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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

canção de embalar silêncio

"que só a dor amacia a dor/que só o silêncio fala a verdade/em toda a sua inicial nudez"
Luís Costa


as pestanas a beijar o rosto, foices largas no olhar humedecido,
como lágrimas
como o dia
como as searas que longe via madrugadas sol da terra antiga; os dias frios, a palidez do rosto esvaecido. e os outros, anteriores àquele e, quem sabe, outros tantos os que se lhe seguiriam.

hoje é o dia de candeias, não te esqueças de acender uma vela, dissera-lhe,
acendera. colocara-a na janela da sua procura, altar excelso de oferta,
se as candeias sorrirem, já sabes, o Inverno ainda está para durar,
se as candeias chorarem, breve o Inverno há-de findar,
no teu Inverno

naquele dia um sol em arco-íris alargara-lhe os horizontes, uma nesga de claridade, um fio de tarde estendido sereno sobre a ponte, e esta, leve e luminosa, sobre o caudal do rio,

naquela tarde
de candeias espreguiçadas em fímbrias serenas dos eucaliptos
descodificou-se,
ela e as margens, elevadas além das nuvens que, de tão limpas, estavam ali por estar, a decorar a paisagem.

agora chovia, as estacas não seguravam os barcos, nem as ruas eram trilhos seguros.
cognitivo, o percurso fazia-se em zig-zags, na penumbra necessária, como um navio fantasma a enganar os piratas em alto-mar.

apagou as luzes. tão perto quanto o verbo lhe permitia, deitou a cabeça num lugar só seu - o lago de nenúfares - quando, no fio do horizonte, os cereais carregavam sem esforço o peso das águas, incendiavam o branco dos malmequeres bravios, e o sol, na linha de cabotagem, caia a pique
na casca dos búzios e, ambas,
duas gotas de água
arregaçavam rendas dos pulsos
em punhos de carne - amassavam o pão da vida na ternura lenta dos caracóis selvagens.

antecipando miríades primaveris nas casas brancas dos seus dias,
tomou-a em colo, olhou-lhe os olhos febris na certeza das incertezas de que, reflectidas, conheciam as relíquias e os sinais de uma canção de embalar silêncios em laçadas de seda.

não sem antes lhe segredar,
Sorri!




terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

A trança.

Desfazia-a lentamente, os dedos longos por entre os fios  entrelaçados. A humidade colada à pele, gota a gota, neblina pousada sobre os ombros nus. 
E ele, metade de si. Tiara, diadema...
A casa é onde o coração se esconde..., barro, ninho, ramo ou árvore. Amarrava-se. Deliberada
deliberadamente  
deixava que lhe recobrisse a nudez agora exposta. A toalha branca, de boa felpa, em que, entre uma divisão e outra, se envolvia (gostava-a ligeiramente áspera, sem amaciador) estava agora, caída aos pés
    e as palavras

    O meu António nunca me viu o comprimento da trança. Nunca…

Sentia o frio da pedra colado às nádegas ainda por moldar. Juraria que, por tantas tardes ali, por tantas horas a fio, no porfiar de agulhas e de farpas, camisolas tecidas e fios tirados no que havia de ser toalhas  sob a broa, por tempos intermináveis,   até que lá longe, na beira-rio, a buzina das fábricas da descasca do arroz soltasse todos os reclusos, um a um, seriam planas. Espalmadas e secas como o bacalhau que o Heitor cortava, no ranger de dentes,  com precisão cirúrgica. Mas não, os quadris fartos de diva de Orleães... Igual àquela que, na galeria, a olhava, persistente. A mão a amparar a queda, o rosto que, em planos contundentes, sabiam caminhos das sarças, a rasgar intentos e vontades...

