tricórnios dos toureiros. Sempre que a muleta se elevava no ar e o estoque simulava a morte na “sorte suprema”, Mértola eleva-se do chão, exaltava e jubilava. Ser toureiro era, a seu ver, ser uma espécie de Deus e o toiro a entidade de que poderia dispor na vida e na morte.
Fixava-se na indumentária, no traje de luzes e lantejoulas, no brilho da praça a bolir de gentes nas arquibancadas, nos camarotes, na arena onde o homem enfrentava a fera, na calça impecavelmente justa, uma espécie de segunda pele… E a tudo achava que se lhe ajustava. E em tudo cuidava estar-lhe predestinado - aquela “era” a sua vida. De lides, bem se vê. De lides …
Mulher de poucas falas, Cândida, de feições cerradas, de mãos pequenas e já calosas, não enganava a proveniência – o trabalho do campo, o varejo da azeitona, a apanha do cogumelos, da cortiça, etc. Dos saberes da sua bagagem faziam parte estes e outros tantos, mas todos eles adequados à terra onde nascera iam já mais de vinte e sete anos. Não sabia de bordados nem rendas, não era cozinheira de mão cheia. Sempre andara ao campo, desde que findara a 4ª classe. Isso ainda fizera, sim senhor, mas não mais que isso. Para a ceifa do trigo não carecia de ser letrada, bem se via! E nunca pensara em casar…
Casara com o “Mértolas”, de seu nome José Carabita, por procuração. Madrinha de guerra, por mor de uma primo que por lá andava também no batalhão do Mértolas, encantara-se com a figura esguia e fardada que lhe chegara um dia num envelope com o carimbo de Angola.
Durante os mais de dois anos que se seguiram, desdobrou-se em longas cartas, escritas à luz do “pitromaxe”. Nelas, numa letra tremida e redondinha, falava da sua vontade de virar costas à planície onde tudo era escasso e ir colher farturas nas “Lisboas” das fábricas. Que por lá tinhas as primas Lizete e Hilarina, as duas bem casadas e a ganharem a vida honradamente. Que escreveria uma carta às primas (breve, nesse mesmo dia …) e que, se o Zé fizesse fé de casar com ela, muito lhe agradaria a ideia das “Lisboas”.
Casaram por procuração, como se disse. O feitor da Casa Vaz acompanhou-a à capela em representação do noivo, que haveria de chegar no final de Agosto. Era Julho, de início ainda. O fato de noivar, tirado da arca da sua recém finada mãe, estava-lhe acatitado, quase não se podia movimentar por dentro dele. Um ramo de jarros brancos emoldurado a folhas de oliveira compunha o “decôr”. O primo Zacarias, irmão do que andava na guerra das Angolas, tirou a única fotografia do momento, numa Kodac emprestada. As cigarras no restolho foram a única música que por ali se fez ouvir à mistura com os soluços da noiva solitária e os balidos das ovelhas.
A noiva (já esposa) suspirava agora pelos cantos e contava as horas que faltavam para ver o seu Zé e, mais que isso se possível fosse, de ir com ele na garupa do sonho destino à cidade grande. Aos arrabaldes, bem se via, mas era melhor que nada, e dos arrabaldes à cidade propriamente dita, a distância mediasse nos quartéis dos dias. Quaisquer quartéis chegavam. A este pensamento, atendia Cândida de olhos em tição e securas de boca. Já se via na cidade rodeada de filhos e de braço dado com José, bem posta na vida:
- “D. Cândida para cá, D. Cândida para lá…”
D. Cândida, como tratavam a sua madrinha, a senhora da Casa Vaz (guardava as distâncias, mas soava-lhe bem aos ouvidos…) “D. Cândida Matos Carabita”. Muito bem, sim senhor…

