Sobre mim ...

A minha foto
Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Como um girassol


“O meu olhar é nítido como um girassol./Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,/ E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto…”
(1)



O jardineiro pegou na saca branca cheia de nada e dirigiu-se ao vento. Abriu as mãos. Introduzindo-as profundamente sacou um punhado de sementes. Lançou-as suaves sobre a terra seca, um composto de solo comum, terra vegetal e areia, tudo bem incorporado.
Cobriu-as então um sopro forte dos ventos de fim de tarde.... As  chuvas chegariam, estava certo disso - as andorinhas já tinham partido. Estava só, num excessivo campo vazio. Era um tempo árido e infrutífero, pensava, tantas e tantas vezes, eremítico.  Ele apenas e a sua cognição. E a natureza das coisas, que aprofundava.
Enquanto as chuvas não caiam, e,  como recomendado, decidiu regar a esforço de braços e de baldes, sempre que o solo se apresentasse seco.
Cada dia mais curtos, os dias, diziam-lhe ao ouvido que os frios se abeiravam. Com eles, as geadas. O campo, antes serpenteado a verde e a vermelho, quedava-se  alvo, enregelado. Por esses dias, o jardineiro, ocupou-se de outras plantas sob o abrigo da pequena casa onde vivia. Mas o relógio teimava em mostrar-lhe a mansidão dos ponteiros intolerantes e desassertivos  com a avidez dos seus sentidos.  Haveria que reocupar-se de outras formas, pois então. Assim  pensou, melhor o fez. Com os restos, com os trapos das roupas debotadas das longas caminhadas, com a palha seca dos trigais, habilitou-se a construir espantalhos “ …dizem que as searas precisam de protecção; para isso servem os espantalhos...”.  Tarde após tarde, noite após noite, fez um, e depois outro, e mais outro, e outro mais. Todos diferentes, como diferentes os dez dedos de suas mãos, ocupadas na construção. Os espantalhos eram tantos, que, a casa minúscula onde vivia, parecia  agora habitada.

Semeara girassol. Ouvira dizer que essa planta trazia a bênção em qualquer jardim ou campo onde brotasse. O seu elemento, o Fogo. O fogo que queimara a sua alma, durante tantos anos.

Enquanto esperava pela chegada das suas amigas andorinhas e pela Primavera, estudava. Aprofundava conhecimentos sobre o mundo das plantas e dos animais, e, aos poucos, percebia que tudo era energia, tudo era matéria. Todos um só. Sobre o girassol descobriu as origens: - introduzido na Europa durante o século XVI, "domesticado". Proveniente da região temperada norte americana, onde os indígenas convertiam as sementes em farinha alimentícia.

Pensou então porque escolhera plantar girassol. Nada acontecia por acaso, como tantas vezes havia referido o mestre.O girassol reunia em si mesmo as características que mais admirava nos seres humanos:  alta resistência e adaptabilidade. Duas características fundamentais, de que tanto haviam falado, quando,  por alturas do fim do dia, migrava ao alto da montanha para lhe falar:

“Jovem jardineiro, semeia girassol. Para além de alegrarem o teu terreiro, são plantas com as quais podes aprender lições constantes, das quais, quicá a mais pertinente, seja o facto de girar para o lado que se move o Sol. A penumbra torna os seres vivos mortiços e tristes. O Sol devolve-lhes a energia. Sol e a água abundante, nunca esqueças. Se não tratares do teu jardim, em breve ele definhará e morrerá. Na água, encontras o princípio de todas as coisas. O girassol têm ainda  uma característica que deves sempre recordar: armazenar. Esta planta sabe fazê-lo como nenhuma outra, e fá-lo em quantidades excedentes. Os humanos esquecem as regras básicas da mãe natureza: armazenar – armazenar sempre, para épocas de necessidades. E, podes crer, que um dia virão. Sob as mais variadíssimas formas...
Quando olhas alguém, lá no fundo dos seu olhos, e vês amor, pensa: “pode não durar para sempre…". Então, fecha os teus, e retêm essa dádiva. Se um dia te faltar, viverás da recordação, até que, um novo olhar,  te faça sorrir de novo... seja o sol da tua vida. Quanto à água, deixa que tombe dos teus olhos nas ausências.- a água procura sempre o seu curso. Nada adiante retê-la. Estagnada mata a vida que contém em si. Ajudar-te-à, por certo, a sarar feridas, lavando-as, em primeira instância,  em ti mesmo.
Aprende ainda: esta planta, um dia maturada (formado o total de folhas que deverá de ter), dependerá uma vez mais, do Sol, dado que, o ritmo de aparecimento das mesmas, será governado pela temperatura. Logo, quanto maior for, quanto mais alta conseguir chegar, menor será o tempo necessário para a floração -  ou seja, para mostrar o pleno da sua beleza. Uma curiosidade, meu jovem: as folhas são alternadas, em forma de coração, belíssimas.  Todavia…  ásperas  - o amor,  manifesta-se, na prática, também de muitas formas e feitios - , disse, em tom quase inaudível, prosseguido:
...de certa forma por isso,   muitos não reparam sequer nelas, ou, reparando, hesitam em tocar-lhe, com receios infundados…
 Outra ainda:  para que possa crescer em segurança, têm que desenvolver uma raiz profunda, perpendicularmente ao solo, quase tão funda quanto a altura que pretende atingir. Como poderia ser de outra forma? Sem raízes que a suportassem, tombaria a qualquer abanão de vento... "