    São quantas as postas, D. Joana?
    Ora, bem se vê, tantas quantos semos lá por casa
    E tem vossemecê cá a famelga que anda a labutar lá nas Franças, vá-se lá de saber?, não dei por as ver chegar…mas também, se bem pergunto, porque se  não se acostuma a senhora de os ir de acompanhar e largar por cá a sua criação e as hortênsias?
À pergunta, meia resposta,
    Tenho, sim senhor, todas as filhas, bem casadas por lá  nas Franças de Paris,  com quem não sabe da pronúncia da nossa terra, e também o Senhor António, que, desta vez, como vieram de carrinha emprestada, mo trouxeram, a minha Rosinda e a minha Hercília.  Por via de acertarmos umas papeladas…
    E adiantava
    uns negócios, umas máquinas que ele por lá há-de comprar, na troca da venda dos palheiros aqui que não me servem de nada - agora só tenho as pitas, por mor dos ovos -, venda dos terrenos, bem se vê…
    São nove as postas, então? … tem três netos D. Salomé? …
    P’ra orgulho dos meus olhos, que a terra há-de comer… quero-as altas, bem amanhadas...

    Menina, onde estás com a cabeça? Bagos de romã, o ponto: na primeira volta, já te disse: a 1ª malha tece, a 2ª malha passa e dá laçada e, a segunda volta, do avesso, trabalhas sempre em liga. Presta atento, que não me ocorre ensinar a cabeças de vento: na 1ª malha tece e a 2ª faz-se junto com a laçada…

    O meu António nunca me viu a trança, comadre Felismina, disso lhe garanto. Ora vamos lá a ver da pouca vergonha. Dizem que nas Franças as mulheres se despem nuas em pelo no quarto com os maridos. Se isso tem sentido, diga-me lá, a comadre ou vossemecê, amiga Quitéria? O seu homem, que Deus tenha em santo sossego, que se escafodeu, com perdão da palavra, lá nas Áfricas, algum dia lhe viu mais que a fralda da camisa?
     E de seguida, como que balançando o verbo,
o seu Miguel nasceu de sete meses mal medidos não foi? E que grande moçoilo, bem’zó Deus…, nem cabia nas camisas que a senhora sua mãe bordou, teria mais de cinco quilos a criança…
       E logo,
não te diz respeito a conversa, ouviste? Mostra lá o trabalho… desmancha… desmancha…   na 1ª malha tece e a 2ª faz-se junto com a laçada, não foi como te ensinei?
       agora o meu António chegou, está na cidade por via de aprontar a venda dos palheiros… quer saber,  ó comadre, que o homem queria dormir no meu quarto? E ainda mais que as filhas no ano passado contrataram a luz eléctrica… havia de ter de ver… desmanchar a trança ali, tão claro como o dia no campo…
    mostra. Agora sim, passa à 3ª volta… na 1ª malha passas e dás laçada, na 2º malha teces
    Bagos de romã,
    ...como cerejas as conversas, valhó Deus, que se faz tarde, o bacalhau é de forno, com azeite de meu governo. Pela barriga se guarda um homem, ó comadre… de maus intentos, bem se vê, que, de bandulho cheio, nem se alevantam do assento…

    O meu homem era de pouca comida, uma malga de caldo à noite e pouco mais, aventurava-se Felismina, o sol poente a repousar-lhe na cambraia da camisa bordada a cheio e sombra, a noite inesquecida, perpétua,  nas pontas da trança sob o lenço, e este, amarrado com duas pontas no alto da cabeça. Rubra, aqui e ali num matiz  de cobre e estanho. O corpete atado langoroso contrário à medida dos anos. De quando em quando, soltava acordes de uma cantiga...
    De quando era moiça nos campos, ó comadre, e por lá conheci o seu irmão e meu homme
    Vossemecê era fresca… ora deixe-me de estar calada, que não é a hora nem a ocasião se apronta útil.
    A buzina tocava. Salomé guardava a malha na canastrinha,  com um  até amanhã ,tia Felismina, tia Joana, D. Antónia …
    Vai com Deus, amanhã não venhas, que tenho de ir à cidade, com o meu António, as comadres sabem, a vendas dos terrenos…

Salomé seguia num passo de quem da vida era  ainda pó, barro por moldar; seguia o vento da tarde, rumo ao lar…
    Mais tarde
    “Lar é onde os objectos têm vida própria e as paredes nos contam histórias” (1)
Cada sombra lhas contaria. Os linhos, as rendas, as malhas
    de que fugia. O arame farpado; e o monstro do Lago Ness que ouvia, do antes, réptil marinho, cobarde forma de serpente…


