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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

sábado, 4 de janeiro de 2014

Do Natal a Reis: Benilde.



haveria de lhe instaurar processo, de lhe deduzir acusação. tornara-se invulnerável a intimidações ou ameaças, e, finalmente, a todas e quaisquer pressões, directas ou indirectas, da sociedade ou dela própria. a todos os condicionamentos, a todos os modelos de ocultação de imagem, de distorção de verdades, de evidências. disso se dizia certa naquela hora imprecisa daquela manhã erma de invernos e para com os seus botões, quando, resoluta,  tomou o rumo da estrada, sem nada de seu, a não ser a dignidade, ou não se chamasse Benilde Alexandra e, ele, Florival da Cuz. chamavam-no, por erro baptismal, porque, se havia cruz naquela história, era a dela. e variegadas as condutas em que lha infligira. pesada. chumbo, sangue e dor. um somatório de chorrilhos, de afrontas e impropérios, de padecimentos, físicos e morais, maquinados e consumados em mais de três décadas, dia após dia, num fio único e condutor de farpas, onde, há falta de melhor, Cruz se afirmava possuído de poderes sobre a suas vidas, sobre a liberdade, a segurança, a honra, etc’s, e, para que constatasse, nos últimos anos, sobre o seu património: bens que recebera dos seus, por herança e dote. Cruz punha e dispunha, vendia e alocava, sem lhe passar cavaco, sem lhe dar fé ou contas, “dono” de tudo o que seu fora um dia, pulante e rodopiante, numa dança de cadeiras, maquiavélico, onde apenas ele tinha lugar e voto, da mesa à cama, dos animais ao casario e às eiras. 
seu “bastante procurador”afastara-a dos filhos que, e, logo que se julgaram adultos quanto baste, fugiram o quanto as pernas lhe permitiram daquele lugar de nojo e raiva; mamã, voltaremos um dia… 
os olhos extenuaram-se de alojar a espera, secaram no gelo dos tempos em que o abraço jamais se consumou; não se conhecia o paradeiro de ambos, diziam-nos no Brasil ou perto... 
dos pais, que não visitava há mais de uma dúzia de anos, e de quem há mais de uma mão cheia de dedos não recebia visita,  e a quem nem sequer acompanhara à última morada. ora, benilde, estão mortos, bem mortos por sinal,  e já estavam a dever anos à cova. não fazes lá falta nenhuma. trata de me aprontar a gravata preta que eu te representarei. e, demais a mais, com o focinho nesse estado, todo negro, haveriam de dizer que te bato… haveria de ter que ver, o falatório. e logo eu, que te estimo como poucas, resguardada do frio no borralho do lar…
soltou uma gargalhada sonora, demoníaca, que ecoou como pedra em charco nos quatro cantos da casa. o que é teu, é meu. fui claro? ficas aqui! é que nem te atrevas! 
ficou. não se atreveu. não chorou. quando ouviu o carro longe, a subir difícil, a ladeira íngreme da igreja adjacente com a casa mortuária onde os seus descansavam em paz, afastou levemente a cortina de renda. acariciou-a, tomada de memórias. a poucos metros, a sua casa. a casa grande, onde brincara e fora menina - a pérgola de glicínias de folhas caducas e flores azul violáceas reunidas harmoniosas em cachos pendentes a protegê-la nas longas tardes em que se deslumbrava em leituras até ao cair da noite; as camélias, o denso arvoredo de árvores citrinas, os jardins com labirinto de bucho, e, de tudo, agora e só, um espaço repleto e irregular e sujo de mato e sucatas. da chaminé nem um fio de fumo, nem um sinal de vida. sua, a sua casa, e já dele, porque os que lhe haviam deixado o bem estavam mortos. … será tua, benilde, um dia, mas nosso o usufruto em vida. claro, papá. compreendo. e concordo. sim, papá, por certo…
mas agora estavam mortos. era natal. sem rabanadas, sem árvore. sem filhós, filhos, sem crianças, sem ser criança de novo, sem ser filha, pela última vez. então não é que vinha do lagar e um pote de azeite, mais de cinco almudes,  se desencabrestou da cinta? rolou por ai abaixo, sei lá onde foi parar… as curvas dos Marão chegam aqui à porta… riu, riu, invetusto e déspota. ao preço a que está o azeite, é uma arruína …a untar as curvas... a que horas vêm os teus pais?
não sei, respondeu-lhe. talvez nem venham
sentiu um aperto de peito, uma premunição. ouviu-o ainda, por mais uns tempos, numa agitação costumeira de sinal de calamidade, a arrastar o cardado das botas na tijoleira da entrada. um clarão iluminou a branco o átrio da casa, uns faróis na última curva, a tempestade chegou, Benilde, avisei-te, disse-lhe; 
foi um trovão?... não me parece. foiiiii... que mais poderia ser? o céu estava claro,respondeu a medo. isso foi antes. é o temporal a desabar e, demais a mais, que sabes tu? nada … é melhor que não saibas; há certas coisas que nem deves querer saber… faz-te mal à moleirinha fraca …
sentiu como que um gume a varar-lhe as carnes escassas por sobre os ossos. sentiu-se gelar. afastou mais a cortina, insistira tanto que não viessem. insistir até ao mais fundo das suas forças; que as estradas eram perigosas, que, como sabiam o Florival não apreciava comemorações natalícias, e, ela própria, não poderia sair de casa para os acolher à chegada ao sopé da aldeia, conduzir na encosta, muito menos preparar-lhes a janta, acender a lareira. já não tinha a força de antes, já não tinha empregada, já não tinha … ficaremos na nossa casa, Benilde, não te incomodes, filha, faz a tua vida. levaremos roupa quente, agasalhos fortes. o frio não nos assusta (crescemos nele), só nos assusta a ausência… a nós, teu pais, basta-nos ver-te, ainda que ao longe…  saber que estás bem. e, do Natal a Reis, quem sabe, terás uns minutos livres para um abraço? para atravessares a cerca, como quando eras criança… cinco anos, filha, cinco anos, sem ti.. o teu pai vê tão mal, custa-lhe a conduzir,  mas, seja como for, desta vez, nem as curvas do marão nos irão deter. conta connosco por perto… conta sempre. despediu-se da mãe apressadamente ao ouvir o latido nervoso dos cães, o deslizar do portão elétrico, desalinhado e perro, contra as pedras laterais. com quem estavas a falar ao telefone, puta de merda? apanhas-me de costas e dás-te ao desfrute, vadia. tenho de desligar este também? puta de merda…
arrancou-lhe o auscultador oculto contra o corpo, ao mesmo tempo que, abre os olhos, puta, abre os olhos, tira as mãos da fuça, é para que vejas o que, de hoje em diante não voltas a tocar… julgou cegar. mas não. passada a dor, o negro cobriu-lhe a face, e, sob as pálpebras, as pupilas cobriram-se do vermelho natalício. e assim ficou, a esvaecer-se aos poucos, o sombrio dos hematomas a esverdear-se timidamente sob a palidez do rosto. o coração a latejar no aperto das horas que faltavam para que chegassem. haveria de os ouvir chegar, fosse de noite ou de dia. haveria de sentir o cheiro das suas peles perto da dela. haveria de tombar no seu colo ainda que à distância de muros, grades e sebes. nada a impediria de os abraçar. do Natal a Reis, haveria de se escapulir, por uns instantes que fosse, para o colo dos que a amam. …
 haveria, portanto, de requerer abertura de instrução relativamente a factos de que se tinha, ela própria, abstido de o acusar. e, na oportunidade, entrar com um pedido de aceleração processual e recorrer, contestando, todas as decisões, todas as acções, todas as tomadas de rédeas de comum destino unilateralmente favoráveis. do natal a reis, aberto o inquérito, o jogo estava do outro lado, e, mais que não fosse, dir-se-ia, de mãos lavadas, como pilatos. que se fizesse justiça. por ela, por eles. se morresse,  a morte do corpo (de outra já estava morta) saberiam de quê. ou talvez não,
a chuva caía, mansa, penumbrando-lhe, em definitivo a visão. não via mais do que a um palmo de distância. o bulício da rua nas horas antes, a azáfama de uns e outros, parecia, subitamente, ter-se esvaído por uma qualquer porta invisível. por razão das circunstâncias, em razão da sua natureza, não seria ela a perturbar a ordem e a tranquilidade dos outros. ouviu os sinos, soube que iam a enterrar no chão de terra batida. no jazigo? qual jazigo, criatura? e eles eram lá dessas mariquices? vendi faz anos:  a pedra era de boa qualidade, até. de novo a gargalhada a acordar as almas, a revolver entranhas.
Benilde puxou a si o capuz gasto da camurcina. já vira melhores dias. ele e ela. ambos. mas, e, ainda assim, agasalhou-se numa tentativa de ocultar a última marca. o pêlo circundante, falho e surrado, espessava-se, aqui e além, vagamente hirto de enredos, qual caniche vadio. estava ali, a mais de trezentos quilómetros de distância. nem ela mesma saberia dizer quantos transportes apanhara. chegara na véspera a casa dos pais, na capital. primeiro aquele espaço; depois, o apartamento nos subúrbios, da empregada destes, 