Assim falando, o mestre, suavemente evaporava-se tal como tinha aparecido… Reaparecia dias depois continuando no exacto ponto onde tinha parado:

"Sob batuta da mãe natureza ocorre a polinização. Numa cadeia de solidariedade, surgem insectos polarizadores - abelhas, por exemplo, como as de que te falei, quando me sondaste sobre a punção do amor..."
O jovem escutava, perplexo. O mestre continuava:
“...do Girassol, nada, mas mesmo nada se desperdiça. Tudo é utilizável (re-utilizável).”

Deu-se conta, de que, para além de bela, aquela planta ser-lhe-ia utilíssima:  aproveitaria sementes, flores e os ramos. Voraz em saberes, inquiriu o mestre:
“E essa planta magnífica de que me falas, têm outro nome?”.
“Sim, o seu nome científico é Helianthus Annus, "flor do Sol". Semeia no teu jardim e espera! Aguarda com serenidade o dia da sua total maturação. Nesse dia experimenta sentar-te à sua sombra e goza o chapéu que te disponibiliza. E agradece…"

Embrenhado em reflexões sobre estas lições de vida o Inverno foi passando. A construção dos espantalhos contribuíra decisivamente para lhe ocupar as mãos e o pensamento. Por vezes, detinha-se langorosamente  a perscrutar o campo, que, timidamente germinava, a identificar o lugar mais vantajoso para os colocar- não, não os deixaria ao acaso, apesar de, como a todo o criador,  só o facto de antever a possibilidade de  os deixar a sós no meio das colheitas, lhe confrangir a alma. Teria de ser, contudo. Teriam de seguir o seu destino de espantalhos. Todavia, decidira que, de todos, havia um de que nunca se ira separar. Vestira-lhe uma capulana, de cores garridas, vermelhas, verdes, amarelas, encontrada bem lá no fundo do baú do passado. Fizera-lhe o cabelo longo, quase branco, a palha de milho. As feições, desenhara-as de memória. Os olhos, dois corais da praia. E as mãos, ai as mãos … essas deixara-as soltas, livres. Para o abraço...

Num dia de maior tristeza, durante uma forte trovoada,  parecera-lhe que o espantalho vestido de capulana, falara. O barulho ensurdecedor dos trovões e o brilho dos relâmpagos sobre o milheiral, impediram-no de,  no imediato,  lhe prestar atenção. Finalmente, quando tudo serenou, ouviu com mais atenção e percebeu que o espantalho-capulana trauteava baixinho canções da Mãe África...

Como um menino perdido, libertou as lágrimas contidas durante anos, limpou a cara ao pano da capulana, abraçou a capulana, num abraço biogenésico de tão profundo…Rapidamente se esqueceu do mundo. Deixou-se embalar ao som dos sons da sua terra, das canções que conhecia.  

“Dorme, dorme meu menino / Foi-se o Sol, nasceu a Lua / Qual será o teu destino, que sorte será a tua?... Dorme, dorme meu menino.”. (2)

Adormeceu e dormiu como só dormem as crianças: entre os dois renascera a esperança.
     A capulana falava-lhe de África, o jovem de milheirais.
    A capulana contava contos nas línguas ocidentais - aprendera-as falando, com os restantes trapos, no fundo do secular baú…

Naquela noite o jardineiro sonhou: - a capulana envolta em si, nas costas de uma africana. Sentiu e não renegou o cheiro de sua mãe, sentiu e aprofundou, cada compasso das batidas do coração; sentiu o cheiro do milho, esmagado sob o pilão; sentiu os pés doridos de tanto pisar o chão; provou e até gostou, Ebó,  comida/ safra -  farinha-milho, esmagada sob o pilão resgatada do milheiral; a  farinha que temperou com lágrimas grossas, sabor do sal, mais azeite ocidental...
                             
                          ...à falta de dendê, que não o produzia no seu quintal.

Como um girassol…
“… Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar…”
(3)


Citações, 1 e 3 : Alberto Caeiro, em "O Guardador de Rebanhos", 1914
Citação 2: Canção popular de embalar. 
Pintura de João Fróis

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...