Desmanchava-a lentamente, desfiapando-a  entre os dedos. Fúlgida. O espelho embaciado, e a palavra
    “para te acolher” ...para te acolher...
    Tomava por fim conta do seu corpo, algures moldado por um oleiro do pó, barro original. Tomava-se para se poder dar, na plenitude da trança que desmanchava, rubra, a tocar as ancas, redondas, carnudas,
Enquanto
desmesuradamente, à beira de ser água, um dia
[a Tarde se fez Noite, o Sol, bola incandescente, tombou rotundo no palco uterino do Mar.],
E de novo era
    manhã,

    O cheiro a coco, o gel de banho colado a si, o ritual a que se dava, sem pressa e no vagar de ser instinto  - agora os dedos a penetrar o verde do pote de gengibre,  mouse hidratante que espalhava num cerimonial de mímicas e de afectos
    O pecado mora ao lado, a lezíria de fenos expostos, doirados no calor de um sol que vinha nascido a norte e se desdobrava em si

         [Tu chegaste, aragem, manto de linho poroso, complexo composto de milhões de minúsculas bocas]

    O lago Ness.O medo. O negro.
O linho, a flor,
a tarte de gengibre, a receita antiga a coberto dos bagos de romãs e, ela, sob  as rendas, que vestia, uma a uma, peça a peça, tão a seu gosto, tanto dele, oleiro, obreiro, sal e sol, sabor
de dar e receber
    Igual.     O sabor da casa, a busca do espaço, o abraço. Visceral.
    O lar, instante iniciático em que
    [a planície se elevou em arco, ondulou em  searas de brilho luz e som. E a Noite nasceu em Dia. Explodiu em cor e no cantar da cotovia.]
    Perdurado, doce… nela,  a arte, o artefacto. A tela… parede, espelho ou vitral em que se projecta
Salomé,
    “o lar é onde cheira a bolos, a canela, a caramelo”
(2)
E onde a outra, a que desconhecida até ai, se projectava invicta a clamar no verbo,
    “Lar é onde o coração habita… meu amor”

Desmanchava a trança enquanto a jugular se enchia pulsante de um canto de pássaros do paraíso, e as mãos, inquietas,  teciam todas as malhas contingentes, sobre folhas despidas de rosas bravas, rosas brancas, num contar de contas, ábaco,  de estrelas do mar - diziam-nas acéfalas, pouco importava -, e os lábios entreabertos aspiravam os beijos e rezavam a bênção se ser mulher, e de lhe poder dar o espaço do seu ventre - avé-maria. Avé!


Eram os tempos em que, na manhã dos campos, rés às ilhoas, nos mouchões,  corriam livres os potros, enquanto nua,  se despia da pele que antes a cobria, e, em glória  a um Deus Maior, a quem cantava loas, sabia apenas da coralina cor das suas águas, metáfora progressiva de um caudal, gota  rio e logo mar, oceânica forma de ser mulher em braços, em entrega integra e fatal, e de,  asseverar, com ele ter aprendido a desmanchar sem medo a trança, a soltar cabelos fogo, e os movimentos  futuros dos quadris sem cilhas, ao  jurar saber a língua eterna dos bichos, das falhas cósmicas, de todos os pontos cardeais, dos sentidos invertidos em cadernais, do relincho das roldanas subidas em noras onde a água chora e ri, indicando o lugar exacto onde se encontram os ninhos, e neles, os pintalgados ovos dos passarinhos;

De alcatruzes compassados à  vida, deixava-se vestir na luz de sua presença, ela a cigarra travestida de formiga. Ou ambas,  numa só, e o seu nome fosse firme prenúncio de justiça salomónica: Salomé.

Desmanchava a trança,  olhava-se em espelho. 
Nem sempre jovem
nem sempre bela
e no entanto Ela, Salomé, à beira de ser, seria. E nada demais importava ou importaria senão a voz do vento e os cabelos, soltos,  a moldar o rosto ao tempo...