No dia aprazado José chegou. Em nada defraudou a imagem que dele tinha. Bem-falante e melhor apessoado, desde logo se encaminhou a ela e, de braço dado com a sua já mulher, desfilou galã a praça da Vila. Cândida não lhe passava do cotovelo. José parecia-lhe ainda mais homem que nos postais que recebera. A noite de núpcias tiveram-na na casa do Monte, pertença da prima Engrácia emigrada em França. As restantes dos três meses que se seguiram, na casa da mãe de José que nunca aceitou de bons olhos que o seu único filho varão – um rapaz de se lhe tirar o chapéu, para ninguém botar defeito -, casasse com uma moça já com idade passada: “se nunca casou, defeitos há-de ter… desonrada certamente… ”. Não tinha, não era (nunca conhecera homem antes do seu Zé - se nem pensava de casar!!!) , mas isso a Isolinda Carabita pouco importava. Se não tinha … tivesse. Da fama não se livraria: “sei lá donde saiu … ora, mulher por procuração, se isso é lá amor…”. Seria! Sim, Cândida apaixonara-se pelo Zé desde o primeiro dia que lhe recebera carta …
Chegaram ao nº 5 numa tarde estanhada. A jovem esposa pôs-se de arrumos pela noite a dentro à luz do candeiro a petróleo. Esperou o marido. Esperou e desesperou. Numa terra estranha não sabia a quem recorrer a saber do seu Zé. A aflição começava a tomar conta dela. Então não ficara ele na terra dos toiros? Não se apeara da camioneta que os trazia, mais’los pertences? E não lhe dissera que o motorista sabia o caminho? E não lhe dera a chave com a recomendação de que não e entortasse logo no primeiro dia? Desastrada que era, sem habilidades, que visse como cuidada de abrir a porta…
Cândida esperou a noite toda. E esperou ainda mais quatro noites e quatro dias seguidos … o tempo da Feira de Outubro … Por fim, viu o seu Zé chegar… e não o reconheceu. Tinha um olhar alucinado, um andar balanceado, de várias noites mal dormidas. Tresandava a suor e a urina. O cabelo colava-se em melenas à cara. Não lhe perguntou nada. Dirigiu-se à cozinha, colocou uma panela no fogão, aqueceu a água, buscou das malas ainda por acabar de arrumar uma muda de roupa e, em silêncio, estendeu-lhas, mais a um bocado de sabão azul e branco. De banho tomado, dormiu quatro dias seguidos, embalado em lides gloriosas e “olés” entusiastas …
Os filhos começaram a nascer. Primeiro um rapaz, depois uma rapariga. Cândida zelava a casa, os filhos, o marido. Esticava os dinheiros sempre escassos, comia fiado da loja. Vestia os catraios com roupas que lhe iam dando as vizinhas à socapa. Não trabalhava fora, que o marido não consentia (que sabes tu fazer? Nada!!!). Zé trabalha de vez enquanto nos intervalos da “preparação para as corridas”. Estabelecia contactos com bandarilheiros afastados das corridas, ia às tertúlias taurinas (pela porta das traseiras, como moço de fretes, de recados, de…) e sonhava.
Os mundos de ambos não se cruzavam. O mundo de Cândida era o nº5 e só. A Lisboa em vários anos nunca fora, os filhos tivera-os em casa, pelas mãos duma curiosa. Zé não lhe aprovava as primas. Por isso também estava proibida de as visitar ou ser visitada. Da vizinhança pouco sabia. Zé não gostava que tivesse intimidades com vizinhos: “só querem é saber da tua vida, se te “assisto”, se te bato… a casa é que é para as mulheres, é o lugar delas, se não tens que fazer… dorme”. Seria, não queria discussão… aliás porque cada dia mais o “seu Zé” estava mais tempo por fora. A amiúde um amigo vinha buscá-lo num carro “bom”: - “vou p’ra Espanha, por via das touradas”, já sabes, nada de conversas onde fui, onde me encontro”
Nada diria. Cândida, a "toureira", como era por ali conheciada, nada diria.Dizer o quê? Não sabia! Não sabia de nada. Apenas dos fatos de luzes que o Zé guardava “… Deram-me, são usados …”. Não, não sabia… e da falta de pão em cima da mesa, e da solidão na cama vazia. E das lágrimas choradas, inconfessadas.
Um dia, num dia de Outubro igual aquele em que havia chegado, partiu! Não porque o tenha desejado (pelo menos não o havia verbalizado…) mas porque, sem anúncio prévio, o seu Zé, lhe disse de rompante: “amanha as coisas, mulher: As malas, as roupas. Tuas e dos catraios. Vou levar-te “à" da tua falecida mãe. Não me serves para nada, mulher. És um estorvo na minha vida … Quero-te pronta amanhã de manhã, ouviste? Já falei ao carro de praça… lá sempre sabes trabalhar, ainda te ajeitas, ou não és capaz?...”.
Era! Talvez até fosse, talvez ainda fosse! Não sabia, não sabia mais nada. Não chorou, não questionou … Aprontou-se, mais aos filhos. Despediu-se das vizinhas: “vou p’ra terra, vizinha Maria, por mor de tratar daquilo que é meu … o Zé fica por cá (têm cá o trabalho, bem se vê … mas não nos “apartemos”, não senhor …). De cabeça erguida, sem olhar para trás, embarcou os filhos e foi-se. Nunca mais seria "Cândida, a toureira". Nunca mais ... nem ali, no número cinco nem na China ... (onde era mesmo a China???).
 Quando passou junto à Praça de Toiros ouviu o barulho da multidão, imaginou o seu Zé na arena e deu consigo a pensar que era de novo uma mulher livre. E não lamentou …

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2006

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...