Sobre mim ...

A minha foto
Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

No ventre, uma caravela.

Há quanto tempo estava ali? Perdera, por completo o  interesse no conceito do tempo, na volumetria dos dias. Como dos barcos. Apenas sabia que, do casco ao mastro, eram. Quanto bastava.  Como as fragatas do seu Tejo. Ou as outra, no mar alto... Prenhe, dizia-se, sempre "de uma caravela…"
A tempestade, por dentro. E o sangue em pernas...

No canto superior direito, quanto podia afirmar ver, no ângulo oposto àquele em que se encontrava, havia uma fenda, que, descaindo pálida pela parede contígua, deveria ter o epicentro na divisão adjacente - a enfermaria propriamente dita. E se adivinhava lá, mais macabra, mais profunda, mais virulenta,  desde a medula à pele, coberta de fungos e bolores. Aliás, em rigor da verdade,  toda a parede pedia meças à cor. Talvez -  deitava-se a adivinhar - , a original, a que se eleva dúbia acima do lambrim de madeira de pinho carunchoso, aqui e além solto dos parafusos, ora partidos, ora enferrujados, fosse amarela. Num amarelo de Van Gogh  de que tanto gostava. Ou amarelo mais claro, como os canários em cujo papo não entravam dietas vitamínicas de cenouras nem beterrabas… Adiante. Amarelo, seria. O que se poderia afirmar, convictamente, é que, da tal cor original, sobrava o assombramento pálido, morfinizado,  de dentadura atacada pelo fumo de milhares de cigarros, suspensa  por grampos imaginários em gengivas, também elas, não saudáveis.  Piorreia,  escorbuto de marinheiros.  Tudo podia ser, e seria. Assim a parede, a que a via, ali,  às cautelas e por via de, deitada…

Dali, do aquário como lhe chamava,  podia observar sem esforço, através do vidro de generosas dimensões, o movimento  repetitivo e sempre azafamado do corpo médico, o vai vém do pessoal de enfermagem, dos estudantes de medicina,  que, em grupos de quatro, cinco, não mais que isso, e sempre dois passos atrás, de prancheta A4 em punho e, onde adivinhava lugar a um papel rabiscado, tomavam rapidamente notas de tudo quanto podiam. De todas as observações que, muitas delas não entendia, de outras que, entendendo, por desconforto, ignorava. As que lhe eram dirigidas - raras vezes -, e as que, tinham como objecto as restantes quatro que com ela partilhavam o espaço. Três, separadas pelas mesas de cabeceira, denominação eloquentemente dada a um móvel de ferro, “cambeta“,  igualmente enferrujado, e ainda uma outra,  a quarta, aos pés de todas, alojada numa, mais maca do que cama, provisória, como tudo ali parecia ser.
Todos de passagem, até as caravelas que navegavam os ventres…

Ai as caravelas!!! Frutos incertos de baías e de mastros…  Na maioria, nunca se fariam ao mar…
Rotinas em que gastava os dias dos seus pouco mais que vinte anos,  para não falar, do antes,  do quando, porque ainda escuro lá fora - estava-se em pleno Inverno -, repentinamente, num estalo só,  todas as luzes se acendiam ferindo-lhe os olhos claros. 
Ou de quando,  madrugada ainda, as batas azuis e as esfregonas  mais moribundas que a sua vontade de se abstrair ao cenário decadente, avançavam por sob a cama, estremecendo-lhe as entranhas, e os sons emergiam das gargantas, em relinchos de apoteoses e cio, complementares à noite de onde algumas vinham directas, deferindo aos sete ventos, às sete colinas de Lisboa, de como, da Mouraria ao Rossio, se tinham atavidado com os amantes. De amor? Nada, de ocasião. 