***
Citações 1 e 2, in Rosa Lobato de Faria, O Sétimo Veu.
Pintura de Eduardo Nery
Restantes citações do poema da autora, "Para te acolher"


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

No ventre, uma caravela.

Há quanto tempo estava ali? Perdera, por completo o  interesse no conceito do tempo, na volumetria dos dias. Como dos barcos. Apenas sabia que, do casco ao mastro, eram. Quanto bastava.  Como as fragatas do seu Tejo. Ou as outra, no mar alto... Prenhe, dizia-se, sempre "de uma caravela…"
A tempestade, por dentro. E o sangue em pernas...

No canto superior direito, quanto podia afirmar ver, no ângulo oposto àquele em que se encontrava, havia uma fenda, que, descaindo pálida pela parede contígua, deveria ter o epicentro na divisão adjacente - a enfermaria propriamente dita. E se adivinhava lá, mais macabra, mais profunda, mais virulenta,  desde a medula à pele, coberta de fungos e bolores. Aliás, em rigor da verdade,  toda a parede pedia meças à cor. Talvez -  deitava-se a adivinhar - , a original, a que se eleva dúbia acima do lambrim de madeira de pinho carunchoso, aqui e além solto dos parafusos, ora partidos, ora enferrujados, fosse amarela. Num amarelo de Van Gogh  de que tanto gostava. Ou amarelo mais claro, como os canários em cujo papo não entravam dietas vitamínicas de cenouras nem beterrabas… Adiante. Amarelo, seria. O que se poderia afirmar, convictamente, é que, da tal cor original, sobrava o assombramento pálido, morfinizado,  de dentadura atacada pelo fumo de milhares de cigarros, suspensa  por grampos imaginários em gengivas, também elas, não saudáveis.  Piorreia,  escorbuto de marinheiros.  Tudo podia ser, e seria. Assim a parede, a que a via, ali,  às cautelas e por via de, deitada…

Dali, do aquário como lhe chamava,  podia observar sem esforço, através do vidro de generosas dimensões, o movimento  repetitivo e sempre azafamado do corpo médico, o vai vém do pessoal de enfermagem, dos estudantes de medicina,  que, em grupos de quatro, cinco, não mais que isso, e sempre dois passos atrás, de prancheta A4 em punho e, onde adivinhava lugar a um papel rabiscado, tomavam rapidamente notas de tudo quanto podiam. De todas as observações que, muitas delas não entendia, de outras que, entendendo, por desconforto, ignorava. As que lhe eram dirigidas - raras vezes -, e as que, tinham como objecto as restantes quatro que com ela partilhavam o espaço. Três, separadas pelas mesas de cabeceira, denominação eloquentemente dada a um móvel de ferro, “cambeta“,  igualmente enferrujado, e ainda uma outra,  a quarta, aos pés de todas, alojada numa, mais maca do que cama, provisória, como tudo ali parecia ser.
Todos de passagem, até as caravelas que navegavam os ventres…

Ai as caravelas!!! Frutos incertos de baías e de mastros…  Na maioria, nunca se fariam ao mar…
Rotinas em que gastava os dias dos seus pouco mais que vinte anos,  para não falar, do antes,  do quando, porque ainda escuro lá fora - estava-se em pleno Inverno -, repentinamente, num estalo só,  todas as luzes se acendiam ferindo-lhe os olhos claros. 
Ou de quando,  madrugada ainda, as batas azuis e as esfregonas  mais moribundas que a sua vontade de se abstrair ao cenário decadente, avançavam por sob a cama, estremecendo-lhe as entranhas, e os sons emergiam das gargantas, em relinchos de apoteoses e cio, complementares à noite de onde algumas vinham directas, deferindo aos sete ventos, às sete colinas de Lisboa, de como, da Mouraria ao Rossio, se tinham atavidado com os amantes. De amor? Nada, de ocasião. 

