Sobre mim ...

A minha foto
Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Porquê, Madalena?

Porquê, Madalena?Porque nunca me disseste que tinhas olhos tal areia e só por isso eu não via as lágrimas que choravas em silêncio? Tal areia, por onde na madrugada o sal se esvaia? Não, Madalena eu não podia saber. Como poderia suspeitar que não eras feliz? Tinhas tudo, Madalena, tudo!!! Madalena, bem sei que não tinhas máquina de lavar loiça e que por isso não podias usar aquele verniz cor de sangue de que tanto gostavas e que, segundo me dizias, se escamava com as lavagens dos pratos. Mas, Madalena, aquele outro o transparente também nem te ficava mal… Porquê Madalena? Porquê? Não, nunca entendi que não eras feliz. Sabes, posso até ser um pouco desatento, mas confesso que não entendi. Nunca te queixavas de nada Madalena. Também é certo de que não íamos ao cinema, nem ao teatro – recordo que, no início do nosso casamento falavas nisso: “António, podíamos ir ao cinema este fim-de-semana”… e esboçavas um sorriso (tinhas um sorriso bonito, Madalena…). Podíamos… até que podíamos, Madalena, a verdade, verdadinha é que, ao longo destes mais de vinte anos, contam-se pelos dedos duma mão e sobram dedos as vezes que fomos. Mas Madalena… fomos dos primeiros aqui da rua a ter um leitor, gravador de vídeo. Podias gravar os filmes da televisão, Madalena. E até chegámos a alugar alguns… não, Madalena, não íamos ao cinema, mas tu podias ver filmes. Nunca te proibi, Madalena! O que importa afinal? Não é o filme em si? Ou querias ir ao cinema para ser vista? Para dar nas vistas? Madalena, sabes que nunca gostei de ajuntamentos… e o cinema estava sempre cheio! O teatro? Bem isso é outro assunto. Aqui não há teatros, Madalena, que bem sabes. E Lisboa não é logo ali. Podias gravar também, Madalena… na TV passam teatros de vez em quando. Porquê, Madalena? Porquê? Eras infeliz e eu não sabia? Devias dizer, Madalena. Tinhas tudo, Madalena. Tudo. Também é certo que não saíamos juntos amiúde (ou quase nunca). Mas porra, Madalena, tu não gostas de futebol, nem de hóquei, nem sequer de caça. Como poderias sair comigo? E além disso, Madalena, as crianças também não podiam ficar sozinhos (nem tu acharias jeito a tal coisa, Madalena…). Porquê, Madalena? É certo que há muito me parecias murcha, assim como as flores das jarras. Acho até que começaste a ser meio desmazelada com a casa, Madalena. Mas também nunca quis perguntar, podias ficar ofendida. Não, Madalena, a gente é o que é. E eu sempre achei que tu estavas a murchar antes do tempo. E Madalena, a culpa era tua, Madalena, porque não te organizavas para cuidares de ti. Sei, Madalena, que trabalhavas, que não tínhamos empregada, que os miúdos eram muito desarrumados, mas porra, Madalena … as outras conseguem, Madalena: são mães, são trabalhadoras, são esposas e algumas são até amantes. Dos maridos, Madalena, obviamente. Tu também podias ser! Quem falhou foste tu, Madalena. Eu dava-te tudo, Madalena. Lembras, até te dei no Natal passado uma varinha mágica que a antiga estava estragada. Dava-te tudo, Madalena… Foste-te embora porquê, Madalena? Porquê? Bolas Madalena, nunca entendi o que escreveste naquele papel em que dizias “António, vou para o pé do mar, para longe deste lago gelado a que chamas lar… sabes, António, os meus olhos são areia, areia fina, tão fina que tu nunca viste como me desfaço lentamente em sal… Vou António. Vou antes que de mim nada subsista. Vou enquanto ainda sou capaz de te olhar sem desejar não te ver! “Porquê, Madalena? Eras infeliz?".
**
in Colectânea "Contos de Mulheres" © Todos os Direitos Reservados

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...