Que se lixe, meninas, já basta a nojice do dinheiro de fim de mês, deste, aqui, a limpar o que ninguém vê, a vomitar despejando os filhos de umas e outras… desta merda de  trabalho, há que desfrutar o intervalo… bebi uns copos a mais;  ò Bianca, limpa aqui, trás lá a lixívia... não há??? até me admirava...  fui com o gajo, mas estava sem pica… despacha as mãos, não tarda nada temos que as fazer saltar da cama..."


Levantava-se.  O medo a reter o passo:  - nada de esforços, se quer levar a gravidez avance. E logo, como se o  movimento das águas, das que continham a caravela  viva em seu corpo, lhe fosse indiferente: você é que sabe, há muita maneira de matar moscas… pois claro.

Não replicava. Ignorava. Em mente, numa dança de vespas sobre peixe fresco,  cada uma das palavras, quando, de pernas içadas, sentiu a invasão e o sangue quente escorrido em oposta direcção: - vai abortar… são todas umas cabras, umas putas.  Como se pode pedir mais a quem não tem como comer uma fatia de pão?.

Medida única. Todas calibradas pela mesma bitola. O estigma colado na testa.
Depois…  "olha, esta é casada, diz aqui que primeiro filho…
uma pausa em rebate de consciência. tardia, contudo,
Oiça lá, quer falar como tudo aconteceu? Se calhar estava enganada, mas sabe, aqui, das cem que entram, escapa uma."...

Não respondeu. Cerrou os olhos, numa maré de espanto donde o sal do Tejo brumava a tarde, salgava mais que o verbo, sem asas, que calava. Deixou-se observar, alheia a tudo. Concentrou-se no foco de luz do estetoscópio que, sobre a bata branca do médico, recém-chegado, lhe lembrava um âncora. Sentiu um porto...
(com tudo se aprende); um tempo que, ainda que se adivinhasse longo, teria de viver. 
Ouviu então, sem pestanejar: - tem de ficar, sabia não sabia? … aqui não temos quase nada, é Stª Bárbara, como sabe (sabia lá… pouco importava), mas o seu médico é meu amigo,  trabalhou já cá, e a senhora foi-me recomendada. Terá de fazer muitos exames. Não sabemos o que se passa… é estranho, convenhamos.


 Levantava-se, portanto. Todos os dias. Todas as manhãs. A fila para a casa de banho. Um só duche sem água quente em que se lavava "à gata" quando, por fim a sua vez chegava. Lavava-se, a opção é sua,  de mangueira ou de garrafa, ou fazendo recurso das duas, dado que, duche, propriamente dito, não havia... um tubo de ferro, perpendicular à parede e outro, uma cruzeta, donde a água corria menos que do gargalo… à família, nada dizia:  - Estás bem? ...óptima, há que esperar…


Era Dezembro, disse-lhe. - Será hoje. Vai ver que tudo corre bem. Terá de ser. Não coma nada nem beba, de agora em diante. A enfermeira já lhe dará pormenores…
Que pormenores? Tudo era secundário.
Como se chama, diga-me por favor… a tal "caravela" que não quer navegar, Sr. Doutor… 
Soltou o palavrão: Hydatidiform Mole… é muito nova, verá, daqui a dois anos pode, se desejar, voltar a engravidar…

"Hydatidiform Mole…", então... e que era lá isso, que não sabia?
De uma coisa  estava certa: era mole demais, nunca se faria ao mar. Naquela noite não dormiu. Na manhã seguinte, quando por fim voltou ao quarto, vomitava o que não tinha comido.
“...putas… eu bem digo, esta, uma sonsinha, deve ter espetado uma agulha pela “…” acima… agora vomita e e eu que limpe…  a malta tem que ter um estômago..."

Era Inverno, quanto se recordava. Teria vinte e picos anos. (São verdes os verbos, malbaratados...)
Às vezes para enganar o tempo  deixava que  a negra da cama ao lado lhe fizesse do cabelo longo, longas tranças... ficou-lhe o gosto, o hábito... em tudo o ensinamento, sempre afirmou. E, nem porque prenhe de um sonho, naufragado, era agora que o negava... 

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...