Que se lixe, meninas, já basta a nojice do dinheiro de fim de mês, deste, aqui, a limpar o que ninguém vê, a vomitar despejando os filhos de umas e outras… desta merda de  trabalho, há que desfrutar o intervalo… bebi uns copos a mais;  ò Bianca, limpa aqui, trás lá a lixívia... não há??? até me admirava...  fui com o gajo, mas estava sem pica… despacha as mãos, não tarda nada temos que as fazer saltar da cama..."


Levantava-se.  O medo a reter o passo:  - nada de esforços, se quer levar a gravidez avance. E logo, como se o  movimento das águas, das que continham a caravela  viva em seu corpo, lhe fosse indiferente: você é que sabe, há muita maneira de matar moscas… pois claro.

Não replicava. Ignorava. Em mente, numa dança de vespas sobre peixe fresco,  cada uma das palavras, quando, de pernas içadas, sentiu a invasão e o sangue quente escorrido em oposta direcção: - vai abortar… são todas umas cabras, umas putas.  Como se pode pedir mais a quem não tem como comer uma fatia de pão?.

Medida única. Todas calibradas pela mesma bitola. O estigma colado na testa.
Depois…  "olha, esta é casada, diz aqui que primeiro filho…
uma pausa em rebate de consciência. tardia, contudo,
Oiça lá, quer falar como tudo aconteceu? Se calhar estava enganada, mas sabe, aqui, das cem que entram, escapa uma."...

Não respondeu. Cerrou os olhos, numa maré de espanto donde o sal do Tejo brumava a tarde, salgava mais que o verbo, sem asas, que calava. Deixou-se observar, alheia a tudo. Concentrou-se no foco de luz do estetoscópio que, sobre a bata branca do médico, recém-chegado, lhe lembrava um âncora. Sentiu um porto...
(com tudo se aprende); um tempo que, ainda que se adivinhasse longo, teria de viver. 
Ouviu então, sem pestanejar: - tem de ficar, sabia não sabia? … aqui não temos quase nada, é Stª Bárbara, como sabe (sabia lá… pouco importava), mas o seu médico é meu amigo,  trabalhou já cá, e a senhora foi-me recomendada. Terá de fazer muitos exames. Não sabemos o que se passa… é estranho, convenhamos.


 Levantava-se, portanto. Todos os dias. Todas as manhãs. A fila para a casa de banho. Um só duche sem água quente em que se lavava "à gata" quando, por fim a sua vez chegava. Lavava-se, a opção é sua,  de mangueira ou de garrafa, ou fazendo recurso das duas, dado que, duche, propriamente dito, não havia... um tubo de ferro, perpendicular à parede e outro, uma cruzeta, donde a água corria menos que do gargalo… à família, nada dizia:  - Estás bem? ...óptima, há que esperar…


Era Dezembro, disse-lhe. - Será hoje. Vai ver que tudo corre bem. Terá de ser. Não coma nada nem beba, de agora em diante. A enfermeira já lhe dará pormenores…
Que pormenores? Tudo era secundário.
Como se chama, diga-me por favor… a tal "caravela" que não quer navegar, Sr. Doutor… 
Soltou o palavrão: Hydatidiform Mole… é muito nova, verá, daqui a dois anos pode, se desejar, voltar a engravidar…

"Hydatidiform Mole…", então... e que era lá isso, que não sabia?
De uma coisa  estava certa: era mole demais, nunca se faria ao mar. Naquela noite não dormiu. Na manhã seguinte, quando por fim voltou ao quarto, vomitava o que não tinha comido.
“...putas… eu bem digo, esta, uma sonsinha, deve ter espetado uma agulha pela “…” acima… agora vomita e e eu que limpe…  a malta tem que ter um estômago..."

Era Inverno, quanto se recordava. Teria vinte e picos anos. (São verdes os verbos, malbaratados...)
Às vezes para enganar o tempo  deixava que  a negra da cama ao lado lhe fizesse do cabelo longo, longas tranças... ficou-lhe o gosto, o hábito... em tudo o ensinamento, sempre afirmou. E, nem porque prenhe de um sonho, naufragado, era agora que o negava... 

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...