...aqui ninguém virá em minha busca… preciso de trabalhar. por favor, doutora, faço qualquer coisa
(...)  terra batida. estão a descansar em campas de terra batida...  se soubesse, doutora, o quanto um dia fui bem-nascida… se soubesse! não, mas não, não é o que está a pensar -  estava uma ventania dos quintos dos infernos, no dia seguinte. era natal. tinha de os ver, compreende? tinha… sai, não olhei ao temporal que se havia de abater sobre a minha cabeça tonta, e, vá-se lá saber como, o chapéu-de-chuva virou-se, o cabo soltou-se-me das mãos e foi isto que se vê. foi isso, doutora, nada mais… acha que até aos Reis poderei encontrar trabalho? o que sabe fazer? faço qualquer coisa, qualquer coisa… digna! do bolso soltou um pequenino azulejo, cinco por cinco.  um bebé-anjo rechonchudo. gosta? sim, muito… 
o que fazia? lia muito, pintava arte. depois morri. mas faço qualquer coisa. …
percebo, não me  pode ajudar, não fique triste, entendo….   
feliz Ano Novo, doutora. aceite, pf. aceite...

 levantou-se, de súbito. antes que a pudesse deter, esfumou-se na multidão … 

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A todos, votos sinceros de um 2014 repleto de  Paz, porventura o maior dos bens.

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...